12/06/2022
O boticário que se tornou um dos maiores
intelectuais espíritas do Brasil

Juliana Sayuri
Do TAB, em Matão (SP)
Entre os ladrilhos
lascados e desbotados pelo tempo, ainda dá para ler na esquina
entre a rua Rui Barbosa e a avenida 28 de Agosto: Pharmacia Schutel.
Hoje, o endereço abriga uma Multidrogas, drogaria multicolorida
e marcada por um cartaz colossal "aqui tem farmácia
popular" como chamariz. Mas quando Cairbar Schutel (1868-1938)
chegou ali, era tudo mato, literalmente.
Era, dizia-se na rádio, "um pequenino vilarejo, cercado
de gragoatãs, guabirobas, indaiás, joás, ingás,
marias-pretas, ariticuns, cobras, onças, macacos e mata virgem,
com perobeiras, jequitibás, embaúbas, cabreúvas,
paus d'alho, cedros, jacarandás e uma imensidade de árvores
seculares, servindo de trono às aves canoras, no despertar
das madrugadas e cerrar das Aves-Marias".
Era assim a vila do Senhor Bom Jesus das Palmeiras, a atual cidade
de Matão, no interior de São Paulo. Schutel, um jovem
farmacêutico carioca, saiu do Rio de Janeiro em busca de ares
mais tranquilos — e mais distantes da tuberculose, a infecção
que rondava a capital à época. Passou por Piracicaba,
Itápolis e Araraquara até se instalar no vilarejo,
em 1895.
Ele abriu a farmácia de esquina no centro da vila. Ao redor,
construiu casinhas de madeira para abrigar hansenianos (à
época estigmatizados como "leprosos") e internos
(tidos como "loucos" por outras instituições).
"Tratava todo mundo, inclusive quem não tinha condições
de pagar", conta Lúcia Helena Marchesan, 67, no endereço
onde um dia viveu o boticário que ficou conhecido como "o
pai dos pobres de Matão".
Lúcia é quem hoje abre as portas da construção
centenária, que foi convertida no Memorial Cairbar Schutel
no fim de 2013. Fechado devido à pandemia de covid-19, o
memorial reabriu recentemente a visitantes, mediante agendamento
prévio.
A poucos passos da farmácia, a casa
amarela abriga antigos frascos de remédio, fotografias, documentos
oficiais da cidade, panfletos, uma Bíblia rara de 1832, uma
caderneta de identidade da Associação Paulista de
Imprensa, uma máquina de escrever Royal 10, livros que o
carioca escreveu e cartas que trocou com intelectuais ingleses e
franceses interessados em fenômenos espíritas.
O acervo dá pistas das diferentes facetas de Cairbar Schutel:
além de farmacêutico, foi um dos responsáveis
por elevar o vilarejo à condição de cidade,
em 1898, e ocupou o cargo de intendente de Matão (o equivalente
a prefeito nos dias atuais); católico, abraçou o espiritismo
e se tornou um de seus maiores propagadores, às vezes tratado
como "bandeirante" espírita: fundou o Centro Espírita
Amantes da Pobreza e o jornal O Clarim em 1905, ajudou a construir
o Hospital de Caridade em 1913, iniciou a Revista Internacional
de Espiritismo em 1925 e fez conferências de rádio
sobre a religião na década de 1930.

'Amantes
da pobreza'
"Cairbar
foi pioneiro", diz Cássio Leonardo Carrara, 34, autor
de "O Som da Nova Era", livro-reportagem que trata da
trajetória do jornal mensal O Clarim.
De Mineiros do Tietê (SP), Cássio cresceu ouvindo as
histórias de Schutel na sua família, espírita
desde os tempos de seu bisavô. "Lembro de meu pai lendo
'E, para o resto da vida' [livro de Wallace Leal Valentin
Rodrigues] para nós, lembro da revista e d'O Clarim
entregue em casa", conta.
Cássio se mudou para Matão na adolescência e
depois cursou jornalismo na Uniara (Universidade de Araraquara),
campus a 30 km dali. Desde 2011 trabalha como jornalista na Casa
Editora O Clarim, que até hoje publica o jornal O Clarim
e a Revista Internacional de Espiritismo — eles não
divulgam a tiragem. A edição de junho da revista,
por exemplo, discute como conflitos íntimos impactam na sociedade
através da intolerância e da violência. "Cairbar
é uma referência intelectual. O espiritismo não
tem estrutura hierárquica, não tem líder",
diz o escritor.
