Antonio
Cesar Perri de Carvalho
> Memória do Espiritismo
De Kardec a Conan Doyle
As experiências iniciais de registro de
informações com valor histórico para o movimento
espírita foram efetivadas com os relatos do próprio
Allan Kardec, a propósito dos preparativos e da elaboração
de “O Livro dos Espíritos”, nesta
mesma obra e em matérias da “Revue Spirite”.
Esta revista traz muitas contribuições para estudos
históricos. “O Livro dos Médiuns”
contempla significativa informação, com a transcrição
do Regulamento da Sociedade Parisiense de Estudos Espíritas
e, sem dúvida, a 2a. parte de “Obras Póstumas”
é rica de subsídios para a história do Espiritismo.
Pouco tempo após a desencarnação de Kardec, um
rumoroso processo judicial veio a se transformar em repositório
histórico. O registro sobre os episódios, iniciados
em 1875 e envolvendo a injusta condenação do pioneiro
espírita Pierre-Gaëtan Leymarie, ao ser transformado em
livro – “Processo dos Espíritas” –,
sem dúvida, contribuiu para se conhecer fatos em torno da utilização
de fenômenos mediúnicos, logo após Kardec.
Cerca de meio século depois da biografia pioneira de Kardec,
escrita por Henri Sausse inicialmente na forma de conferência
para uma homenagem em Lyon aos 27 anos de desencarnação
de Kardec, surge um estudo mais analítico elaborado por André
Moreil. Ao apresentar a versão em português do estudo
de Moreil sobre a vida e a obra de Allan Kardec, Herculano Pires considera
que este trabalho não é apenas uma biografia, mas também
tem lances de ensaio e de romance. Ao relacionar o druidismo com a
obra de Kardec, Herculano Pires comenta que “a história
é feita pelos homens-espíritos e não pelos homens–corpos”.
As informações de fundo histórico passaram a
se diversificar à medida que se ampliavam ações
e estudos relacionados com o pensamento espírita. Na passagem
do século XIX para o XX, surgiram inúmeras pesquisas
psíquicas e relatos sobre elas. Naquele contexto, Michel Sage
publicou em Paris, no ano de 1902, uma obra que resume os principais
fatos sobre a médium norte-americana Leonora Piper, que teve
o prefácio de Camille Flammarion. Na época, o autor
já destacava a profícua atuação da referida
médium: “esta mediunidade é certamente a que
foi mais estudada por tempo mais longo e por homens de alta competência”.
Nesse ínterim, foram publicadas as obras de Léon Denis,
como “Joana D’Arc, médium”.
Denis focaliza a líder sob o ponto de vista de pessoa, médium
e vulto da história da França: “Convém
lembrar freqüentemente as grandes cenas da nossa história
nacional e pô-la em relevo. (...) Nenhuma, dentre essas lembranças,
mais tocante, mais gloriosa do que a da donzela, que iluminou a noite
da Idade Média com a sua aparição radiosa, da
qual pode Henri Martin dizer: ‘Nada de semelhante ainda se produziu
na História do mundo” (Denis, p.17).
O patriotismo de Denis comparece em seus artigos publicados na “Revue
Spirite” e em obra, onde se aprofunda nas raízes
do celtismo. Entre outros aspectos Denis destaca: “É
dos gauleses que vem a comemoração dos mortos, (...)
só que, em vez de comemorar nos cemitérios, entre túmulos,
era no lar que eles celebravam a lembrança dos amigos afastados,
mas não perdidos, que eles evocavam a memória dos espíritos
amados que algumas vezes se manifestavam por meio das druidisas e
dos bardos inspirados” (Denis, p.180).
Na mesma época vem a lume a portentosa “História
do Espiritismo”. O versátil escritor britânico
Arthur Conan Doyle marcou um fato significativo porque até
então – 1926 – era obra praticamente única
sobre o tema. Ele próprio reconhece que havia necessidade de
uma “história completa do movimento espírita”
(utilizava o termo inglês spiritualism), adotando um
critério histórico. Na apresentação à
versão publicada no Brasil, Herculano Pires destaca que “o
historiador está presente neste livro”, mas também
aduz que “romancista e o novelista aqui estão, na
múltipla tessitura das narrativas que se sucedem, capítulo
por capítulo”. Inclusive, se refere ao comentário
da revista inglesa “Light” a propósito
do equilíbrio e a imparcialidade do autor no trato do assunto
e que Conan Doyle, embora fosse “ardoroso propagandista
espírita, não a coloria com os mais carregados preconceitos
a favor do assunto e dos seus corifeus”.
