Ilustração de residência inglesa
no início do século 18; até essa época,
era recomendado demonstrar certa melancolia
por Paula Adamo Idoeta
BBC News Brasil em Londres
12/02/2023
Houve um tempo na história da humanidade em que era malvisto
demonstrar alegria. Aliás, a busca pela felicidade como conhecemos
hoje é algo relativamente novo na nossa história.
Essa é uma das observações do historiador
Peter N. Stearns, professor emérito da Universidade George
Mason (EUA), especializado em história comparativa social
e história das emoções.
Ele é autor de História da Felicidade, livro
lançado em 2022 no Brasil pela editora Contexto.
Em conversa com a BBC News Brasil, Stearns discutiu alguns destaques
da história da relação humana com a felicidade
e de quais lições ela traz para os tempos modernos.
A busca pela felicidade
Até o início do século 18, em lugares como
Reino Unido e nas suas colônias na América do Norte,
os historiadores perceberam que as pessoas tinham orgulho de serem
um pouco melancólicas.
Isso tinha a ver, em parte, com a lógica protestante, de
ter consciência dos seus pecados e de se manter humilde perante
os olhos de Deus.
Peter Stearns cita nas suas pesquisas o diário escrito por
um chefe de família da época, que defendia que Deus,
entre aspas, “não permitia alegria nem prazer, mas
sim uma espécie de conduta melancólica e austera”.
Isso não quer dizer que as pessoas fossem infelizes —
simplesmente não temos como julgar isso de modo imparcial,
a partir dos padrões atuais. Até porque a felicidade,
obviamente, é algo bastante subjetivo.
Declaração de Independência
americana foi um dos marcos de a "busca pela felicidade"
passar a ser vista como direito
O que significa é que havia entre as pessoas da época
a percepção de que era necessário se desculpar
por momentos de felicidade, por considerá-los uma afronta
a Deus, segundo Stearns.
Mas isso mudou radicalmente no século 18, a ponto de, na
redação da Declaração de Independência
dos Estados Unidos, em 1776, a busca pela felicidade ter sido considerada
um direito humano. A Constituição da França
de 1793 também explicitou a ideia de que, entre aspas, “o
objetivo da sociedade é a felicidade comum”.
Novas funções para os dentistas
“A nova ideia era que as pessoas não apenas deveriam
ser felizes, mas tinham a responsabilidade de parecer felizes, produzindo
algo como um novo imperativo de alegria”, diz Stearns em seu
livro.
“O resultado aparecia tanto em conselhos por escrito quanto,
ainda mais impressionante, em uma nova disposição
de sorrir amplamente e de esperar sorrisos em troca. As boas maneiras
começaram a ser redefinidas no sentido de enfatizar o positivo.”
Era o fim, segundo o historiador, “do autocontrole taciturno
e do sorriso contido, substituído por maior espontaneidade.”
“Os romances — um gênero literário novo
por si só — começaram a descrever as mulheres
com sorrisos ‘encantadores’ ou ‘doces’,
um claro sinal de novidade”, ele escreve.
“Em meados do século 18, surgiram novos tipos de dentistas
em áreas urbanas de ambos os lados do Atlântico, ávidos
por cuidar dos dentes em vez de arrancá-los. Uma série
de produtos inovadores, incluindo palitos e escovas de dente, foi
introduzida para preservar os sorrisos, e foram projetados auxílios
artificiais, como o batom, para destacar a brancura dos dentes.
O ato de sorrir demonstrava que a pessoa estava acompanhando os
mais recentes produtos de consumo, além de exibir o tipo
certo de emoção.”
O mistério que envolve essa mudança

Pintura de dentista no século 18; esses
profissionais deixaram de apenas arrancar dentes, para cuidar de
sorrisos
Mas o que levou a uma mudança tão grande de perspectiva,
causando a exaltação da felicidade e do sorriso? Existem
explicações, mas também mistério, segundo
Peter Stearns.
“Sabemos parte da resposta. Houve, obviamente, uma enorme
mudança no clima intelectual nas sociedades ocidentais, associada
ao Iluminismo”, diz ele à reportagem.
“Os intelectuais se tornaram mais otimistas. Eles ficaram
mais focados neste mundo, em vez de em uma aspiração
tão religiosa. Então a mudança no contexto
cultural estava intimamente ligada à ascensão de um
interesse maior em uma expectativa de felicidade.”
