Carpinejar faz 51 anos nesta segunda-feira, 23. Nascido em Caxias
do Sul, filho dos escritores Carlos Nejar, imortal da Academia Brasileira
de Letras, e Maria Carpi, e colunista da Zero Hora, ele
já publicou 51 livros, entre volumes de crônica e poesia
e títulos para crianças que, somados, atingiram a
marca de 850 mil exemplares vendidos.
Em Manual do Luto, lançado agora
pela Bertrand, o autor reúne frases, conselhos e consolos
para pessoas que estão vivendo uma perda ou procurando formas
de conviver com ela. Sua ideia, ele conta, era combater o preconceito
que cerca os enlutados e contestar algumas “inverdades”
sobre o processo de elaboração do luto.

“A primeira delas é que, com o passar do tempo, o
luto dói menos. Vai doer sempre. Alguns momentos mais do
que outros, em especial nas datas comemorativas. A segunda é
que você se recupera do luto. Você acomoda o pesar,
mas ele não desaparece”, diz Carpinejar,
autor ainda de Cuide dos Seus Pais Antes Que Seja Tarde
e de Me Ajude a Chorar, nesta entrevista
por e-mail ao Estadão.
Trata-se de um livro que parte de suas inquietações
sobre vida e morte, e sobre relações, mas que dialoga
com outro projeto dele. Carpinejar é parceiro de uma empresa
que atua no segmento de cemitérios, crematórios e
serviços funerários e escreve, semanalmente, uma carta
que é enviada gratuitamente aos membros do Clube dos Corações
Solidários.
Se ele pudesse dar um conselho aos leitores, seria: “Viva
como se não houvesse amanhã, honrando o seu passado”.
Confira a entrevista.
Qual foi o seu objetivo ao escrever livros como Manual
do Luto e Depois é Nunca? Como se preparou
para isso? E qual é a relação deles com o projeto
Clube dos Corações Solidários?
Ambos partem do princípio de que nenhum sofrimento é
bobagem. Não menospreze o que é psicológico.
O psicológico é muito mais potente do que o físico.
Depois é nunca foi uma resposta imediata ao período
de tantas perdas da covid. Nunca a ameaça de morte esteve
tão onipresente. Foi quando eu me debrucei sobre a solidão
da saudade. Você não tem como dividir a saudade com
mais ninguém. Ela é particular, só você
lembra de alguém daquele jeito. Seu repertório de
evocação é construído de detalhes e
cenas absolutamente individuais. O que é valioso para você
talvez não seja importante para o outro.
Em seguida, eu me aprofundei nas implicações do luto
com o Manual. Quis escrever um livro com a intimidade sussurrada
de cartas, para combater o preconceito que ronda o enlutado, que
não tem nem tempo nem espaço para sofrer, para sentir
falta de alguém. É coibido a se recompor rapidamente,
a seguir adiante, como se o passado não existisse. A amnésia
de viver para frente (jamais para os lados ou para trás)
nos esvazia de gratidão.
No Clube dos Corações Solidários, grupo gratuito
de cartas, com 28 mil inscritos, encontrei a entonação
adequada para as reflexões. A correspondência semanal
determinou o espírito fluido do livro.
O que quer mostrar aos leitores e o que aprendeu no processo
de elaboração desses livros?
Enfrentar duas inverdades centrais, que vigoram para evitar o trabalho
de consolo, de conforto, de apoio e amparo permanente aos enlutados.
Por pressa e preguiça, fizemos vista grossa para o sofrimento
recorrente de quem perdeu alguém, que necessita verbalizar
a sua história, as experiências marcantes com o outro.
A primeira delas é que, com o passar do tempo, o luto dói
menos. Vai doer sempre. Alguns momentos mais do que outros, em especial
nas datas comemorativas. A segunda é que você se recupera
do luto. Você acomoda o pesar, mas ele não desaparece.
O luto muda os nossos olhos para sempre. Você poderia se recuperar
do luto se permanecesse o mesmo antes da perda. Como você
se transformou, impactado pela ausência do ente querido, não
tem como voltar a ser quem era antes. O luto é para a vida
inteira, não é passageiro, não é uma
doença, não é curável. A diferença
é que, no começo do processo, você é
carregado pela dor, depois é você que a carrega.
Parece que o luto passa simplesmente porque as pessoas são
proibidas de externá-lo.
Quem você era no começo da sua carreira, e
quem você é hoje? O que buscava e o que busca na literatura?
Sinceridade emocional. Você vai aprendendo a se essencializar
com o tempo, a fazer uma bagagem cada vez menor. Até se conformar
com a roupa do corpo. Tudo o que li ou estudei me serviu para não
ostentar na linguagem, para uma comunicação feita
da singeleza. Eruditos são afetados, sábios são
simples.
Como você classifica a sua literatura? E como classifica
Manual do Luto, em termos de gênero e conteúdo?
Conficções. Confissões como se fossem ficções.
A memória é invadida pela imaginação.
Não existe memória pura. Você vai fantasiando
como forma de suportar os fatos, como forma gradual de aceitar a
realidade. Manual do Luto é ensaio sobre
todas as dores do mundo: perda dos pais, do irmão, do filho,
dos amigos, do marido ou esposa. Tem um tanto de cotidiano. Tem
um outro tanto de intuição.
