03/06/2003
Estava fazendo minha caminhada habitual pela avenida Sumaré,
quando um filhote de cão, talvez de uns 40 dias de vida, se
tanto, abandonado ali na Praça Irmãos Karman, veio para
a beira da calçada e logo, o seu focinho curioso fez com que
ele descesse até o asfalto. Olhava a cena, enquanto o meu coração
acelerava, prestes a ver, e ao mesmo tempo não querendo ver,
um acontecimento impiedoso e quase certo. Os carros passavam à
velocidade normal permitida ali, e o cãozinho iria virar carne
moída dentro de pouco tempo. Arriscando-me por entre alguns
carros que até diminuíram a marcha e outros tantos passando
direto, com cuidado fui me aproximando do animal, receoso pelo trânsito
que não parava. O cãozinho já estava quase no
meio da avenida, totalmente indefeso e correndo um risco total, mesmo
porque ele poderia ser morto até por não ser visto pelos
motoristas.
Nesse momento, um Sr. Marronzinho que acompanhava toda a cena veio
do outro lado e com mais autoridade, foi parando o trânsito
até que peguei o filhote e, juntos fomos para a praça
em lugar seguro. Perguntávamos um para o outro quem teria abandonado
aquele cãozinho ali e como poderíamos cuidar do destino
dele.
Nesse mesmo momento, veio do outro lado da rua uma senhora fina e
elegante, trajando um conjunto de cores muito bem combinadas que,
tomando o cãozinho no colo, disse poder levá-lo para
a sua veterinária de confiança que o doaria a alguém,
isto é, se não quiséssemos levá-lo. Perguntou
a mim e ao Sr. Marronzinho se estávamos interessados em adotar
o bichinho. Ele explicou que estava em serviço, senão
poderia até levá-lo. Eu perdera há pouco tempo
o meu cão pastor com 11 anos de idade, fiel amigo de tantas
caminhadas e que me fez adquirir o saudável hábito de
caminhar pelas ruas e avenidas do meu bairro. Ainda com o coração
doendo, não queria adotar nenhum cão, pelo menos, não
por enquanto.
Uma outra jovem senhora, simples e sorridente, carinhosa, logo pegou
o cãozinho e segurando-o contra o peito, dizia que desejava
muito levá-lo mas o problema é que não tinha
espaço em sua casa. A senhora elegante, gentil e educada insistiu
para que ela levasse o cãozinho. Praticamente havia tomado
a decisão pela jovem que titubeava em adotar o animal. Logo
se preocupou em como poderia arranjar uma maneira de transportá-lo
até sua casa. Prontamente, um motorista do ponto de táxi
próximo, disse que deveria ter um pedaço de pano no
porta-malas do seu carro e afirmou que a banca de jornal do outro
lado da rua, com certeza, poderia arrumar uma sacola plástica
que permitiria carregar o filhote.
Assim fora resolvida a situação encaminhando a história
para um final feliz. Um cuidado daqui, uma atenção dali,
várias pessoas juntamente buscando solucionar aquele problema,
para que o animalzinho fosse rapidamente adotado e, a partir daquele
dia, tivesse um lar.
Logo depois voltei para a minha caminhada, tocado por aquele acontecimento
e como, do nada, várias pessoas surgiram, prontas e bem intencionadas
para por em uso a sua bondade, a sua compaixão e num gesto
muito espontâneo e simples de solidariedade, providenciar uma
casa e um destino para o filhote.
Hoje, quando me lembro da cena, não consigo deixar de pensar
como ser solidário é um gesto simples. Não tem
regras, não precisa de normas nem de campanhas, não
precisamos de nos fazer muitas perguntas a respeito. Basta praticar
o ato. Sim, como uma coisa muito natural. Tão natural como
o samaritano que socorreu o homem caído à beira da estrada
e ainda o levou a uma estalagem, onde pudesse receber tratamento e
remédios, deixando até dinheiro para pagar as despesas
daquele homem, de quem o samaritano nem sabia o nome ou a procedência,
nem que pessoa seria, nem dos seus princípios morais, nem de
suas convicções religiosas. Foi um ato tão completo
e espontâneo como se o mundo, de fato, não tivesse divisão
de países com suas fronteiras, em que as nações
falassem uma mesma língua e sem religiões, os seres
humanos não estariam enclausurados em suas convicções
morais, defendendo este ou aquele princípio, e até mesmo
defendendo deuses próprios, supostamente melhores do que outros,
como os combates na antigüidade, onde as guerras que os seres
humanos travavam eram também guerras entre deuses.
Como já disse, de vez em quando sou tomado pelas lembranças
do fato, sinto-me então solidário e um pouco melhor
do que normalmente sou. Mas sinto também que, quando um fato
como este não está tão forte e presente na minha
mente, não me vejo tão naturalmente bom, nem tão
espontaneamente disposto a praticar o bem por mais simples que seja.
Me lembrei do ensinamento de Aristóteles escrevendo em Ética
a Nicômaco:
“as virtudes são
pois, de duas espécies, a intelectual e a moral,
a primeira, por via de regra, gera-se e cresce graças
ao ensino – por isso, requer experiência
e tempo; enquanto a virtude moral é adquirida
em resultado do hábito. Não é pois
por natureza, nem contrariando a natureza que as virtudes
se geram em nós. Diga-se, antes, que somos adaptados
por natureza a recebê-las e nos tornamos perfeitos
pelo hábito.”
Sempre me pego pensando, o quanto
ainda devo praticar para adquirir o hábito...