Reportagem da revista ComCiência -
por Eliane Comoli
Processo acontece durante o sono, por isso
dormir bem é essencial. Memórias ligadas ao medo são
mais fortes que as prazerosas

A pandemia do coronavírus
e os longos meses de distanciamento social geraram consequências
desastrosas para o sono e a saúde. Um estudo recente do Instituto
do Cérebro do Rio Grande do Sul (InsCer) apontou que 69,8%
dos adultos declararam ter algum distúrbio do sono. Antes
da pandemia, para se ter uma comparação, a média
era de 30%. Isso preocupa os especialistas, uma vez que o sono e
as emoções são cruciais para o processo de
aprendizado e memória.
A neurocientista Gabrielle Girardeau, do Instituto Francês
de Pesquisas Médicas (Inserm), é uma das que se dedica
ao estudo da área. “Toda memória é um
pouco emocional, porque guardaremos a longo prazo aquilo que gerou
emoções, sejam positivas ou negativas”, diz.
Isso acontece devido à comunicação entre a
amígdala e o hipocampo – que integram o sistema límbico,
uma espécie de centro regulador das emoções.
Um dos enigmas na comunicação entre a amígdala
e o hipocampo é saber se a atividade neuronal é semelhante
quando em ação ou dormindo. Para desvendar essa questão
foi feito o registro da atividade elétrica dos neurônios
em camundongos. A publicação da equipe francesa na
revista Current
Opinion in Physiology revela uma reativação
coordenada muito forte entre o hipocampo e a amígdala, sugestivo
de que esse diálogo durante o sono recapitula o que aconteceu
durante o aprendizado. “É como se durante o sono assistíssemos
a um filme do que vimos durante o dia”, comenta Gabrielle.
Medo fica mais gravado na memória
Não é novidade para a neurociência que o sono
é muito importante para o hipocampo e a memória episódica,
mas a novidade é que esse também é o caso associando
uma memória emocional.
O componente emocional tem um peso enorme e facilita a formação
e consolidação de memórias de longa duração
nas situações prazerosas. No entanto, as emoções
associadas ao medo têm mais relevância, por envolverem
relações de sobrevivência e risco. “Há
uma construção na arquitetura cerebral dizendo “não
vá colocar em risco sua sobrevivência”, por isso
o sistema é muito mais protetor no sentido das emoções
aversivas”, explica Guilherme Lucas de Araújo, neurocientista
do Departamento de Fisiologia da Faculdade de Medicina de Ribeirão
Preto da USP.
As memórias relacionadas ao medo são extremamente
importantes e são evocadas em circunstância de ameaça
– o cérebro faz um rápido inventário
de tudo aquilo que uma vez causou medo e suas consequências
– para lidar com a situação de forma mais segura
e estratégica. “A emoção em contextos
aversivos tem um papel fundamental de sobrevivência e por
isso as memórias de situações aversivas são
construídas com circuitos muito precisos”, comenta
Guilherme.
Compreender as bases neurais da memória emocional normal
é importante também para entender o que acontece quando
esse tipo de memória é perturbado, como ocorre na
desordem do estresse pós-traumático, alvo de interesse
de muitos pesquisadores. Entretanto, há um longo caminho
de estudos pela frente.
O estresse é um dos piores inimigos da memória, porém
alguns tipos de estresse são importantes para desenvolver
capacidades cognitivas como atenção, foco, tomada
de decisões e defesa.
No caso do estresse pós-traumático trata-se de uma
memória que ocorre num momento em que não há
risco, e ainda assim causa desgaste e sofrimento enormes. “É
uma patologia na qual o circuito formado por uma experiência
aversiva muito intensa e muito significativa é evocado de
forma recorrente”, salienta Guilherme.
Sono influencia na retenção de
memórias
Apesar de sono e neuroplasticidade – habilidade de reorganizar
os neurônios e os seus circuitos e formar novos neurônios
(neurogênese) – serem essenciais para a formação
e consolidação de memória, a ligação
entre eles não é bem compreendida. Em um artigo na
revista Scientific Report pesquisadores observaram que camundongos
que tiveram a capacidade de neurogênese suprimida apresentavam
também sono alterado e problemas de memória. Isso
porque é durante o sono que as memórias são
consolidadas.
Quando uma vivência é forte o suficiente para consolidar
uma informação tem início um processo para
formar sinapses e circuitos neurais que não existiam antes,
e o cérebro muda fisicamente. “Por causa da construção
física das memórias é que não existe
um único cérebro igual ao do outro – a memória
nos dá identidade. Daí a importância de estudar
e saber como ela se forma, se podemos melhorar”, diz Guilherme.
A compreensão da relação entre neuroplasticidade
e sono é muito importante para abordagens preventivas, uma
vez que os distúrbios do sono são mais frequentes
durante o envelhecimento, e também são um sintoma
comum em estágios precoces de doenças neurodegenerativas.
Prejuízos da falta de sono para a memória
“Em alguns casos, a pessoa não dorme bem por muitos
anos e, consequentemente, tem dificuldade enorme de se concentrar,
então sua memória é mais prejudicada”,
comenta Débora Cristina Hipólide, do Departamento
de Psicobiologia da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp),
que pesquisa os prejuízos que a falta de sono causa na formação
e consolidação de memória.
“Conforme aumenta a idade, ou há alguma doença
ou uma condição de estresse como essa que vivemos
com a pandemia, perdemos o sono, e a questão da higiene do
sono nunca foi tão importante quanto agora”, diz. Assim,
é necessária a mudança de hábitos que
dificultam ou impedem de se ter uma noite de sono tranquila e reparadora,
tais como o uso de eletrônicos e alimentação
pesada antes de dormir.
Não se sabe se voltar a dormir normalmente após longos
períodos de privação de sono é suficiente
para correr atrás do tempo perdido na geração
de novos neurônios. Pesquisadores apontam que a privação
de sono prejudica a neurogênese em ratos, mas a neurociência
ainda não sabe se esse fenômeno é pontual ou
permanente, se pode ser revertido com o tempo ou mesmo o quanto
afeta outras funções do cérebro. “Estamos
pesquisando esse ponto. Creio que o organismo recupere o tempo perdido
de sono, o problema é quando essa privação
se torna crônica”, finaliza Débora.