O aumento no conforto físico e na prosperidade das classes
sociais mais altas, bem como períodos de trégua de
epidemias e pragas, provavelmente também despertaram uma
sensação maior de otimismo.
“Mas, francamente, há um pouco de mistério
nisso. (...) Essa foi uma grande mudança cultural, e não
acho que está totalmente claro por que ela aconteceu. Então
é uma boa pergunta”, diz ele.
Obsessão com a felicidade?
Ao mesmo tempo, a busca pela felicidade se entrincheirou de tal
modo nas sociedades ocidentais que, na visão de Stearns,
criou uma obsessão e uma dificuldade em lidar com a tristeza.
“Certamente há um aspecto do interesse moderno na
felicidade que provavelmente nos tornou intolerante à tristeza.
Há alguns estudos, por exemplo, (mostrando que) não
lidamos bem com crianças que estão tristes , porque
queremos que as crianças sejam felizes. Então eu acho
que, francamente, há um problema nisso”, diz o historiador.
“A maioria dos estudos sobre felicidade, do ponto de vista
psicológico, argumenta que a felicidade precisa ser entendida
como algo que, com alguma frequência, (vai ser intercalado)
de coisas ruins, de tristeza. Então uma definição
bem-sucedida de felicidade tem de permitir espaço para um
pouco de pesar e tristeza. Mas acho que nossas culturas não
lidam bem com isso. Somos impacientes com o luto.”
Retrato de soldado americano voltando para
casa após a guerra civil, em 1865; junto com a exaltação
à felicidade, veio a valorização do amor romântico
Felicidade e amor romântico
Padrões semelhantes se observam no elo entre a felicidade
e o amor romântico.
À medida que a felicidade virou um objetivo social, as manifestações
culturais - de romances escritos a canções e, mais
adiante, filmes — passaram a exaltar o amor romântico,
baseado no casamento e nos relacionamentos, como um caminho para
ser feliz.
Do mesmo modo, porém, surgiram expectativas irreais a respeito
disso, na visão de Stearns.
“Na Inglaterra do século 19, por exemplo, começou
a surgir uma enorme pressão sobre escritores de ficção
para que escrevessem finais felizes”, afirma ele.
“Por que queremos finais felizes no que lemos? Acho que é
provavelmente verdade que ficamos insatisfeitos com histórias
que não tenham final feliz. Não acho que isso seja
totalmente saudável. Então tentar encontrar um equilíbrio
entre expectativas e realidade é outra parte complexa desse
tipo de análise.”
Nômades eram mais felizes?
Um ponto que tem despertado discussões entre historiadores
é que os seres humanos podem ter perdido felicidade durante
uma fase crucial da sua evolução: quando deixaram
de ser caçadores-coletores nômades e começaram
a criar sociedades sedentárias e agrícolas.
Ou seja, bem quando os humanos começaram a ganhar uma vida
de mais previsibilidade e conforto.
É claro que não temos como perguntar a um caçador-coletor
daquela época se ele era mais feliz do que somos hoje, mas
os historiadores citam alguns pontos objetivos dessa transição
do nomadismo ao sedentarismo.
Ao deixar a caça e a coleta, muita gente passou a ter uma
alimentação menos variada. As jornadas de trabalho
ficaram mais longas. Vivendo em sociedades, as pessoas ficaram mais
suscetíveis a epidemias e a guerras. A desigualdade entre
diferentes classes sociais começou a ganhar forma.
Para Peter Stearns, uma das questões principais a serem
discutidas no contexto atual é o espírito de coletividade
dos caçadores-coletores.
Desenho feito por caçadores-coletores,
15 mil anos atrás; solidariedade grupal é vista como
importante para a felicidade desses grupos
“Eles tinham uma grande quantidade de solidariedade grupal”,
diz Stearns à BBC News Brasil.
“O que não quer dizer que não havia tensões,
mas eles realmente dependiam uns dos outros. E acho que há
muitos indicativos de que estruturas comunitárias melhoram
a felicidade. E um dos desafios da felicidade hoje é que,
para muita gente, estruturas comunitárias estão enfraquecidas”,
aponta Stearns.
“Em contrapartida, não podemos voltar a esse nível.
