'Fazer em vez de falar' é caminho para o
cristão, disse Papa Francisco em biografia
Por Rodrigo Ratier
- Colunista do UOL

Papa Francisco na Jornada Mundial da Juventude, em 2013, no Rio
de Janeiro
Resumo da notícia
> Papa Francisco lança autobiografia
que destaca fazer em vez de falar como caminho cristão e reforça
seu reformismo pontifical.
> Francisco relata episódios pessoais e enfatiza a importância
do testemunho na fé, criticando a secularização
como desculpa para a relação difícil com a religião.
> O livro defende uma Igreja dinâmica e inclusiva, rejeitando
rigidez, e celebra novos cardeais diversos para refletir a universalidade
do catolicismo
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"Certa vez, um jovem me perguntou:
'Na universidade, tenho muitos amigos que são agnósticos
ou ateus; o que devo dizer para que se tornem cristãos?'. Nada,
respondi. A última coisa que você deve fazer é
falar. Primeiro, deve fazer; então, quem vir como você
vive e administra sua vida é que perguntará: 'Por que
você faz isso?' Nesse momento, você poderá falar.
Com os olhos. Com os ouvidos. Com as mãos. E só depois
com as palavras. No testemunho de uma vida, a palavra vem depois,
é consequência."
O episódio é um entre os tantos narrados em Esperança
- A Autobiografia, a primeira de um papa na história,
lançada no começo deste ano de 2025.
A intenção de Francisco (1936-2025) era que o livro
fosse publicado apenas após sua morte. "Mas o novo Jubileu
da Esperança [nome particular de um ano estabelecido pelo Papa]
e as exigências do tempo o convenceram a difundir agora esta
preciosa herança", escreve o coautor Carlo Musso, jornalista
italiano que desde 2019 entrevistou Francisco e analisou documentos
públicos e privados para ajudar a contar a história.
Escrito em ordem cronológica, o livro começa com o naufrágio
do Mafalda —o "Titanic italiano", saído de
Gênova em 11 de outubro de 1927 com destino a Buenos Aires.
Na tragédia, que vitimou ao menos 300 de seus 1.200 passageiros,
deveriam estar os avós e o futuro pai de Francisco— que,
por falta de tempo para vender seus bens, não conseguiram embarcar
(só o fariam dois anos depois). "Por isso agora estou
aqui", escreveu o papa. "Vocês não imaginam
quantas vezes agradeci à Providência Divina".
Se não traz revelações bombásticas, a
obra, acessível e muitas vezes bem-humorada, reforça
o reformismo de seu papado. O último capítulo, "Sou
apenas um passo", é uma espécie de síntese
dos pilares de 12 anos de pontificado.
Dois meses após ser eleito, ao receber os rascunhos do Anuário
Pontifício de 2013 - periódico com informações
sobre os cardeais, dioceses, bispos e organismos da Igreja -, Francisco
solicitou uma alteração: que se relegassem à
segunda página os títulos historicamente atribuídos
ao papa: Vigário de Jesus Cristo, Sucessor do Príncipe
dos Apóstolos, Soberano, Patriarca. "Pedi que se retirasse
tudo isso e deixasse apenas bispo de Roma. (...) Apresentei-me desse
modo desde o primeiro dia, simplesmente porque é a verdade."
"Sonho com um papado que seja cada vez mais de serviço
e de comunhão", diz ele, a propósito de um encontro
ecumênico para a paz no Oriente Médio celebrado em 2018
com 22 chefes das Igrejas cristãs (católicos, ortodoxos
e protestantes). Uma experiência "intensa", "um
momento lindo", classificou.
A secularização — processo de redução
da influência da religião na vida pública e privada—
ocupa uma parte importante do último capítulo. Francisco
diz que "não há mais secularização
na Igreja hoje do que em outras épocas", e que se as novas
gerações têm uma relação difícil
com a religião isso se deve menos à secularização
do que à ausência do testemunho.
Para Francisco, são os testemunhos —a capacidade de viver
conforme os ensinamentos, outra forma de dizer "fazer em vez
de falar"— que "movem os corações".
"No fim da existência, não nos perguntarão
se fomos crentes, mas apenas se fomos críveis".
A defesa de uma Igreja em movimento ("uma Igreja fechada e assustada
é um Igreja morta") aparece na lembrança do filme
A festa de Babette. "Assisto sempre que posso",
diz Francisco, a respeito da história em que uma governanta
parisiense prepara um banquete para uma comunidade "onde a alegria
não é habitual e os habitantes são tão
obcecados pelas regras que eles próprios impuseram que as coisas
acabam perdendo o sentido". O papa diz que a comemoração
"muda tudo, rompe as correntes, recria a comunidade, abre as
pessoas para a alegria da existência".
Francisco conclui que a Igreja deve rejeitar a rigidez — "o
que não significa cair no relativismo" — e "fugir
da tentação de tentar controlar a fé".
Apontando o que talvez seja a cara de um novo conclave, o papa fala
sobre o perfil corajoso e não de "medo nostálgico"
dos 21 novos cardeais nomeados por ele em dezembro de 2024. Eles vêm
de países como Peru, Argentina, Equador, Chile, Japão,
Filipinas, Sérvia, Costa do Marfim, Irã, Canadá,
Austrália, Itália e Brasil. A diversidade geográfica
é "para que sejam o rosto cada vez mais autêntico
da universalidade da Igreja. E que disseminem a compreensão
de que o título de 'servo' — esse é o sentido
do ministério — deve ofuscar cada vez mais o de 'eminência'".