23/09/2024
Por Vanessa Centamori - Revista Galileu - Ciência
Reportagem da Revista Galileu
- A GALILEU entrevistou cientistas brasileiros que investigam eventos
de quase-morte e de transcendência para entender desafios da chamada
“ciência de fronteira”
Como a ciência estuda 'experiências
não-ordinárias'? — Foto: Pablo Rebolledo/Unsplash
Todo mundo conhece alguém que diz ter vivido
algo “fora do comum” — seja ter uma visão,
uma experiência
de quase-morte ou sentir a presença de um familiar
que morreu. É provável que até mesmo você,
leitor, possa ter um caso do tipo para contar.
Conhecidas como “experiências não-ordinárias”
(em inglês, non ordinary experiences ou NOEx), essas ocorrências
são estudadas pela “ciência de fronteira” ou
“ciência maverick”, que abrange áreas pouco
ou nada exploradas. Ainda que existam muitos questionamentos e perguntas
em aberto, certos resultados dessas investigações aparecem
em artigos de periódicos científicos de renome. Há
exemplos publicados em revistas como PLOS ONE,
The Lancet,
Transcultural Psychiatry,
Journal of Neuroscience
e BMJ Supportive & Palliative Care.
Mas que tipo de experiência se enquadra nessa definição?
O que é uma experiência
não-ordinária
“Experiências não-ordinárias
são aquelas que transcendem as vivências comuns do dia
a dia, e podem estar associadas ou não a estados alterados de
percepção ou consciência”, define por e-mail
à GALILEU o neurocientista brasileiro Jorge Moll, que faz estudos
sobre o tema. “Elas podem incluir desde fenômenos de caráter
espiritual ou paranormal, visões, até sensações
de unidade com o universo e de experiência de amor ou deslumbramento”.
Jorge Moll durante o NOEx Workshop, em São
Paulo
— Foto: Ciência Pioneira/Reprodução/Youtube
Moll é cofundador do Instituto
D'Or e idealizador da iniciativa Ciência Pioneira. A organização
promoveu, entre os dias 29 e 31 de agosto, na cidade de São Paulo,
um evento internacional para discutir a pesquisa na área: o NOEx
Workshop: Transdisciplinary Methods for Measuring Nonordinary Experiences.
Durante palestra no evento, o psiquiatra carioca Alexander Moreira-Almeida
observou que, embora seja amplamente adotado, o termo “experiências
não-ordinárias” não é 100% adequado
para definir esses acontecimentos, também chamados de “eventos
anômalos”, “espirituais”, “paranormais”
e “psíquicos”.
“Essas experiências não são incomuns [ou não-ordinárias].
Talvez o incomum seja não passar por elas”, afirmou o Professor
Titular de Psiquiatria da Faculdade de Medicina da Universidade Federal
de Juiz de Fora (UFJF).
Alexander Moreira-Almeida durante o NOEx Workshop,
em São Paulo
— Foto: Ciência Pioneira/Reprodução/Youtube
Moreira-Almeida diz estimar que cerca
de 94% da população brasileira já passou por um
acontecimento do tipo. É o que sugere um estudo
conduzido por ele e outros cientistas brasileiros com mais de
mil pessoas no Brasil.
Metade dos participantes da pesquisa,
publicada em 2022, declarou já ter “sentido a presença
de alguém morto”. Além disso, 70% disse já
ter experimentado pelo menos uma vez uma “união com Deus
ou algo superior”.
“Isso mostra que esses acontecimentos
fazem parte da experiência humana, e que devemos entender isso
melhor”, disse o pesquisador, que é coautor do livro Ciência
da vida após a morte (Ampla Editora),
traduzido para quatro idiomas e semifinalista do Prêmio Jabuti
Acadêmico 2024.
Conflito entre ciência e
religião
No ramo científico dos NOEx, que estuda fenômenos
com possíveis interpretações religiosas, costuma
ser mais complicado discernir as barreiras entre ciência e religião.
À GALILEU, Alexander Moreira-Almeida afirma que “caber
à ciência descrever o que acontece no mundo” e “tentar
entender experiências que as pessoas têm”. Isto é,
que tipo de pessoas são essas, os impactos dos eventos e as explicações
que podem estar por trás deles.
Os cientistas podem averiguar se uma experiência de quase-morte,
por exemplo, não passa apenas de uma fraude, ou se é uma
alucinação vinda de algum mecanismo cerebral. Outra possibilidade
é uma doença mental, ou mesmo um desejo do inconsciente,
no qual a pessoa projeta determinado fenômeno devido a algum problema
cognitivo.
“Essas são possíveis explicações convencionais,
mas também existem as explicações não convencionais,
que também são científicas”, acrescenta Moreira-Almeida.
Ele cita como exemplos a investigação de uma percepção
extrassensorial e a hipótese de que a mente humana possa, de
alguma forma, existir além do cérebro.
Metodologia rigorosa
Para manter o rigor científico em seus estudos,
os pesquisadores separam os fatos da vivência dos participantes.