Eles (caçadores-coletores) não tinham os nossos confortos,
nem os mesmos níveis de saúde que temos. Não
há por que fingir que conseguiríamos voltar (no tempo).
Então precisamos encontrar nosso próprio equilíbrio
que funcione em um contexto moderno”.
Diferenças culturais da felicidade
E existe uma definição objetiva de felicidade?
Peter Stearns descreve-a no livro como uma espécie de reforço
emocional para ações que trazem bem-estar. E com efeitos
físicos e sociais também: a felicidade ajuda a baixar
a pressão sanguínea e, de modo geral, ajuda as pessoas
a se relacionarem melhor entre si.
Tanto que sorrir, no contexto moderno, é uma forma de fazer
contato com pessoas desconhecidas.
A filosofia também deu muitas contribuições
para entendermos a felicidade. Alguns exemplos: a ideia mais imediatista,
de simplesmente aumentar o prazer e evitar sofrimento, é
chamada de felicidade hedônica.
Já a felicidade eudaimônica é a que vem de
relacionamentos pessoais positivos ou do orgulho e sensação
de dever cumprido depois de um trabalho importante, por exemplo.
Muitos psicólogos acabam vendo a felicidade como uma combinação
dessas duas visões.
Mas as formas como isso se manifesta mudam a cada cultura, e a
cada tempo.
Peter Stearns considera fascinante como essa visão é
bastante diferente nos países orientais e na América
Latina, por exemplo.
“Os russos não parecem ter expectativa de felicidade
da mesma forma que os ocidentais. (...) Os japoneses não
se saem muito bem em rankings internacionais de felicidade, considerando
o quanto eles são prósperos e saudáveis. Mas
isso reflete uma cultura diferente. A forma como pensamos na felicidade
no Ocidente tende a ser altamente individualista”, explica
o historiador à BBC News Brasil.
Percepção da felicidade costuma
ser diferente entre países ocidentais e orientais
“Os japoneses têm um senso maior da importância
da coesão comunitária. Então é difícil
dizer: será que os japoneses são menos felizes que
os ocidentais? Ou eles simplesmente veem a vida de um jeito um pouco
diferente? Provavelmente um pouco de ambos. (...) A situação
da América Latina é fascinante porque os latino-americanos
costumam se sair muito bem em (rankings de) felicidade em comparação
com seus níveis gerais de economia e saúde. Então
parece haver algo na cultura latino-americana que desencadeia uma
expectativa bastante alta de felicidade e um nível alto de
realização. E as variações culturais
são fascinantes e não correspondem exatamente ao nível
de desempenho econômico.”
Ou seja, é bom relativizar as conclusões dos rankings
globais de felicidade. Mas mesmo assim eles trazem lições
interessantes, prossegue o historiador.
“Há atributos óbvios das sociedades que costumam
ser listadas como as mais felizes: elas têm níveis
relativamente altos de desenvolvimento econômico. Têm
uma rede social bem desenvolvida. Então acho que há
algo (a ser aprendido) nesses estudos”, ele diz. “Obviamente,
há também debates. O caso do Butão, por exemplo,
é amplamente discutido. O país não pontua muito
nesses rankings internacionais, mas eles (autoridades do Butão)
argumentam que têm uma abordagem diferente, mais religiosa
e holística (à felicidade). E sob esses padrões,
os líderes locais alegam estar indo bem.”
'Aspirações modestas à
felicidade'
Toda essa discussão reforça a ideia de que entender
a história da felicidade pode trazer lições
importantes para como nos enxergamos no mundo.
“Muita ênfase no prazer provavelmente não é
muito sensato, particularmente à medida que você avança
em vários estágios da vida”, opina Stearns.
“O que você quer é dar ênfase às
conquistas, e não digo de uma perspectiva de status, mas
sim de contribuir para a sociedade, ter uma sensação
de que a sua vida valeu para algo. Esse é provavelmente o
objetivo mais importante.”
Outra lição, na visão dele, é o equilíbrio
delicado entre buscar sentido na vida, mas sem fazer disso algo
obsessivo.
“A pressão para ser feliz corre o risco de ser contraproducente.
Não acho que as pessoas nunca devam se perguntar, ‘sou
feliz?' Mas não devem fazer isso com frequência demais.
Não é realista. Vamos manter nossas aspirações
mais modestas.”