Cientistas realizam congresso para definir se a consciência
é decifrável
Cientistas fizeram um ‘congresso’
este ano para testar as duas teorias principais sobre ela
O Estado de S. Paulo
ELIZABETH FINKEL

A ciência apresenta rotineiramente teorias
e depois as ataca com dados até restar apenas uma. Na incipiente
ciência da consciência, ainda não surgiu uma
teoria dominante. Mais de 20 ainda são levadas a sério.
E não é por falta de dados. Desde que Francis Crick,
o codescobridor da dupla hélice do DNA, legitimou a consciência
como um tema de estudo há mais de três décadas,
os pesquisadores têm utilizado uma variedade de tecnologias
avançadas para sondar os cérebros dos indivíduos
submetidos aos testes, rastreando as assinaturas da atividade neural
que poderia refletir a consciência. A avalanche de dados resultante
já deveria ter destruído pelo menos as teorias mais
frágeis.
Há cinco anos, a Templeton World Charity
Foundation iniciou uma série de “colaborações
adversárias” para que a seleção começasse.
Em junho, vimos os resultados da primeira dessas colaborações,
que colocou duas teorias de alto perfil uma contra a outra: a do
espaço de trabalho neuronal global (GNWT) e a da informação
integrada (IIT). Os resultados, anunciados no desfecho de um evento
esportivo na 26.ª reunião da Associação
para o Estudo Científico da Consciência de Nova York,
também foram usados para resolver uma aposta de 25 anos entre
o neurocientista Christof Koch, do Allen Institute for Brain Science,
e o filósofo David Chalmers, da Universidade de Nova York
(NYU), que cunhou o termo “o problema difícil”
para desafiar a presunção de que se pode explicar
o sentimento subjetivo de consciência com a análise
dos circuitos do cérebro.
No palco do Skirball Center da NYU, o neurocientista admitiu que
o filósofo estava certo: os correlatos neurais da consciência
ainda não haviam sido definidos. No entanto, Koch proclamou:
“É uma vitória para a ciência”.
OS CORRELATOS DA CONSCIÊNCIA
Quando Crick e Koch publicaram o seu artigo de referência
Towards a Neurobiological Theory of Consciousness (Rumo
a uma Teoria Neurobiológica da Consciência) em 1990,
o seu objetivo era colocar a consciência – durante 2
mil anos o território dos filósofos – numa base
científica. A consciência na sua totalidade, argumentavam
eles, era um conceito muito amplo e controverso para servir como
ponto de partida.
Em vez disso, eles se concentraram num aspecto cientificamente tratável:
a percepção visual, que envolve se tornar consciente
de ver, por exemplo, a cor vermelha. O objetivo científico
era encontrar os circuitos que se correlacionassem com essa experiência,
ou, como eles diziam, os “correlatos neurais da consciência”.
A decodificação dos primeiros estágios da percepção
visual já havia se revelado um terreno fértil para
a ciência. Padrões de luz que incidem na retina enviam
sinais ao córtex visual, na parte posterior do cérebro.
Lá, mais de 12 módulos neurais processam os sinais
correspondentes às bordas, cores e movimentos das imagens.
Seus resultados se combinam para construir uma imagem dinâmica
final daquilo que vemos conscientemente.
O que consolidou a utilidade da percepção visual para
Crick e Koch foi que o elo final dessa cadeia – a consciência
– poderia ser separado do resto. Desde a década de
1970, os neurocientistas conhecem pessoas com “visão
cega” que não têm experiência de visão
devido a danos no cérebro, mas que conseguem andar numa sala
sem esbarrar em obstáculos. Embora mantenham a capacidade
de processar uma imagem, falta-lhes a capacidade de ter consciência
dela.
Todos nós podemos experimentar uma forma dessa desconexão.
Considere a conhecida ilusão de ótica que pode ser
percebida como um vaso ou como dois rostos de perfil. Algo na forma
como nosso cérebro processa as percepções nos
impede de estar conscientes de ambas simultaneamente.