Ações no Brasil
Há muitos autores que têm publicado obras biográficas
e históricas no Brasil.
Zêus Wantuil trabalhou meticulosamente em pesquisas históricas
que redundaram na publicação das obras “As
mesas girantes e o Espiritismo” (1958), “Grandes
espíritas do Brasil” (1969), reunindo cinqüenta
e três biografias e, em parceria com Francisco Thiesen, a coleção
“Allan Kardec”, em quatro volumes (1979-1988).
A Casa Editora “O Clarim” possui vários
títulos nesta linha histórica, inclusive de nossa autoria.
O Centro Espírita Léon Denis, do Rio de Janeiro, mantém
excelente produção de obras atendendo a esta linha editorial.
Há episódios importantes que devem ser destacados, como
a importante Biblioteca de Obras Raras mantida pela Federação
Espírita Brasileira em sua sede em Brasília.
A fundação do Museu Espírita de São Paulo
em 1992, mas inaugurado em 1997, é um fato inédito como
instituição e no acervo. Em instalações
modernas há biblioteca, incluindo obras raras de Kardec, obras
do período pré-espirítico, coleções
de revistas e livros em vários idiomas. O salão de mostras
contém painéis de Kardec – sua obra como pedagogo,
manuscritos e documentos pessoais -, sobre a imprensa espírita,
sobre vultos espíritas pioneiros; mostra com objetos e réplica
da mesa tripóide, utilizada nas primeiras manifestações
espíritas em Paris. O Museu dispõe de salão para
conferências.
No ano de 1997 foi iniciado o “Projeto Pró-Memória
da USE” (União das Sociedades Espíritas
do Estado de São Paulo, Brasil) com o planejamento de realizar,
estimular pesquisas históricas e promover eventos na área.
O marco inicial da nova área de atuação foi a
elaboração do livro comemorativo aos 50 anos da federativa
estadual e logo depois a promoção de um “Encontro
de Historiadores e Pesquisadores Espíritas”,
depois ensejando uma reunião de historiadores e pesquisadores
espíritas durante o 1º Congresso Espírita Brasileiro
(Goiânia, 1999). Vinculado ao citado projeto, já surgiram
uma dezena de livros sobre fatos e biografias de vultos e pioneiros
de movimento espírita de cidades e de regiões, sendo
algumas das publicações coordenadas por lideranças
regionais.
Reflexões
acadêmicas
As crônicas e memórias têm valor de fonte na elaboração
de projetos de História. A História também é
método e deve-se evitar a subjetividade. Há tendências
para que seja ligada ao presente, realizando-se uma análise
polivalente, problematizando-se as questões.
Na área acadêmica há estímulos para o desenvolvimento
de pesquisas na linha de que “a lembrança é
a sobrevivência do passado” (Bosi), resgatando a
memória com base em entrevistas e depoimentos que caracterizam
a História Oral. O tema se inicia com a colocação
de Le Goff, pondo em evidência o “álbum de
família”, destacando que cada família tem
o seu “retratista”. Ampliando os horizontes,
o mesmo autor comenta que “a idéia da história
como história do homem foi substituída pela idéia
da história como história dos homens em sociedade”.
Ecléa Bosi desenvolve o raciocínio que “uma
memória coletiva se desenvolve a partir de laços de
convivência familiares, escolares, profissionais. Ela entretém
a memória de seus membros, que acrescenta, unifica, diferencia,
corrige e passa limpo”.
O interesse dos leitores pela literatura com fundo histórico
e as biografias tem representado, na atualidade, em um filão
explorado por autores e editoras.
Histórias de vida
O conjunto de fatos e as bases acadêmicas já demonstram
como as histórias de vida são motivadoras e suscitam
interesse. Mais uma razão para a valorização
da memória em geral e, especificamente, da memória do
Espiritismo, a partir dos feitos de seus pioneiros e líderes,
como o “Projeto Pró-Memória da USE”.
Os fatos e informações biográficas sobre personalidades
desencarnadas que exerceram marcante liderança ou foram fundadores
de instituições espíritas devem ser registrados.
Nas obras ligadas ao Projeto citado há personagens com estes
perfis, mas também se inclui muitos zelosos colaboradores da
seara espírita que se mantiveram num trabalho muitas vezes
anônimo, porém muito persistente.
