04/10/2002
Conta-se que certa vez, num país
distante, um homenzarrão todo esculhambado e trovejante com
a sua voz muito forte, chegou na casa de um homem que morava sozinho
numa choupana à beira de um riacho. Esse homem simples, cuidava,
na sua humilde propriedade, de uma vaquinha que lhe dava o leite todo
o dia, algumas galinhas, um ou outro porco que, numa celebração,
pudesse lhe oferecer sua carne para o seu festejo.
Aquele homem enorme e autoritário, irrompeu pela sua casa,
sentou-se numa de suas cadeiras, também humildes, dentre as
poucas que lhe sobrara de toda uma vida passada ali naquele recinto
de cômodos toscos e minimamente confortáveis. O homem
grande, forte, com botas que escondiam pés enormes e calçando
umas botas altas que mais pareciam revestir uma pilastra do que propriamente
pés e pernas, olhou para aquele ambiente, depois dirigiu o
seu olhar para o homem que morava naquela casa simples e falou tão
forte como se tivesse um megafone instalado na garganta:
Então, você vai ficar aí parado, e não
quer me servir?
Aquele vozeirão soou dentro do dono da casa como uma ordem
indiscutível e nenhuma resposta lhe saiu da garganta. Apressou-se
em matar uma ave e fazer logo um cozido. Providenciou um pouco de
pão que ele mesmo havia feito, reuniu algumas frutas frescas
e logo a mesa estava posta para o gigante fartar-se. O homem enorme
comeu e se lambuzou, e depois dormiu sentado ali mesmo. E ele não
dava sinais de ir embora depois de fartar-se e foi ficando, e a querer
mais e mais ser servido. Aquele homem simples, morador da casa simples
também, foi servindo aquele homem, por vários dias,
que depois se transformaram em semanas, e o tempo foi passando.
Passaram-se meses e até mesmo anos e aquele gigante era servido
com a mesma fidelidade e eficiência da primeira vez. Tanto o
homenzarrão comeu e fartou-se e dormiu e roncou que ali foi
ficando, até que um dia, um ataque fulminante do coração,
pelo menos foi o que pareceu, o fez contorcer-se, depois obrigou que
o gigante levasse a mão ao peito até que por fim desabou
daquela cadeira indo ao chão já sem vida. Estava morto
o glutão exigente. O morador da casa então, providenciou
uma lona enorme que estava dobrada e empoeirada no seu celeiro vazio
e enrolou aquele corpo naquele encerado carcomido pelo tempo, mas
ainda muito resistente. Embrulhou-o devidamente e depois providenciou
alguns pedaços de cordas velhas fazendo um grande pacote com
o corpo do gigante que alimentara por tanto tempo. Com muito esforço
arrastou o fardo para fora de sua casa. Com muita dificuldade, aproximou-se
de uma ribanceira e com cuidado depositou aquele embrulho à
beira do penhasco. Afastou-se um pouco, providenciou uma vara forte
o suficiente para fazer rolar aquela enorme embalagem e, no silêncio
daquela tarde morna, parou um pouco, respirou fundo antes, pensou
e pensou quando as palavras do gigante lhe vieram altissonantes na
cabeça novamente:
Então, você vai ficar aí parado, e não
quer me servir?
E ao relembrar tão nitidamente aquela pergunta feita há
tanto tempo, o homem, mesmo estando ali sozinho junto aquele corpo
inerte embrulhado, mais parecendo um casulo desproporcional, reuniu
todo o ar que seus pulmões puderam aspirar e gritou fazendo
ecoar a sua voz por toda aquela região:
N Ã O ! ! !
E com um último esforço, fez rolar aquele corpo embrulhado
pelo abismo abaixo.
Quando ouvi esta história me pus a pensar. Quantas respostas,
em infinitas situações, a nossa alma anseia dar para
situações boas ou más, ansiosas ou calmas, amorosas
ou revoltadas, pacientes ou cheias de intolerância e a nossa
voz demora tanto a sair do peito? O que nos levaria a dar respostas
tão tardias para questões urgentes? O que nos faria
sofrer, muitas vezes, aparentemente por muito mais tempo do que poderíamos
ter escolhido sofrer? Seria indecisão? Seria prudência
ou calma excessiva? Seria uma espécie de paciência de
monge levada às últimas conseqüências? Seria
por causa dos outros? Seria por causa de nós mesmos?
As perguntas 833 e 834 do Livro dos Espíritos
tratam da Liberdade de Pensamento. Perguntados sobre, se o homem goza
de uma liberdade absoluta, os espíritos responderam: “É
pelo pensamento que o homem goza de uma liberdade sem limites, porque
o pensamento não conhece entraves. Pode-se impedir a sua manifestação,
mas não aniquilá-lo”. Por estranho e contraditório
que possa parecer, podemos defender a hipótese de que o homem
da história contada acima exerceu a sua liberdade de pensamento.
Aparentemente não se mostrou livre nas suas ações,
mas foi livre na sua subordinação em servir ao gigante.
Usou a sua liberdade íntima, a liberdade dos seus pensamentos,
na medida em que planejou, por longos anos da sua vida, gritar aquele
não imenso. Mostrou-se livre na sua forma de pensar quando
reconheceu a sua impotência e a sua pequenez frente à
força do gigante intruso. Exerceu liberdade na medida em que
não se precipitou pondo em risco a sua vida. Mostrou-se livre
na forma de, consciente e deliberadamente, deixar o tempo passar.
Exerceu a sua liberdade na maneira de existir quando soube que o silêncio
é um princípio de sabedoria e realiza a sua tarefa frente
ao acontecimento. Não se entrega à fatalidade do que
lhe acontecera, mas age com consciência, perseverança,
paciência e abnegação. Não foge, reconhecendo
que uma tarefa veio ao seu encontro e tornara-se necessário
que ele a desempenhasse, pois no bom desempenho da sua tarefa, existia
o germe da sua liberdade definitiva.
Como compreender a Doutrina Espírita sem fazer culto ao sofrimento
e sem confundir clareza de pensamento com mera submissão aos
acontecimentos? Como promover o nosso desenvolvimento sem praticar
atos de resignação e renúncias piegas que mais
se parecem com conformismo e com impotência? A pergunta 834
indaga se o homem é responsável pelo seu pensamento.
E a resposta diz que “ele é responsável perante
Deus. Só Deus, podendo conhecê-lo, condena-o ou absolve-o,
segundo a sua justiça”. As atitudes do homem da
nossa história parecem muito mais conter uma sabedoria de como
enfrentar os problemas da vida do que propriamente fazer-se submisso
camuflado por uma aura de estoicismo. Esta história nos remete
a Jó que, eternizou-se por sua paciência, mas na realidade
passou boa parte da sua vida, debatendo com Deus o que lhe acontecia
e procurando entender o significado do seu sofrimento. Fazer bem as
nossas tarefas não implica no silêncio das nossas bocas.
Podemos ser praticantes do bom desempenho mesmo, na medida em que
interrogamos sobre o que não compreendemos ou o que não
nos satisfaz. Se Deus nos deu o livre arbítrio não foi
para que, de posse dele, nos subjugássemos às contingências
das nossas vidas. O livre arbítrio é uma grande ferramenta
de aprimoramento do nosso Espírito, pois ele permite analisar
o bem e o mal e tomar decisões que sejam as mais sábias
possíveis, não apenas para a nossa vida, mas para a
nossa evolução.