Os psicólogos experimentais podem tirar vantagem dessa peculiaridade
através do fenômeno da rivalidade binocular. Nosso
cérebro normalmente não tem problemas para combinar
as imagens ligeiramente diferentes e sobrepostas que recebe dos
olhos esquerdo e direito. Mas se as imagens são muito diferentes,
em vez de se fundirem, se tornam rivais: primeiramente uma imagem
domina a nossa percepção, depois a outra. Quando o
neurocientista Nikos Logothetis, do Max Planck Institute for Biological
Cybernetics, descreveu a rivalidade binocular em 1996, Crick ficou
tão entusiasmado que proclamou que os correlatos neurais
da consciência seriam encontrados no final do século
20. (Entusiasmo semelhante levou à aposta de Koch com Chalmers).
Nas últimas duas décadas, scanners cerebrais cada
vez mais sofisticados monitoraram indivíduos submetidos a
testes à medida que suas percepções eram manipuladas
durante estudos de consciência. Gotas de dados transformaram-se
em cascatas, mas, em vez de serem eliminadas, as teorias da consciência
multiplicaram-se.
Uma ampla divisão entre essas muitas teorias é que
algumas delas, como a GNWT, requerem a participação
das partes do cérebro que permitem a cognição,
onde “pensamos”, enquanto a IIT e outras afirmam que
os correlatos neurais dependem das áreas do cérebro
envolvidas na percepção, onde “sentimos”.
As ideias são frequentemente descritas casualmente como teorias
“da frente do cérebro” versus teorias “da
parte posterior do cérebro” (embora a distinção
anatômica real seja menos evidente). Esta bifurcação
intrigante ecoa antigas divergências filosóficas sobre
se a consciência tem a ver com pensar, como no “Penso,
logo existo” de Descartes, ou sobre “não pensar”,
como no estado experimentado por um iogue meditando.
Para o neurocientista Stanislas Dehaene, do Collège de France,
arquiteto-chefe da GNWT, o pensamento é uma parte central
do estado consciente. Referindo-se à IIT, ele me disse: “É
uma grande diferença entre as nossas teorias. Não
acredito em consciência purificada”. A GNWT afirma que
um pequeno subconjunto de informações que processamos
de forma constante inconscientemente é selecionado para passar
por um gargalo e chegar a um “espaço de trabalho”
consciente. Lá, a informação é integrada
e transmitida para outras áreas do cérebro para torná-la
disponível globalmente para a tomada de decisões e
aprendizagem. “O ‘espaço de trabalho’ existe
para uma função”, disse Dehaene. Como a tomada
de decisões e a aprendizagem são responsabilidades
do córtex pré-frontal, a parte frontal do cérebro
é crucial para a consciência.
O germe da ideia foi proposto em 1988 pelo psicólogo Bernard
Baars, agora na Society for Mind Brain Sciences, que viu uma analogia
com o “quadro negro” das primeiras arquiteturas de sistemas
de inteligência artificial, onde programas independentes partilhavam
informações. Dehaene então vinculou esse modelo
conceitual às descobertas da neurociência de ponta
e usou modelos computacionais para desenvolver a GNWT.
POR OUTRO LADO.
A IIT não faz analogias com a arquitetura
de IA. Giulio Tononi, neurocientista e psiquiatra da Universidade
de Wisconsin, Madison, desenvolveu a teoria começando com
cinco axiomas sobre a consciência: ela é intrínseca
à entidade que a possui; sua composição é
estruturada; é rica em informações; é
integrada e não redutível a componentes; e é
exclusiva de outras experiências. Ele então desenvolveu
descrições matemáticas para se adequar a esses
axiomas. Para Tononi e outros teóricos da IIT, a estrutura
neural mais consistente com esses descritores matemáticos
é uma arquitetura em forma de grade associada a regiões
sensoriais, que eles apelidaram de “zona quente”.
Mas a GNWT e a IIT são apenas duas das teorias que localizam
elementos-chave da consciência em polos opostos do cérebro.