Manual do Luto está neste
momento em primeiro lugar entre os mais vendidos da Amazon. O que
acha que isso significa?
Que as pessoas estão com coragem de amar, sem se reduzir
aos condicionamentos e censuras do tabu. É um equívoco
o veto silencioso da homenagem. Como se a morte atrapalhasse nossa
rotina. O que você mais quer da vida? Ser lembrado, não
ser esquecido. Então, se não valorizarmos o luto,
qualquer existência não terá sentido nenhum.
Você será apagado logo ao morrer. Há aquela
máxima “a pessoa só morre definitivamente quando
ninguém mais menciona o nome dela”. Precisamos falar
de nossos mortos, com os nossos mortos. Virar a página? Só
se for para marcar a página, dobrar o canto dela para infindáveis
releituras.
O que a morte significa para você?
Que ela está viva dentro de mim. Um dia ela morre em mim,
e eu nasço do outro lado. Acredito que o corpo vira alma,
e a alma vira corpo.
Já viveu esse processo de luto?
Experimento desde cedo, desde a infância, com a morte dos
avós. Quando sonho com eles, tenho convicção
de que me visitaram. Os conselhos continuam com os sonhos. Ao despertar,
chego a sentir o cheiro de hortelã no quarto.
Você pensa na morte - na sua, na de pessoas próximas
e amadas? E de que forma você se prepara para isso?
O medo de morrer nasce com o filho. Antes deles, eu era inconsequente.
Passei a cuidar de mim para estar mais com eles, para não
perder nenhum capítulo importante de suas formações.
De que modo eu me preparo? Pela paz dos momentos imperfeitos. Esbarrões
já são abraços para mim. Aproveito cada olhar,
cada pequena pausa.
Não há rascunho. Uma vez escrito pode ser lido, pode
ser vivido. Eu me importo em ser possível, em ser real, em
estar ali sem nenhuma compensação ou adiamento. Só
espera recompensas quem ainda não viveu. Nosso erro é
somente querer o tempo idealizado, o tempo inteiro, as cédulas
da existência, e assim desprezamos as moedas da existência,
os 15 e 20 minutos. Se você não tem uma hora para encontrar
um amigo ou familiar, acaba não indo. Perde de estar junto.
Não se dá conta que o essencial é a intensidade,
o tempo emocional, o quanto que consegue ficar atento e entregue
por alguns minutos. Por exemplo, o recreio de uma escola tem 15,
20 minutos, e você lembrará que fazia tudo com ele:
lanchava, jogava bola, usava o banheiro, estudava para prova, conversava
com os amigos, recuperava um dever pendente. Quantos recreios estão
inativos em nossa vida? Todo mundo tem 15 ou 20 minutos para dar,
então não deixe de aparecer.
Existe vida após a morte para quem fica?
Sei que há várias vidas por aqui. Existem várias
vidas antes de morrer. Você vai se interpretando diferente
de acordo com o que procura. Ciclos são existências
paralelas, vão nos ensinando a despedida.
Você fala sobre colocar o luto a favor de um propósito.
Qual propósito?
Colocar a dor para trabalhar, por um propósito. Você
pode realizar projetos inacabados daquele que partiu. Ou uma viagem,
ou uma promessa feita durante a relação. Os projetos
não morrem. A melhor forma de atravessar o luto é
cumprindo algo que a pessoa deixou de fazer. Há a herança,
o patrimônio material, e há o legado, o quanto os bons
exemplos do falecido determinam as suas ações.
Estamos falando de morte, de como encarar a morte, mas
tudo começa de uma certa forma com como vivemos a vida. Um
luto pode ser recheado de saudade ou ser recheado de culpa, de arrependimento.
Você concorda? Alguma receita para viver melhor a vida e encarar
melhor as despedidas?
Culpa é se arrepender de tudo o que não aconteceu,
de tudo o que deixou de fazer por medo, ou por comodismo, ou por
uma miragem que teria todo o tempo pela frente. Saudade é
feliz porque significa que esteve presente, tem o que lembrar. Na
saudade do luto, você não chora apenas pelo outro,
você ri alto, de um pensamento, de uma lembrança, de
uma conversa, de uma situação engraçada, de
uma implicância, de um gesto de carinho. Você se pega
rindo sozinho. A saudade também ri.
Você escreve sobre relações - com a
família, os pais, os amores, os amigos. E sua obra faz bastante
sucesso. O que isso também quer dizer? As pessoas estão
precisando mais de apoio, de orientação, de um caminho?
Eu tenho trabalhado para derrubar estigmas na família, a
favor do cuidado dos pais na velhice, ou de um amor independente,
alicerçado na gentileza. O romantismo cria uma ideia equivocada
de dependência: fazer tudo junto a tal ponto que sacrifica
o contato individual com os amigos e a família. No fim, você
não tem mais nada seu, tampouco sabe quem se tornou na relação.
O romantismo catequiza para a renúncia e sacrifício,
você prova amor deixando de ser, abdicando de seus prazeres
pessoais. Nele, erros constantes são pagos com a fiança
das juras, presentes e surpresas. É conspirar contra a honestidade
diária.
Se pudesse dizer uma coisa aos seus leitores, sobre vida
e morte, o que seria?
Viva como se não houvesse amanhã, honrando o seu passado.