Filósofo Abraham J. Heschel defende que
ninguém pode perdoar ofensa cometida contra outra pessoa
Reportagem de Juliana de Albuquerque / Folha de São Paulo
Juliana de Albuquerque - Escritora, doutora em filosofia e literatura
alemã pela
University College Cork e mestre em filosofia pela Universidade de Tel
Aviv

Em janeiro, escrevi para a Folha a
respeito de "The
Sunflower: on the Possibilities and Limits of Forgiveness"
(o girassol: sobre as possibilidades e os limites do perdão),
livro de 1969 de Simon Wiesenthal (1908-2005), sobrevivente do Holocausto
e célebre caçador de nazistas.
Dividido em duas partes, o livro compreende uma narrativa baseada
nas experiências do autor enquanto prisioneiro de um campo de
concentração, além de comentários escritos
por outros sobreviventes e personalidades diversas.

___________________________________________________________________________________
Em seu relato, Wiesenthal comenta
que, durante a guerra, ele e outros prisioneiros foram escalados para
limpar um hospital de campanha nos arredores da cidade de Lviv, na
atual Ucrânia. Lá chegando, ele foi levado ao quarto
de um jovem oficial nazista que, gravemente ferido e ciente da proximidade
da morte, desejava pedir perdão a um judeu pelos crimes que
havia cometido contra membros da comunidade judaica.
Na ocasião, chocado com a confissão
do nazista e sem saber se aquilo tudo não era uma armadilha,
o autor deixou o quarto em silêncio. Anos mais tarde, porém,
ao refletir sobre o episódio, ele resolveu questionar alguns
dos seus conhecidos: "E você, o que teria feito no meu
lugar?".
Entre os comentários ao relato
de Wiesenthal, o meu predileto foi escrito pelo filósofo Abraham
J. Heschel (1907-1972), amplamente reconhecido pelo seu ativismo em
prol dos direitos civis nos Estados Unidos das décadas de 1950
e 1960.
Em resposta a Wiesenthal, Heschel
escreve que não teria perdoado o oficial nazista. No entanto,
o que mais me chamou atenção no texto de Heschel não
foi exatamente a sua conclusão, mas a maneira como ele construiu
o seu raciocínio, utilizando-se do mesmo gênero textual
de Wiesenthal, isto é, a partir de uma narrativa.
Antes de dizer o que ele teria feito
no lugar do sobrevivente, Heschel relata uma situação
vivida por Chaim Soloveitchik (1853-1918), o rabino de Brest, na atual
Belarus, muito admirado tanto pela sua afabilidade quanto pelo seu
grande conhecimento do Talmud.
Certa vez, em um trem que partia lotado
de Varsóvia para Brest, o rabino sentou-se junto a um grupo
de caixeiros-viajantes que passava o tempo a jogar cartas. Um deles,
incomodado pela postura de Soloveitchik, que nunca havia jogado baralho
e se recusava a participar das apostas, resolveu enxotar o rabino
do vagão.
Sem conseguir encontrar outro assento vago, Soloveitchik passou horas
em pé até alcançarem Brest. Já na cidade,
para a surpresa do caixeiro-viajante, que ignorava a sua identidade,
o rabino foi recebido por uma multidão de admiradores.
Ao tomar conhecimento de que o homem
que ele havia agredido era o rabino de Brest, o caixeiro-viajante
apressou-se em lhe pedir desculpas, mas todos os seus pedidos e promessas
de caridade foram refutados pelo rabino.
Vendo que o caixeiro-viajante estava
claramente angustiado com toda aquela situação, o filho
mais velho de Soloveitchik resolveu questionar o pai sobre a dureza
da sua decisão, ao que o rabino respondeu: "Meu filho,
eu não tenho condições de perdoá-lo. Ele
não sabia quem eu era. Ele ofendeu um homem comum. Deixe que
o caixeiro-viajante vá até ele e lhe peça perdão".
Para Heschel, essa anedota nos ensina
que ninguém tem o direito de perdoar uma ofensa cometida contra
outra pessoa. Há, no entanto, algo de extraordinário
na maneira como ele opta por também contar uma história
para comunicar o seu posicionamento. Isto é assim pois uma
narrativa possui espaços vazios e inconsistências que
abrem margem para a discordância.
Aqui, por exemplo, ao terminar de
ler a história contada por Heschel, alguém poderia questionar
se o rabino de Brest, por mais excepcional que fosse, também
não seria um homem como outro qualquer. Isso, por sua vez,
complicaria a conclusão do filósofo, da qual eu compartilho,
mas teria a vantagem de prolongar a nossa discussão com o seu
texto, ampliando, a partir do contraditório, o nosso entendimento
sobre o perdão e os seus limites.