'The Chosen', série de Jesus, quer furar a bolha religiosa
e fugir das guerras culturais
Produção estreia terceira temporada
com financiamento de fãs e audiência de milhões
de espectadores fiéis no mundo todo
Anna Virginia Balloussier / FSP

Deus está vendo, mas muitas de suas criaturas
ainda ignoram. A série "The Chosen", sobre a vida
de Jesus Cristo, é sem dúvida um blockbuster,
argumentam seus fiéis espectadores. Já acumula milhões
de fãs, mas não está em nenhum canal aberto
ou fechado da TV americana. Também passou um bocado de tempo
sendo desdenhada pela mídia mainstream de seu país,
os Estados Unidos.
E não dá nem para dizer que audiência, aqui,
não é sinônimo de qualidade. A série
é boa. Muito superior à média de produções
bíblicas que vemos por aí, fartas em proselitismo
e atuações canastronas.
"É, honestamente, muito melhor do que eu esperava",
escreveu em 2021 um crítico na revista The Atlantic. Seu
artigo aponta o programa como um fenômeno underground, ignorado
pela maioria dos colegas de ofício. "Você pode
estar muito atento à indústria televisiva e não
saber que ‘The Chosen’ existe."

Nos últimos meses, contudo, algo mudou. "Ganhamos a
atenção de grandes publicações",
diz o criador e diretor da atração, o evangélico
Dallas Jenkins.
Ele conversa com a reportagem num hotel cinco estrelas de São
Paulo, uma operação midiática que envolveu
também entrevistas para veículos católicos
e evangélicos.
"The Chosen" entrou na terceira de sete temporadas previstas
para remontar a trajetória de Jesus, no nascimento à
ressurreição. No Brasil, Amazon Prime, Globoplay e
Netflix exibem seus episódios. Os dois primeiros da nova
fase também entraram em cartaz no cinema, aposta do marketing
da série.

Jenkins não nega as origens do sucesso do produto que lançou
em 2019. A primeira temporada só ficou de pé após
uma vaquinha online levantar US$ 10 milhões, cerca de R$
50 milhões. Os doadores, cristãos em peso, pagaram
para ver o projeto sobre Jesus que até então só
tinha um piloto, disponibilizado na internet em 2017.
Diz a Bíblia que Jesus alimentou uma multidão com
apenas cinco pães e dois peixes. Para encenar esse milagre
atribuído ao Messias cristão, 9.000 figurantes se
aglomeraram num campo do Exército da Salvação
no estado americano do Texas.
Eram fãs que, em vez de ganhar para estar ali, pagaram até
US$ 1.000, ou R$ 5.000, cada um. Fazer uma pontinha num capítulo
foi um agrado àqueles que se dispuseram a financiar o título,
e é essa base devota que explica boa parte do êxito
da obra.
Sem autor famoso ou apoio de algum estúdio poderoso, "The
Chosen" não quer ficar no aconchego da bolha religiosa.
Jenkins rebate a ideia de que há uma agenda evangelizadora
por trás do hit, algo como "se você assistir ao
show, vou converter você".
"Isso é entre eles, os espectadores, e Deus. A maior
parte da equipe não é cristã e ama o show."
Ele compara — quem não é judeu não se
sente um outsider vendo "A Lista de Schindler". "E
você pode não acreditar na espiritualidade de Harry
Potter, mas ainda assim se interessar pela história do bruxinho."
Da mesma forma, continua, "muitas pessoas não necessariamente
acreditam que Cristo é Deus, mas gostam da série,
do drama histórico".
Um trunfo que certamente ajudou a alavancar a audiência —
os episódios estão disponíveis de graça,
inclusive para espectadores fora dos Estados Unidos, na Angel Studios.
A plataforma distribui produtos audiovisuais com forte apelo entre
conservadores.
Uma de suas produções originais, "Som da Liberdade",
simboliza bem o público-alvo — o filme é estrelado
por Jim Caviezel, o protagonista de "A Paixão de Cristo",
e conta a história de um ex-agente do governo americano que
luta contra o tráfico humano.
De baixo orçamento e lucro milionário, o longa virou
outdoor para o QAnon, movimento que, entre outros delírios,
crê numa rede de traficantes sexuais a serviço de uma
elite global, ligada ao Partido Democrata nos Estados Unidos, que
sequestra crianças e extrai delas uma substância rejuvenescedora.
Caviezel é um entusiasta dessas infundadas teorias da conspiração.
O seriado de Dallas Jenkins acabou pego nesse fogo cruzado das
guerras culturais, exaltado pelos mesmos admiradores de "Som
da Liberdade". Ele tem suas opiniões políticas,
claro, mas prefere não as revelar publicamente, para não
contaminar a percepção das pessoas sobre sua série.
Mas ele refuta a ideia de que "The Chosen" virou um pôster
ideológico. "Qualquer coisa pode ser usada como arma.
Até a Bíblia, pela extrema direita e também
pela extrema esquerda. Jesus veio em tempos muito políticos.
As pessoas queriam que ele liderasse uma revolução,
lutasse uma guerra. E ele continuou dizendo 'não, não,
não, quero que vocês se concentrem em amar uns aos
outros'."
Portanto, usar a obra como artilharia política é algo
que independe dele, mas, em sua opinião, "viola o propósito
do show e a mensagem de Jesus".
Extremistas à direita são aliados patentes, mas há
ruídos nessa relação. Alguns chegaram a sugerir
um boicote à produção depois de viralizar a
foto de uma bandeira LGBTQIA+ no set. Era de um membro da equipe.
E daí? Para Jenkins, não faz sentido censurar manifestações
pessoais de seu time. "Todos são bem-vindos a trabalhar."
Se alguém quiser ostentar a flâmula de arco-íris,
ou usar um boné de Donald Trump, não será ele
a interferir, afirma.
O boicote não prosperou, e os números continuam a
impressionar. "The Chosen" é exibido em quase 200
países e já foi dublado em mais de 50 idiomas. O Brasil
tem a audiência mais empolgada depois da americana, segundo
o diretor. Também é a terra natal de uma das atrizes
—Lara Silva, que interpreta a mulher do apóstolo Pedro.
Jenkins credita ao elenco parte da identificação
internacional com a série. "As pessoas veem que Jesus
não é interpretado por um americano que se parece
comigo", diz o homem de cabelos claros e pele branca. "Elas
veem Jesus e seus seguidores lutando em tempos divididos, assim
como eles. Não é um seriado ocidental, não
queríamos que todos parecessem americanos."
O nova-iorquino Jonathan Roumie, filho de egípcio e irlandesa,
vive Cristo. É católico praticante, aliás.
Jenkins aposta ainda que acompanhar a saga de Cristo pela ótica
de quem conviveu com ele ajuda a criar uma conexão com o
espectador. Toma algumas liberdades interpretativas que enervam
os mais ortodoxos, horrorizados com trechos do roteiro não
expressos na Bíblia. "Claro, há os que não
gostam de nada. E tudo bem. Nunca vou conseguir agradar a eles."
Mas a reação às soluções criativas
em geral é positiva. Mateus, por exemplo, é autista.
Maria Madalena, violentada sexualmente por um soldado romano. Emergem
ainda debates sobre dívidas, impostos, violência e
aborto espontâneo. Todas questões que calam fundo nos
dias atuais.
"A maioria da audiência se anima porque percebe que
estes eram seres humanos", afirma Jenkins. Está amarrado.