Primeira brasileira a fazer parte
do conselho da prestigiada Sociedade de Clínica Oncológica
Americana (ASCO), a médica Clarissa Matias, também oncologista
do Grupo Oncoclínicas/Hospital Santa Izabel, é acostumada
a fazer uma pergunta bem pessoal aos pacientes que a encontram para
um tratamento de câncer: questiona se a pessoa em questão
tem religião ou espiritualidade definida, para a surpresa de
alguns.
A conversa, ela explica, é atalho para que a os homens e mulheres
em tratamento se sintam mais compreendidos e respeitados diante de
um período em que haverá uma série de mudanças
drásticas na rotina. O interesse pelo tema é tamanho
que Clarissa acaba de lançar sua segunda publicação
sobre o assunto, chamada “Encontros com Espiritualidade",
pela Editora DOC. O livro é fruto de lives realizadas
desde a pandemia da Covid-19 para tratar de temas como fé,
amor (a si e aos outros) e relações familiares. Ao GLOBO,
Clarissa fala sobre como a medicina tem se aberto às mais diversas
crenças e como os pacientes podem se beneficiar desse tipo
de conversa. “A espiritualidade pode estar relacionada à
resiliência de quem passa pelo tratamento”, afirma.
De que maneira a medicina
tem se aberto à espiritualidade?
Há pouco eu estava com um artigo que saiu recentemente sobre
espiritualidade como prescrição médica. Temos
hoje uma profusão de estudos (sobre a temática), uma
quantidade enorme de análises que estão sendo feitas.
Muitos médicos, durante bastante tempo, nem mesmo assumiam
que tinham algum tipo de religiosidade, eles achavam que não
precisavam disso para prática da medicina. Hoje estamos em
um caminho diferente. Nos últimos anos, o aumento de trabalhos
científicos sobre o tema tem ocorrido de maneira exponencial.
Há alguns anos, no congresso mundial da ASCO, um encontro muito
tradicional de especialistas, teve uma sessão plenária
especialmente sobre o tema da espiritualidade. Foi muito disruptivo.
Como essa integração pode ser positiva ao paciente?
Essa questão da espiritualidade pode estar atrelada à
resiliência de quem está sob tratamento. O período
de doença, em qualquer especialidade, é difícil.
Existe para aquela pessoa uma cisão entre uma vida de normalidade
e um período em que você tem que fazer várias
adaptações no seu dia-a-dia, o que também incluem
mudanças na família. Eu sempre pergunto ao paciente
se ele tem espiritualidade ou uma prática religiosa. Isso pode
ser importante até para decisões terapêuticas,
algumas religiões não permitem transfusões sanguíneas,
por exemplo. Em outros casos, é preciso respeitar certos dogmas.
É importante saber isso para que exista diálogo com
o paciente dentro do consultório.
Tem quem se surpreenda com esse tipo de conversa?
Essa semana mesmo uma paciente me contou que era a primeira vez que
alguém tinha esse tipo de abordagem com ela. A pessoa, nesse
sentido, se sente acolhida. Nunca tratei ninguém que se incomodou
com esse tipo de pergunta, ou se sentisse invadido. Claro, tem quem
diga: sou ateu e não pratico nada relacionado à espiritualidade.
E tudo bem. O mais importante é o respeito nessa relação.
O feedback dos pacientes é extremamente positivo.
Teve medo de se dedicar à espiritualidade? Que sua
carreira fosse de alguma forma prejudicada por isso?
Eu sou espírita praticamente desde que nasci. Cresci em uma
casa de religiosidade muito grande. Dia desses encontrei um diário
meu que escrevi aos 12, 13 anos de idade e lá havia menções
a isso. Já médica, quando eu fui presidente da Sociedade
Brasileira de Oncologia Clínica, nós publicamos o consenso
sobre espiritualidade (o documento explica, por exemplo, a definição
de religião e espiritualidade, além de elencar alguns
indicadores que pontuam que o paciente se beneficia ao falar sobre
o tema). Saiu um pouco depois de um consenso semelhante publicado
pela Sociedade Brasileira de Cardiologia. Sempre fui muito bem recebida
ao falar sobre o assunto, lançamos o livro em inglês
e sempre levo comigo cópias, dou de presente. É um tema
para o qual as pessoas querem se abrir. Nosso plano é lançar
um livro do tipo por ano.
Existe um senso comum de que se a pessoa estiver muito ligada
à religiosidade não seguirá as determinações
da ciência. Como funciona isso?
Não é o tipo de situação que eu vejo em
consultório, pelo contrário. Existe essa interpretação
das pessoas que são Testemunhas de Jeová sobre não
realizar transfusões de sangue. Aqui no Hospital Santa Izabel,
em Salvador, onde sou líder do centro de câncer, abraçamos
a causa de quem quer fazer tratamento sem (transfusão) de sangue,
com a preparação correta. É uma bandeira importante
para nós.
Então, para o paciente não há separação
entre fé e medicina?
Não, não andam separadas. E os novos trabalhos estão
demonstrando isso.
A senhora já falou anteriormente que acha que a prevenção
ao câncer é um assunto que recebe menos atenção
do que deveria. Quem está deixando de falar sobre o assunto?
Falar sobre câncer é tarefa de todo mundo. Tem que começar
dentro de casa, com os exercícios físicos que cada um
pode fazer, acertando a dieta, reduzindo a ingestão de comida,
deixando de fumar. Também é um tema que não pode
estar fora das escolas, dos programas de governo, das sociedades.
Esse assunto precisa ser encarado por todos com seriedade. Até
porque 30% dos cânceres são preveníveis.