'Pacientes sempre me falam de familiares mortos
que vêm buscá-los', conta enfermeira de cuidados paliativos
Por Constança Tatsch — São Paulo
Reportagem do O Globo

Hadley Vlahos
Hadley Vlahos defende que a morte
pode ser menos assustadora quando nos informamos e que os pacientes
precisam poder falar sobre ela
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Ninguém quer falar sobre isso.
Ninguém quer pensar nisso. E, no entanto, é a única
certeza absoluta que todos nós temos: a morte. Para a enfermeira
de cuidados paliativos americana Hadley Vlahos, a chegada da nossa
hora só fica menos aterrorizante quando nos educamos sobre
ela.
Em seu livro “Entre a vida e o depois” (Editora Sextante),
Vlahos conta a história de pacientes, essencialmente o fim
delas, e mostra que essa partida também pode ser um momento
de amor e paz. Familiares que vêm nos buscar, animais que entendem
o que acontece, a ausência de energia no corpo no leito de morte,
tudo pode ser triste e bonito ao mesmo tempo. E, quem sabe, menos
apavorante.
Assim, é preciso dar ouvidos aqueles que estão no fim
da vida. Como querem morrer, como se sentem, qual legado querem proteger.
Fugir da morte sim, mas do assunto talvez não.
Cuidados paliativos ainda
são um assunto evitado. Você acha que é desinformação
ou o tabu em torno da morte?
Eu acho que é o tabu, porque as pessoas têm medo. Talvez
seja aquilo de “longe dos olhos, longe do coração”,
se eu não pensar sobre isso, não preciso ter medo. Mas,
na realidade, se você se educar sobre a morte, fica menos assustador.
Isso é importante. Muita gente quando ouve o que eu faço
diz: “Ah, isso é triste” e quer mudar de assunto.
Mas a morte não é algo que possamos evitar. É
a única coisa que temos certeza que vai acontecer. E, então,
se você entra em cuidados paliativos ou tem uma doença
terminal, ter isso resolvido devolve seu poder, você pode decidir
se quer morrer em casa, se quer ficar sem dor, ou seja lá o
que for. E vejo muita beleza nisso.
Você acha que as pessoas
estão despreparadas para quando chega a hora? O que deveriam
pensar, decidir ou conversar com a família?
Sabe, aos 32 anos eu já pensei sobre quando eu estiver
no meu próprio leito de morte um dia, como eu quero que seja,
o que espero ter alcançado. Acho que começar a ter essas
discussões é muito importante, especialmente em relação
ao medo da morte. Vou dar um exemplo: eu tinha uma paciente jovem,
na casa dos 50 anos, e um câncer terminal. E uma amiga foi visitá-la.
Ela começou a tentar conversar com a amiga sobre sua morte
e o que queria que fosse feito depois. E a amiga dizia: “Não
precisamos falar sobre isso”. Com amor e boas intenções,
mas dizendo “não vamos falar sobre isso”, “você
é forte”, “é uma guerreira”, esse
tipo de coisa. Mais tarde, eu conversei com a paciente e ela me explicou
que queria falar sobre o legado que ia deixar.
Deve ser solitário enfrentar algo sobre
o qual não se consegue conversar.
Sim, com certeza. Então, eu sempre incentivo familiares e amigos
a dar espaço para os pacientes falarem sobre a morte, ainda
que seja desconfortável.
A tendência é dizer que vai ficar tudo bem, que
a pessoa vai sobreviver. Mas em determinada circunstância, isso
deixa de ajudar, certo?
Exato, não ajuda nada. Principalmente quando alguém
chega ao ponto de precisar de cuidados paliativos, de desistir de
tratamentos, como quimioterapia, ir ao pronto-socorro, coisas assim.
Quer dizer, a pessoa toma a decisão consciente de que quer
assumir o controle da própria morte e decidir como vai ser.
É surpreendente ver pessoas dizendo “você vai superar”.
Sempre que possível, precisamos aceitar os fatos e, em vez
de falar em superar, propor “vamos reviver algumas memórias
felizes juntos?”. Lembro-me do caso de uma avó que tive
que conversar com os parentes e dizer que ela estava preocupada com
a família depois que partisse, porque ela era a grande matriarca,
sabe? A filha foi muito receptiva, disse que realmente não
tinha pensado dessa forma, envolvida em sua própria dor de
perder a mãe. Mas aí ela conversou com a senhora e prometeu
continuar com os Natais em família, essas coisas. Pude sentir
como isso tirou um peso de cima da paciente.
No seu livro, diversas vezes você relata pacientes que
viam um parente próximo já falecido no final da vida.
Você vê isso como algo espiritual ou poderia haver alguma
explicação neurológica?
