Entre as histórias da população negra no
Brasil que conseguiram sobreviver ao processo de apagamento, há
episódios que ainda permanecem sob a sombra do desconhecimento.
Um livro se propõe a investigar um deles: a vida de mulheres
africanas que obtiveram (relativo) sucesso econômico, assumiram
a liderança de suas comunidades nas Minas Gerais do século
18 e também acabaram alvo de uma literal caça às
bruxas empreendida pelo Estado português.
"Sacerdotisas Voduns: Mulheres Africanas e Inquisição
em Minas Gerais" (Chão Editora, 2023), dos historiadores
Aldair Rodrigues e Moacir Rodrigo de Castro
Maia, reúne denúncias do Tribunal da Inquisição
de Lisboa que tinham o objetivo de punir manifestações
religiosas fora da fé católica.
O trabalho da dupla também revela uma faceta da África
que fincou pés no Brasil distinta da tradição
dos orixás, fundada pelos iorubás e mais documentada
e divulgada ao longo da história.
Trata-se da cultura e fé da população originária
da região conhecida como Costa da Mina (atualmente territórios
de Gana, Togo, do Benin e parte da Nigéria) e devota da religião
vodum.
O termo possui uma história e acepção muito
mais ampla do que ficou cristalizado no imaginário popular
pelos bonecos espetados do vodu haitiano (que também tem
raízes nas tradições da Costa da Mina).
"É um termo muito antigo para esses povos, especificamente
da África ocidental, usado para designar as suas divindades",
diz Maia.
"A religião tinha características muito abertas,
agregadoras. Havia cultos pertencentes à população
em geral, por exemplo voduns associados a árvores ou serpentes
e, ao mesmo tempo, havia cultos particulares da família,
do clã, da linhagem."
Rodrigues afirma que "o vodum é um sistema de crenças
que organiza a relação dos vivos com o mundo invisível
dos ancestrais. Com o racismo religioso, tudo isso foi lido como
culto ao demônio."
"Mas, na verdade, você tem a dimensão material
de práticas que envolvem a confecção de objetos
sagrados, acionados por meio de rituais que levam a um poder tanto
para práticas maléficas como benéficas, de
proteção, etc."
Esse sistema, que regia uma parte importante das vidas naquela
porção da África ocidental, colapsa quando
essas populações são arrancadas de suas terras
para embarcar em uma brutal —e muitas vezes mortal—
viagem pelo oceano Atlântico.
"Essas pessoas são tiradas da sua comunidade e de sua
relação com o mundo dos ancestrais. É uma violência
que vai além da violência física, porque você
é retirado das suas redes de parentesco, algo crucial para
ajudar alguém a se inserir na sociedade", diz Rodrigues,
que é professor na Unicamp.
Os que sobrevivem à jornada em navios de condições
sub-humanas tentam se adaptar à vida no Brasil colônia
da forma que podem. Uma delas é recuperar elementos de suas
terras de origem junto a outros escravizados.
Espaços de reconexão com as raízes
Em Minas Gerais criou-se uma língua geral da "nação
Mina", já que os diferentes idiomas pertenciam ao mesmo
ramo linguístico. Eram variados níveis de intercompreensão,
mas de comunicação facilitada.
Com o tempo, também organizam-se os espaços físicos
para reviver as tradições da religião vodum
que tinham tanta importância em suas genealogias.
Maia, também pesquisador da UFMG (Universidade Federal de
Minas Gerais), diz que documentos sobre um caso ocorrido em Paracatu,
interior mineiro, apontam um encontro do "assim classificado
grupo específico da área vodum, que cultua o que as
autoridades chamam de 'escutar o Deus de sua terra'. Então
há ali uma necessidade, após esse terror que foi a
migração, de se reconectar ao seu universo cultural".
O documento descreve um culto numa área mais afastada de
Paracatu, instalado no local de moradia da vodúnsi (sacerdotisa)
Josefa Maria, formado por uma maioria de mulheres.
"E tinham na mesma casa uma cozinha, onde ela testemunha não
entrou nem viu o que estava dentro dela, mas que viu saía
de lá uma preta forra por nome Josefa Maria embrulhada em
umas chitas velhas e [entrava] na dança [em que proferia]
algumas palavras que encontrava a nossa santa fé e outras
que ela não entendeu e na mesma dança se fingia morta,
caindo no chão, e outras a pegavam e levavam para dentro
da tal camarinha", registra o documento.
O evento na casa de Josefa ocorria com regularidade, sempre aos
sábados, reunindo libertos e escravizados.