Existem outros conceitos cognitivos da parte frontal do cérebro,
incluindo várias teorias de ordem superior (HOTs) e a teoria
de inferência ativa, e uma variedade de conceitos sensoriais
da parte posterior do cérebro, como as teorias de primeira
ordem intimamente relacionadas e as teorias localistas.

TESTE
Eliminar algumas delas testando suas previsões
pode parecer muito simples. Infelizmente, isso não se revelou
uma verdade. Há cinco anos, Dawid Potgieter, chefe da seção
de programas especiais da Templeton World Charity Foundation, ficou
surpreso ao descobrir que ainda existiam tantas teorias viáveis
sobre a consciência.
Koch sugeriu um confronto direto, algo que foi usado algumas vezes
para resolver controvérsias na Física e na Psicologia.
Na década de 1980, o pesquisador de Psicologia Dan Kahneman,
da Universidade Princeton, cunhou o termo “colaboração
adversária” para descrever exercícios em que
cientistas com pontos de vista opostos desenvolviam experimentos
em conjunto. Ao trabalharem juntos, eles poderiam amenizar divergências
sobre objetivos e metodologias que poderiam prejudicar as conclusões
do trabalho.
Potgieter estava ansioso para tentar. Em março de 2018, ele
e Koch organizaram um workshop de fim de semana no Allen Institute
em Seattle para 14 participantes. Nos nove meses seguintes, as discussões
continuaram. Os teóricos aprofundaram as suas teorias e ofereceram
novas previsões.
A equipe apresentou duas propostas experimentais para separar as
previsões da IIT e da GNWT. Os indivíduos em teste
seriam apresentados a uma série de imagens variadas, como
rostos, relógios e letras do alfabeto em diferentes fontes.
No início de cada série, duas imagens específicas
seriam definidas como alvos (digamos, o rosto de uma mulher e um
relógio antigo), e os participantes recebiam a tarefa de
relatá-las apertando um botão caso vissem alguma delas.
Os decodificadores de sinais cerebrais de última geração
correlacionariam os padrões de disparo neural com o que os
indivíduos estavam vendo.
Os pesquisadores começaram a trabalhar realizando os experimentos
sugeridos pela equipe do workshop. Na noite de 23 de junho, um público
entusiasmado se reuniu na NYU para saber o resultado dessa experiência.
Ambas as teorias foram desafiadas pelos resultados. Mas, na contagem
final exibida na tela do evento, a IIT obteve mais destaques verdes
do que a GNWT. Apesar disso, os próprios líderes do
projeto estão convencidos de que não houve vencedor.
E nenhum lado admitiu derrota. “Esses resultados confirmam
algumas previsões da IIT e da GNWT, ao mesmo tempo que desafiam
substancialmente ambas as teorias”, escreveram eles em um
artigo que descreve os resultados no servidor de pré-publicação
biorxiv.org.
O RITMO DO PROGRESSO
Então a ciência avançou? Nem todo mundo pensa
assim. Alguns pesquisadores, como Olivia Carter, psicóloga
da Universidade de Melbourne e ex-presidente da ASSC, pensam que
as duas teorias estavam demasiado distantes para que as suas previsões
pudessem ser comparadas de forma significativa. “Meu sentimento
pessoal é de que elas estão testando coisas totalmente
diferentes”, disse ela. “A IIT está se concentrando
em conteúdo fenomenal e a GNWT está muito mais interessada
na memória de trabalho e na atenção.”
Essa avaliação parece adequada. E frustrante, dado
que uma comparação dispositiva foi o propósito
declarado da colaboração adversária. Para Lucia
Melloni, do Max Planck Institute, o fato de os adversários
não terem mudado de ideia não diminui o valor do processo.
“Pessoas não mudam de ideia, mas a forma como reagem
a desafios faz com que a teoria progrida ou degenere. Neste último
caso, com o tempo a teoria ‘morre’ e os cientistas a
abandonam.”
