por Adriana Lacerda
Reportagem Brazil Journal
CACHOEIRA, Bahia – Aqui nesta
cidade histórica do Recôncavo, uma irmandade de mulheres
negras celebra a morte como passagem e liberdade. É um rito
de fé, beleza e resistência que atravessa séculos
— e transforma quem participa.
Quando a noite começa a cair
sobre as ruas de pedra, o ar é morno, o céu escurece
lentamente, e os passos ganham outro ritmo.
Sigo até a Capela de Nossa Senhora d’Ajuda. Depois da
missa, a imagem que representa o corpo da Virgem Maria — Nossa
Senhora da Boa Morte — sai em procissão. As integrantes
da irmandade caminham pelas ruas em silêncio respeitoso, vestidas
de branco, levando velas acesas nas mãos. Caminham em homenagem
às irmãs falecidas, recordando seus nomes um a um. Rendas
alvejadas, colares coloridos, balangandãs reluzentes.
O som dos cânticos ecoa entre os casarões coloniais.
Há cheiro de vela queimada e alfazema no ar. O tempo parece
suspenso. A cada passo, algo se acende — não apenas nas
mãos, onde as velas são passadas de uma irmã
para outra, mas dentro da gente.
A Irmandade da Boa Morte, uma confraria religiosa afro-católica
composta exclusivamente por mulheres negras idosas, é quem
mantém essa tradição viva há muitas gerações.
Durante cinco dias, entre 13 e 17 de agosto, a cidade se transforma
no cenário de um rito de passagem que une catolicismo e ancestralidade
africana, corpo e espírito, vida e morte.

Na primeira vez que fui, compreendi
a festa com o intelecto. Na segunda, comecei a senti-la com o coração.
Agora, às vésperas da terceira ida, entendo que existem
vivências que não se explicam — apenas se vivem.
A Festa da Boa Morte é, antes de tudo, um encontro entre mundos.
Realizada todos os anos, homenageia Nossa Senhora da Boa Morte, figura
católica associada à passagem serena da vida para a
morte, e também representa, dentro da cosmologia afro-brasileira,
o trânsito do Aiyê (o mundo terreno) para o Orun (o mundo
espiritual). É um rito de resistência, memória,
sincretismo e liberdade.
Na época colonial, essas mulheres se organizavam para comprar
cartas de alforria — entre elas, e para elas. Faziam
rifas, banquetes, se apoiavam mutuamente. Ao mesmo tempo, escondiam
suas práticas religiosas de origem africana, pois o candomblé
era perseguido. Por fora, eram vistas como beatas católicas.
Por dentro, seguiam conversando com seus orixás.
Elas pediam proteção. Pediam o fim do sofrimento. Pediam,
ao menos, uma boa morte. E quando a alforria era conquistada, celebravam
com comida farta e samba.
Esse gesto de celebração se repete até hoje:
o momento mais esperado da festa é o samba de roda no Largo
d’Ajuda, quando as irmãs dançam com um contentamento
que nos ensina que a fé também é corpo em movimento.

Para pessoas escravizadas e alforriadas,
a morte era o único caminho possível de volta à
Mãe África — seu lugar de origem, dignidade e
pertencimento. “Depois de tudo o que viveram, a liberdade plena
só viria após a morte,” disse um historiador com
quem falei em minha primeira ida à festa. A morte, para elas,
era libertação.
Entre as celebrações populares do Brasil, poucas têm
o poder simbólico e a densidade histórica da Festa da
Boa Morte. Com mais de 200 anos de existência, ela é
reconhecida como Patrimônio Imaterial da Bahia pelo IPAC. Durante
cinco dias de agosto, Cachoeira — a 120 km de Salvador —
torna-se um centro espiritual e cultural pulsante. Muitos dos viajantes
que cruzaram meu caminho estavam em busca de conexão, de ancestralidade.
PPara eles, não era turismo. Era reencontro.
Em Cachoeira, celebra-se o que é urgente: a força da
mulher preta, a fé como ferramenta de resistência, e
a necessidade de reparação histórica ao povo
negro. Não se trata apenas de uma agenda de eventos. É
uma liturgia viva. As procissões noturnas e diurnas, o enterro
simbólico, a alvorada, as missas, o samba, o caruru, a comida
de axé. Tudo se costura num tecido ancestral. A morte não
assusta: ela se honra, se canta, se dança. E é isso
que me leva de volta a Cachoeira pela terceira vez.