Antes dele, quem por muito tempo liderou a produção
foi o editor Apparecido Belvedere, 94, atualmente afastado por motivos
de saúde. Na juventude, Belvedere frequentava o Centro Espírita
Cairbar Schutel no Itaim Bibi, na zona sul da capital paulista,
e visitava Matão todo agosto, mês de aniversário
d'O Clarim. Na década de 1970, mudou-se para lá e,
até pouco tempo, fazia trabalho voluntário na editora.
"Tudo
é voluntário", diz Lúcia Marchesan, atual
vice-presidente da casa, que busca se manter com a venda de livros
e assinaturas, além de doações.
A certo ponto,
conta Cássio Carrara no livro "O Som da Nova Era",
o Centro Espírita Amantes da Pobreza não inspirava
muita confiança em bancos e empresas — "se são
amantes da pobreza, talvez acabem não tendo como honrar seus
compromissos conosco", pensava-se.
Na verdade, a expressão queria dizer amor aos
pobres, a caridade com quem necessita, devido a pobreza não
só material, mas intelectual, sentimental e de espírito.
Dada a confusão, decidiu-se em 2003 rebatizar a instituição
como Centro Espírita O Clarim. Debaixo do guarda-chuva do
centro estão a Casa Editora O Clarim e o Memorial Cairbar
Schutel.
O centro possui um auditório com bancos de madeira cedidos
pelo antigo cinema da cidade, uma livraria e salas para reuniões
mediúnicas, estudos e evangelização, frequentadas
por cerca de 30 pessoas. A editora corresponde a uma pequena redação
— em 2010, os dirigentes decidiram desmontar o parque gráfico
e terceirizar a impressão, pois o maquinário já
estava defasado e seria caro demais modernizá-lo.
'Sou imortal'
Mário de Andrade (1893-1945)
escreveu o manuscrito de "Macunaíma" na chácara
Sapucaia, na cidade de Araraquara, em 1926. Na época, o autor
modernista visitou Matão. "Quando por lá passou,
foi à farmácia e visitou as instalações
da gráfica do jornal O Clarim, e parece não ter desgostado
daquela que descreveu como 'cidadezinha progressista'", contou
no Facebook o crítico literário Paulo Franchetti,
professor da Unicamp (Universidade Estadual de Campinas).
A farmácia foi um ponto de encontro intelectual e cultural
da cidade, considera o crítico matonense. Após a morte
de Cairbar Schutel, a drogaria passou para Alberto Benassi, conhecido
como Seu Albertinho, que por muito tempo preservou a estrutura tal
qual a original do boticário, com armários e balcões
de madeira. Seu Albertinho faleceu recentemente e no endereço
se instalou uma filial da franquia Multidrogas.
Foi
nos tempos de farmácia que Schutel se tornou espírita,
enquanto buscava respostas sobre seus sonhos: órfão
na infância, o jovem farmacêutico vinha sonhando constantemente
com os pais.
Primeiro procurou um padre, que lhe sugeriu
deixar a história do além pra lá. Passou então
a buscar outras fontes de informação, juntando-se a
amigos em sessões de tiptologia, experiência que os espíritas
realizam com mesas giratórias.
Para espíritas, a morte não é o fim: todos
teríamos vidas passadas e as reencarnações
seriam oportunidades para melhorarmos, evoluirmos. A inspiração
vem do autor francês Allan Kardec (1804-1869), que "codificou"
O Livro dos Espíritos, em 1857 — 18 de abril, data
de lançamento do livro, foi escolhido como Dia Nacional do
Espiritismo, instituído pelo Congresso e publicado no Diário
Oficial de 31 de maio. No Brasil vive o maior contingente de espíritas
kardecistas do mundo, com cerca de 3,8 milhões de adeptos,
segundo os dados mais recentes do IBGE (Instituto Brasileiro de
Geografia e Estatística).
Cairbar Schutel foi enterrado no cemitério de Matão.
"Vivi, vivo e viverei, porque sou imortal", diz sua lápide.
A frase teria sido ditada pelo editor e psicografada pelo médium
paulista Urbano de Assis Xavier (1912-1959), seu discípulo.
Do lado "de lá" é difícil dizer,
mas do de cá sobreviveu seu legado: influente até
hoje, ele dá nome a diversos centros espíritas, hospitais,
centros de assistência, abrigos, avenidas e ruas Brasil afora.
Fonte: https://tab.uol.com.br/noticias/redacao/2022/06/08/o-boticario-que-se-tornou-um-dos-maiores-intelectuais-espiritas-do-brasil.htm
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