Em 1997, a polícia invadiu uma boca de fumo na Cidade
Alta, conjunto de favelas na zona norte carioca, e se deparou
com preparativos para uma festa de são Cosme e Damião.
Mas, em vez de guloseimas típicas da data popular em
terreiros, os agentes encontraram embalagens de bananadas
recheadas de drogas.
Aquele Brasil paralelo era, até então, povoado
por símbolos do catolicismo e de crenças afrobrasileiras.
Cy de Acari, um dos chefões do tráfico daqueles
tempos, trazia essa predileção religiosa tatuada
no corpo: ao ser preso, deixou-se fotografar com três
santos, Jorge, Cosme e Damião, marcados em sua pele.
A maioria dos traficantes buscava ter o "corpo fechado",
capa espiritual que, para os que creem, blinda contra males
externos. O orixá Ogum, que no sincretismo entre umbandistas
e católicos representava são Jorge, era cultuado
por muitos deles. Murais de Nossa Senhora Aparecida ou de
são Jerônimo e seu orixá correspondente,
Xangô, enfeitavam as ruas.
Havia inclusive rachas que acabavam na destruição
de estátuas religiosas no terreno de inimigos.

Nos anos 1990, contudo, uma tectônica movimentação
na religiosidade nacional transbordou para o mundo criminal.
Começava ali a era dos traficantes que se dizem fiéis
a Jesus Cristo, fenômeno que encorpou um bocado de lá
pra cá e é explorado no livro "Traficantes
Evangélicos: Quem São e a Quem Servem os Novos
Bandidos de Deus" (Thomas Nelson Brasil, 2023),
da teóloga Viviane Costa.
Não é a primeira obra no mercado literário
sobre o tema, mas a autora tem um trunfo: analisa a narcorreligiosidade
com lugar de crença. Costa é pastora pentecostal,
e sua proximidade com essa justaposição entre
fé e criminalidade vem de longe. Começou há
mais de uma década, quando atuava como missionária
numa Assembleia de Deus em Nova Iguaçu (Baixada Fluminense).
"Jesus é o dono do lugar" é o grafite
na entrada da favela onde Costa seria professora de teologia,
em igrejas da área. Estamos em 2017, e o evangelicalismo
prevalece nas manifestações religiosas de boa
parte do tráfico local.
Um ano antes, Álvaro Malaquias Santa Rosa, 36, começa
a tirar do papel seu plano mais ambicioso — e diz o
fazer em nome de Deus. Ele é apontado como um dos principais
líderes do TCP (Terceiro Comando Puro), facção
que disputa a primazia do crime no Rio de Janeiro com o Comando
Vermelho e as milícias. Também atende pelas
alcunhas Peixão, aumentativo do símbolo do cristianismo,
e mano Arão, referência bíblica ao irmão
de Moisés.
Peixão, segundo a Polícia Civil, é pastor
e filiado à Assembleia de Deus Ministério Portas
Abertas. A partir de 2016, quando conquista a mesma área
onde policiais acharam drogas disfarçadas de doce duas
décadas antes, vai idealizando o Complexo de Israel.
Marca território colocando em pontos altos das favelas
agora sob seu domínio, visíveis a todos, uma
bandeira de Israel e uma estrela de Davi, símbolos
judaicos incorporados por algumas igrejas evangélicas.
Proíbe a venda de crack na comunidade e deixa um recado
a moradores: "A partir de agora e para sempre a Cidade
Alta é Terceiro Comando Puro, Bonde dos Taca Bala,
o exército do Deus vivo, entendeu? Lá de Israel".
Crime e religião sempre frequentaram o cotidiano das
periferias, diz Costa à Folha. Na medida em que o pêndulo
religioso foi mudando no país, com a ascensão
de uma cultura pentecostal, as experiências com o sagrado
também foram sendo ressignificadas. "Traficantes
outrora devotos do cavaleiro são Jorge, ou do guerreiro
Ogum, agora têm no Senhor dos Exércitos —o
Deus de Israel do velho testamento— sua divindade conquistadora
e justiceira necessária para a vida inserida em contextos
de disputas diárias."
Seria bem mais difícil fazer essa associação
se o discurso cristão em jogo "remetesse à
figura de Cristo anunciado como a encarnação
do amor divino conforme o Novo Testamento", diz a pastora.
"Porém, com o crescimento de novos pentecostalismos,
que atravessaram as Assembleias de Deus e também denominações
como batistas e presbiterianos, as narrativas de guerras e
conquistas do Antigo Testamento dominaram pregações,
louvores e teologias."
A antropóloga Christina Vital da Cunha iniciou na
década de 1990 uma pesquisa em favelas cariocas que,
em 2015, rendeu o livro "Oração de Traficante:
Uma Etnografia" (Garamond). Desde então, diz,
"está mais clara a hegemonia de evangélicos",
com cultos celebrados em alto volume, música gospel
em tudo o que é caixa de som e templos novos aos borbotões.
Traficantes se relacionam com redes evangélicas pedindo
orações, pagando dízimos, financiando
cultos e eventualmente participando deles. A busca por proteção
sempre ocorreu e, se hoje recorrem a pastores, é porque
eles predominam no ambiente.
Cunha conta que não esbarrava, quando foi a campo,
com a autoidentificação de "traficante
evangélico" —rótulo que, aliás,
parte muito mais de pessoas de fora do que de dentro dessas
comunidades, diz.
"Sempre observei que isso causava incômodo entre
evangélicos, que faziam questão de diferenciar
o ‘verdadeiro crente’ daquele que ‘não
dá bom testemunho’, que polui moralmente os já
estigmatizados evangélicos moradores de periferias.
É bom lembrar que os traficantes que se autodeclaram
de um ‘exército de Jesus’ não se
declaram necessariamente evangélicos porque sabem que
a vida que levam no crime inviabiliza moralmente essa produção
de identidade."
Pesquisas recentes que ajuda a conduzir na UFF (Universidade
Federal Fluminense) mostram, ainda, que "um contingente
significativo e muito menos alardeado continua cultuando entidades
e orixás da umbanda e do candomblé", afirma
a antropóloga.
Viviane Costa aponta que, em vasta parte do universo cristão,
as religiões de matriz africana são tidas como
de origem demoníaca. Uma narrativa teológica
que escala rapidamente do simbolismo à violência
real, com ataques a terreiros orquestrados pelo tráfico
evangelizado.
A intolerância religiosa estimula a substituição
de elementos afro por assinaturas como a que ela viu naquele
primeiro dia como professora de teologia. "Jesus é
o dono do lugar." Tá tudo dominado.