Eu, pessoalmente, acredito que é espiritual, por tudo o que
vivenciei. Independentemente de crenças espirituais, religiosas,
ou mesmo nenhuma crença, eu vejo pacientes dizendo as mesmas
coisas sobre esses familiares que vêm buscá-los. Isso
sempre acontece. E eles estão sempre calmos, em paz e felizes,
e é por isso que acredito que não seja uma alucinação,
porque alucinações podem ser assustadoras, já
vi. Mas, nesses casos, são sempre familiares e amigos trazendo
uma sensação de paz e calma. Nunca vi ninguém
com medo dessa situação. E os pacientes usam a mesma
terminologia, sobre precisar arrumar as coisas para uma viagem ou
que estão prestes a ir a algum lugar. Mas, ao mesmo tempo,
se isso for algo que nosso cérebro faz no fim de nossas vidas,
também me sinto confortada por saber que meu cérebro
me consola no fim. Se estarei com pessoas que amo na minha própria
mente, serei feliz.
E para você como é?
Às vezes eles nem me dizem, e tenho que juntar as peças.
O melhor exemplo que posso dar é que se você e eu estivermos
em uma sala conversando uma com a outra, e outra pessoa entrar, eu
não preciso dizer à outra pessoa que está entrando
que você está na sala. É assim, eu apenas os vejo
conversando com alguém. Aí pergunto, “você
está falando com alguém”? E eles explicam que
sim e quem está ali e eles também falam comigo, o que
eu acho interessante. Eu não consigo ver aquela pessoa ali,
mas eles conseguem, e o parente também consegue me ver.
Você acha que eles entendem o que significa essa “viagem”
que estão prestes a fazer?
Alguns entendem, outros não. Acho que esses pacientes estão
com um pé no outro mundo, um pé no nosso. Então,
estão meio que passando por um período intermediário,
dormindo até 20 horas por dia. E então, quando estão
acordados, às vezes estão conversando com esses entes
queridos que já faleceram e também conversam conosco.
Então, alguns parecem entender e aceitar isso. E outros eu
realmente não consigo dizer se têm consciência
do que significa.
Você conta a história de um homem que morre com
o cachorro no colo. Você acha que cães e gatos conseguem
entender o que está acontecendo, se a pessoa vai morrer ou
já morreu?
Tenho 100% de certeza de que conseguem. Tinha um paciente que eu conhecia
bem, já o atendia havia seis meses e naquele momento estava
vendo-o todos os dias. E a esposa contou que todos estavam dormindo,
aí ela verificou o paciente e ele estava respirando. Cinco
minutos depois o cachorro começou a latir como um louco. Ela
foi ver o marido e ele tinha morrido. E o cachorro era tão
quieto que eu nem sabia que eles tinham um!
Você diz que mesmo à distância, sem fazer
os exames, podia sentir se a pessoa havia morrido ou não. Como
é isso? Como saber que alguém não está
mais lá?
É difícil explicar. Acho que o melhor jeito é
o que eu sempre observei (e o motivo pelo qual também acredito
que há algum tipo de espiritualidade): no final da vida as
pessoas podem ter até um minuto entre as respirações.
E, claro, nunca se sabe quando é o último suspiro até
que o próximo não venha. Mas todas as vezes em que estive
nesses momentos, o familiar sabe antes e começa a chorar. Todos
sentem o momento. Acho que energia é a melhor maneira de descrever.
Não é algo ruim. É a falta de uma energia. Você
consegue perceber quando olha para alguém que a pessoa não
está mais lá. É bem óbvio, mesmo que pareça
a mesma de sempre.
Que tipo de paciente tem mais dificuldade de encarar a morte?
Honestamente, é aquele cuja família aceita ou não.
Geralmente, para pessoas mais velhas costuma ser um pouco mais fácil
para a família. É mais difícil quando falamos
de pessoas mais jovens e, claro, adolescentes, crianças, aí
família é muito resistente. Ou, quando, após
tratamentos, o paciente decide pelos cuidados paliativos, mas os familiares
não concordam. Nessas situações eu sinto que
é mais difícil para todos.
Depois de todo esse tempo, você ficou com mais medo
ou menos medo da morte?
Eu não tenho medo de morrer. Mas já tive muito, especialmente
quando trabalhei na emergência. Fui estagiária antes
de me tornar enfermeira. E era aterrorizante. Para ser sincera, aquilo
me deixou com muito medo. É bom saber que existe outro jeito
para a morte. Espero estar em cuidados paliativos quando chegar minha
hora. Eu pude ver como a morte pode ser tranquila.
Existe alguma maneira de tornar a morte menos assustadora?
O medo do desconhecido pode ser muito grande. Nosso cérebro
pode ir automaticamente para a pior situação possível.
Tipo, morrer em um ataque de tubarão ou algo assim horrível,
mas, na realidade, a grande maioria de nós vai morrer em uma
situação de cuidados paliativos, em que sua dor será
controlada, você pode ficar confortável e pode estar
onde quiser. Não é realmente assustador se você
se informar e refletir sobre isso.
Você ainda chora quando perde um paciente?
Sim, mas não com tanta frequência. Não porque
eu tenha ganhado distanciamento, mas porque agora sinto que os verei
novamente um dia. Então, parece um pouco menos definitivo.