Numa visão ampla dos desdobramentos do cristianismo, os espíritas
se enquadram como “trabalhadores da última hora”,
em alusão à conhecida parábola: “Ide
vós também para a vinha... – os derradeiros serão
primeiros...” (Mateus, XX: 4 e16). Dentro do movimento
espírita há obreiros com atuação em diferentes
tempos, com diversa modalidade de labor, mas com as marcas da persistência
e da dedicação.
Aliás,
a obra inaugural da Doutrina Espírita pondera: “... crede
que os Espíritos dos vossos ancestrais não se honram
pelo culto que lhes fazeis por orgulho. Seus méritos não
refletem sobre vós senão pelo esforço que fizerdes
para seguir os bons exemplos que vos deram, e é só assim
que a lembrança pode não somente lhes ser agradável,
mas até útil” (O Livro dos Espíritos,
questão 206).
As experiências de vida de vultos espíritas oferecem
subsídios de inestimável valor para se fortalecer ideais
e se estimular realizações nobres.
Referências:
• Bosi,
Ecléa. Memória e sociedade. Lembrança de velhos.
S.Paulo: Companhia das Letras, 1995. 484p.
• Conan Doyle, A. História do Espiritismo (Trad. Abreu
Filho, J.). São Paulo: Ed. O Pensamento, 1960. 498p.
• Denis, L. Joana D’Arc, médium. (Trad. Ribeiro,
G.). 7a. ed. Rio de Janeiro: Ed. FEB. 1971. p. 17.
• Denis, L. O gênio céltico e o mundo invisível.
(Trad. Pimentel, C.). Rio de Janeiro: Ed.CELD. 1995. p. 180
• Le Goff, J. História e memória. (Trad. Ferreira,
Irene et al.) Campinas: Ed Unicamp, 1996. 553p.
• Leymarie, Marina. Processo dos espíritas. Resumo em
português por Hermínio C..Miranda. Rio de Janeiro; FEB,
1976, 123p.
• Monteiro, E.C.; D’Olivo N. USE – 50 anos de unificação.
São Paulo: Ed. USE, 1997. 334p.
• Moreil, A. Vida e obra de Allan Kardec. (Trad. Miguel Maillet)
São Paulo: Edicel, 1966, 244p.
• Sage, M. Madame Piper et la Société Anglo-Americaine
pour les recherches psychiques. Paris: P.G.Leymarie, 12a. ed., 1902,
p. 272p.
BOX
PARA A MATÉRIA MEMORIA DO ESPIRITISMO.
Segundo o Prof.
Herculano Pires, no prefácio da obra História do Espiritismo,
Conan Doyle é um nome conhecido e lido no mundo inteiro.
Dotado de fértil imaginação, tornou-se escritor
apreciado, especialmente com a criação do personagem
Sherlock Holmes.
Além da série de ficção, foi também
historiador, pregou o uso de métodos científicos na
pesquisa policial e destacou-se como lúcido escritor espírita
em todo mundo, revelando notável compreensão da Doutrina
Espírita em seu tríplice aspecto e lançou a
célebre obra História do Espiritismo, que foi citada
pela revista inglesa Light pelo equilíbrio e imparcialidade
com que o assunto foi tratado.
Arthur Conan Doyle nasceu em 22 de maio de 1859, em Edimburgo, e
faleceu em 7 de julho de 1930, em Cowborough (Susex). Em junho de
1887 escreveu uma carta ao editor da revista acima citada, explicando
as razões de haver se convertido ao Espiritismo. Tal carta
foi publicada na edição de 2 de julho de 1887 da referida
revista e republicada na edição de 27 de agosto de
1927. Em 15 de julho de 1929, a RIE publicou
no Brasil a primeira tradução integral daquela carta,
importante documento onde jovem médico em 1887 revelava ampla
compreensão do Espiritismo e a importância da Mensagem
que a Doutrina Espírita trazia para o mundo inteiro. Os detalhes
da conversão do grande escritor estão no pequeno livro
A Nova Revelação, traduzida
por Guillon Ribeiro e editado pela FEB.
Fonte: Revista
Internacional de Espiritismo, de fevereiro de 2002
- http://www.ajornada.org/colunistas/perri-0001.htm
- http://www.espirito.org.br/PORTAL/artigos/diversos/movimento/memoria-do-espiritismo.html
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