Reginaldo Prandi

>      Deuses africanos no Brasil

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“Deuses africanos no Brasil” é o Capítulo I do livro Herdeiras do Axé

I: Religiões populares no Brasil

O catolicismo tem sido historicamente a religião majoritária do Brasil, cabendo a outras fés o lugar de religiões minoritárias, mas nem por isso sem importância no quadro das religiões e da cultura, sobretudo no século atual (século XX). Neste segundo grupo estão as chamadas religiões afro-brasileiras [1] , as quais até os anos 1930 poderiam ser incluídas na categoria das religiões étnicas, religiões de preservação de patrimônios culturais dos antigos escravos africanos e seus descendentes. Estas religiões formaram-se em diferentes áreas do Brasil com diferentes ritos e nomes locais derivados de tradições africanas diversas: candomblé na Bahia [2], xangô em Pernambuco e Alagoas [3], tambor de mina no Maranhão e Pará [4], batuque no Rio Grande do Sul [5] e macumba no Rio de Janeiro [6].  

A organização das religiões negras no Brasil deu-se bastante recentemente. Uma vez que as últimas levas de africanos trazidos para o Novo Mundo durante o período final da escravidão (últimas décadas do século 19) foram fixadas sobretudo nas cidades e em ocupações urbanas, os africanos desse período puderam viver no Brasil em maior contato uns com os outros, físico e socialmente, com maior mobilidade e, de certo modo, liberdade de movimentos, num processo de interação que não conheceram antes. Este fato propiciou condições sociais favoráveis para a sobrevivência de algumas religiões africanas, com a formação de grupos de culto organizados.

Por outro lado, no final do século passado, foram introduzidas no País algumas denominações protestantes européias e norte-americanas. Essas religiões floresceram, assim como espiritismo kardecista francês aqui chegado também no final do século passado, mas o catolicismo continuou sendo a preferência de mais de 90% da população brasileira até os anos 1950, embora na região mais industrializada do país, o Sudeste, a porcentagem de católicos tenha sido menor, com um incremento mais rápido no número de protestantes, kardecistas e também seguidores da umbanda, religião afro-brasileira emergida nos anos 1930 nas áreas mais urbanizadas do País, e que, a despeito de suas origens negras, nunca se mostrou como religião voltada para a preservação das marcas africanas originais.

O quadro religioso no Brasil de hoje caracteriza-se por processo de conversão complexo e dinâmico, com a incorporação e mesmo criação de algumas novas religiões, às vezes com a passagem do converso por várias possibilidades de adesão. Os grupos de religiões mais importantes em termos de números de seguidores hoje são: o catolicismo, em suas ambas versões de religião tradicional e renovada; os evangélicos, que apresentam múltiplas facetas entre históricos e pentecostais, agora também se oferecendo numa nova e inusitada versão, o neopentecostalismo (Rolim, 1985; Mariano, 1995); os espíritas kardecistas, e um diverso conjunto de religiões afro-brasileiras. Entre os católicos renovados sobressaem-se as Comunidades Eclesiais de Base (Pierucci, 1983) e o novo Movimento de Renovação Carismática (Prandi, 1991b), movimentos que se opõem doutrinariamente: as CEBs mais preocupadas com questões de justiça social e mais envolvidas na política, os carismáticos mais interessados no indivíduo e conservadoramente avessos a temas de consciência social. Estimativas recentes indicam a presença de 75% de católicos (os carismáticos são 4% e os das CEBs, 2% da população), 13% de evangélicos (3% históricos e 10% pentecostais), 4% de kardecistas e 1,5% de afro-brasileiros (Pierucci & Prandi, 1995).

Dessas religiões, a umbanda tem sido reiteradamente identificada como sendo a religião brasileira por excelência, pois, nascida no Brasil, ela resulta do encontro de tradições africanas, espíritas e católicas (Camargo, 1961; Concone, 1987; Ortiz, 1978). Como religião universal, isto é, dirigida a todos, a umbanda sempre procurou legitimar-se pelo apagamento de feições herdadas do candomblé, sua matriz negra, especialmente os traços referidos a modelos de comportamento e mentalidade que denotam a origem tribal e depois escrava, mantendo contudo estas marcas na constituição do panteão. Comparado ao do candomblé, seu processo de iniciação é muito mais simples e menos oneroso e seus rituais evitam e dispensam sacrifício de sangue. Os espíritos de caboclos e pretos-velhos manifestam-se nos corpos dos iniciados durante as cerimônias de transe para dançar e sobretudo orientar e curar aqueles que procuram por ajuda religiosa para a solução de seus males. A umbanda absorveu do kardecismo algo de seu apego às virtudes da caridade e do altruísmo, assim fazendo-se mais ocidental que as demais religiões do espectro afro-brasileiro, mas nunca completou este processo de ocidentalização, ficando a meio caminho entre ser religião ética, preocupada com a orientação moral da conduta, e religião mágica, voltada para a estrita manipulação do mundo.

Desde o início as religiões afro-brasileiras se formaram em sincretismo com o catolicismo, e em grau menor com religiões indígenas. O culto católico aos santos, numa dimensão popular politeísta, ajustou-se como uma luva ao culto dos panteões africanos (Valente, 1977; S. Ferretti, 1995). Com a umbanda, acrescentaram-se à vertente africana as contribuições do kardecismo francês, especialmente a idéia de comunicação com os espíritos dos mortos através do transe, com a finalidade de se praticar a caridade entre os dois mundos, pois os mortos devem ajudar os vivos sofredores, assim como os vivos devem ajudar os mortos a encontrar, sempre pela prática da caridade, o caminho da paz eterna, segundo a doutrina de Kardec. A umbanda perdeu parte de suas raízes africanas, mas se espraiou por todas a regiões do País, sem limites de classe, raça, cor (ver Capítulo II). Mas não interferiu na identidade do candomblé, do qual se descolou, conquistando sua autonomia. Mas o candomblé também mudou. Até 20 ou 30 anos atrás, o candomblé era religião de negros e mulatos, confinado sobretudo na Bahia e Pernambuco, e de reduzidos grupos de descendentes de escravos cristalizados aqui e ali em distintas regiões do País. No rastro da umbanda, a partir dos anos 1960, o candomblé passou a se oferecer como religião também para segmentos da população de origem não-africana.

 

II: Candomblé nos dias de hoje

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Reginaldo Prandi é Professor Titular de Sociologia da Universidade de São Paulo. Em 2001 recebeu o Prêmio Érico Vannucci Mendes, outorgado pelo CNPq, SBPC e Minc, pela sua contribuição à preservação da memória cultural afro-brasileira, e o Prêmio União na Diversidade, conferido pelo Intecab, Instituto Nacional da Tradição e Cultura Afro-Brasileira. Em 2002 teve dois livros indicados para o Prêmio Jabuti: Mitologia dos orixás, na categoria ciências humanas, e Os príncipes do destino, na categoria infanto-juvenil. Publicou também outros livros, como Os candomblés de São Paulo, Herdeiras do axé, Um sopro do Espírito, A realidade social das religiões no Brasil, este em co-autoria com Antônio Flávio Pierucci, Encantaria brasileira, do qual é organizador, e Ifá, o Adivinho.

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