Isto envolve entender o que aconteceu com eles (sensação
corporal de “visão do além”) e o que é
a interpretação individual que eles tiram do acontecimento
(uma “mensagem de Deus”).
Em resumo, o estudo dos NOEx usa dados fisiológicos
dos voluntários, assim como métodos científicos
qualitativos e quantitativos, para fazer uma análise objetiva
das interpretações das próprias pessoas, que são
subjetivas. É o que explica o neurocientista Jorge Moll.
“Enquanto a religião lida com as
interpretações de sentido e valor espiritual dessas vivências,
a ciência busca compreender seus correlatos psicológicos
e contextuais, e características biológicas e fisiológicas”,
afirma.
Impactos na saúde mental
Em um estudo publicado em 2023 na revista
Psychology of Consciousness: Theory, Research, and Practice, Moll e
outros cientistas brasileiros avaliaram 878 pessoas do Brasil que passaram
por diversas “experiências não-ordinárias”.
Os autores notaram que os eventos afetaram de formas diferentes a saúde
mental dos participantes.
O neurocientista conta que, em certos contextos, os NOEx podem auxiliar
no bem-estar mental, enquanto, em outros, podem estar associados a “sofrimento
psíquico, dependência de suporte e acolhimento pelo grupo
social, cultural e religioso”.
Mas, na maioria das vezes, o impacto
dessas experiências é muito positivo, conta Alexander Moreira-Almeida.
“A pessoa tem a visão de um parente que já morreu,
ou que lhe dá um sentido profundo, isso [gera] um maior bem-estar.
Mas podem ocorrer situações [menos comuns] em que a pessoa
fica amedrontada com a experiência, especialmente se acha que
ela não é possível de acontecer”, diz o médico.
Ou seja, a abertura para vivenciar e interpretar situações
do tipo de forma positiva também conta.
NOEx podem deixar marcas no cérebro
Segundo Jorge Moll, eventos de transcendência
ou de estado elevado da consciência podem estar atrelados a mudanças
cerebrais envolvidas na percepção de si e da realidade
externa, como o córtex pré-frontal. Também podem
ser afetados o córtex parietal e os lobos temporais mediais,
relacionados à percepção de tempo e espaço.
Junto a outros pesquisadores, o neurocientista
já publicou pesquisas sobre os estados relacionados a emoções
sociais e julgamentos éticos ou morais.
O próximo passo de sua investigação é explorar
o “estado de transcendência” e outros “eventos
não-ordinários”.
“Utilizamos técnicas como
a ressonância magnética funcional (fMRI) e fisiologia periférica
(eletrocardiograma, condutância elétrica da pele, eye-tracking
e pupilometria) para monitorar diferentes estados de consciência
induzidos por estímulos sensoriais ou durante rituais”,
ele cita.
Moreira-Almeida também
está investigando o estado de transe, avaliando, mais precisamente,
os genes presentes em uma população de médiuns.
Em 2012, ele e colegas publicaram um estudo na revista PLOS ONE
que examinou a atividade cerebral de dez psicógrafos enquanto
eles escreviam — tanto em estado de transe dissociativo quanto
de não-transe.
“Você esperaria que o texto mais complexo exigiria mais
funcionamento cerebral, mas foi ao contrário”, observa
o cientista. “O médium, em transe, produziu um texto mais
complexo com menos atividade cerebral do que o texto que ele produziu
em estado normal de consciência”.
O desafio do estigma
Não é de agora que os cientistas estudam
experiências “não-ordinárias”. Por exemplo,
a possibilidade da existência de médiuns já interessava,
no final do século 19 e início do 20, alguns dos pioneiros
da psicologia e psiquiatria modernas, como William James, Theodore Flournoy
e Carl Gustav Jung.
Segundo contou o psicólogo Everton Maraldi
em sua palestra no NOEx Workshop, muitos autores defendiam uma interpretação
da mediunidade como doença, associando-a à histeria. Só
na segunda metade do século 20 que surgiu uma nova perspectiva,
baseada em uma abordagem mais socioantropológica, liderada por
nomes como Roger Bastide, Melville Jean Herskovits, Erika Bruggenjohn.
Everton Maraldi no NOEx Workshop, em São Paulo
— Foto: Ciência Pioneira/Reprodução/Youtube
Apesar dos avanços nas décadas seguintes,
a investigação da mediunidade e de outros fenômenos
“não-ordinários” ainda desperta estigma dentro
da própria comunidade científica.
“Existe um certo bloqueio em achar que esses fenômenos
são muito raros, são irrelevantes para as pessoas, que
seriam fruto apenas de superstição de indivíduos
que não têm conhecimento científico, não
têm boa escolaridade, ou fruto de doença mental. E que
um cientista sério não poderia estudá-los”,
comenta Alexander Moreira-Almeida.
Jorge Moll concorda que os NOEx são ainda
pouco explorados — “especialmente no ‘mainstream’
científico ocidental”. Para ele, estudar como essas experiências
interagem com a saúde mental e outras dimensões humanas
pode ajudar a criar terapias “que reconheçam e acolham
experiências de transcendência”, em vez de utilizar
um “viés exclusivamente psicopatológico”.