"Há o estereótipo de que todo negro, toda mulher
negra naquela época era escrava. Mas havia mulheres negras
livres, são elas que predominam nas alforrias. É uma
liberdade precária, mas o livro fala de uma liberdade negra
feminina na escravidão", diz Rodrigues.
O professor da Unicamp explica que isso se deve, no caso de Minas
Gerais, à presença feminina negra no comércio
de alimentos, que abriam vendas e tinham consequentemente maior
trânsito para negociar a obtenção das alforrias.
"Os homens ficavam mais na mineração, nas lavras,
com menos possibilidade de acumular dinheiro."
As mulheres, assim, constituíam casa própria e um
local possível para fazer reuniões.
"Elas ocupam um espaço maior de autonomia, mesmo com
todas as limitações e dificuldades. E, ao contrário
da sociedade paternalista, elas conseguem um papel religioso ampliado
no culto vodum que se instala no Brasil", afirma Maia.
Segundo Rodrigues, "essa liberdade é vivida de forma
contraditória porque essas mulheres adquirem escravizados,
muitas vezes da mesma região de onde elas vieram. No Brasil
da época, a posição social, o prestígio
eram medidos em relação à escravidão
porque era uma sociedade escravista".
O aparelho de repressão
Com a monarquia portuguesa fundamentada na religião católica,
a estabilidade política também se fundamenta diretamente
na unidade da fé. A Inquisição é um
tribunal especializado em vigiar a pureza da fé e perseguir
quem se desvia dela.
"Tudo o que diz respeito a outras manifestações
culturais religiosas vai ser perseguido. E um grande elemento para
articular essa perseguição é a crença
de que os adeptos de religiões de origem africanas estão
cultuando o demônio. Havendo uma associação
dos voduns ao demônio isso legitima a violência",
aponta Rodrigues.
"Há um outro fator que, nesses cultos, são formadas
lideranças que às vezes planejam rebeliões
e fugas. Então, para o controle social dessa população,
era urgente perseguir e eliminar esses espaços."
A Inquisição também molda as estruturas de
ascensão social à época. Candidatar-se a agente
em Minas Gerais não proporcionava grande remuneração,
mas apresentar-se como defensor da pureza da fé católica
significava a obtenção de grande prestígio
na sociedade.
"Se você entra para a Inquisição, você
tem uma prova pública de que passou por um processo rigoroso
de investigação da sua pureza de sangue, diz Rodrigues.
O ofício era vedado a descendentes de judeus, muçulmanos
e pessoas escravizadas.
"Então todos os elementos vão confluindo para
a defesa desse ideário católico. O poder econômico
não basta nessa época. Você precisa ter status
social."
Apesar da estigmatização e perseguição
ao vodum, muitos brancos procuravam nos cultos africanos um alívio
para momentos de desespero e a busca por cura de doenças.
Mas a possibilidade de ser envolvido em um processo contra manifestações
do vodum significava um incentivo para entregar sacerdotisas e devotos
às autoridades.
"A Inquisição distribui editais no Brasil para
coletar denúncias, lidos no final das missas. Um dos elementos
que a gente encontra nesses editais é que se as pessoas não
denunciam o que elas sabem, elas estão automaticamente excomungadas",
explica Rodrigues.
"E, se você delata, muitas vezes há uma comutação
da pena. Pessoas brancas, num momento de desespero, vão aos
cultos, se sentem acolhidos, resolvem seu problema e depois eles
se sentem culpados porque são católicos. E aí,
para aliviar a consciência, denunciam os africanos com quem
eles convivem."
Os casos compilados em "Sacerdotisas Voduns: Mulheres Africanas
e Inquisição em Minas Gerais", apesar de perseguições
e prisões, não chegaram a ter sentenças. Por
alguma razão, ficaram sem desfecho.
Segundo Maia, "pode-se pensar que o fato de que não
viraram um processo depois e não houve uma condenação
final indica uma significância menor desses casos. Quando
a gente vê essas estruturas sociais agindo para colher informações
e denúncias contra essas pessoas, principalmente africanas,
a gente vê o terror que foi imposto àqueles locais".
Mais de 250 anos depois, a perseguição a religiões
de matrizes africanas permanece no Brasil. Rodrigues diz que é
a representação do racismo de longa duração,
que apenas se transforma no tempo e no espaço.
"Eu diria que o principal elemento de permanência é
associar entidades africanas ao demônio. É isso que
provoca o medo e atiça a violência. O medo do que não
se conhece, o medo do que é diferente e, ao mesmo tempo,
a construção de uma identidade religiosa cristã.
Ela é construída em relação ao outro.
E o outro, no caso, é o africano."