Fazendo um pouco de lição de casa, Ruth Borovski
sentou-se numa biblioteca e fez uma busca no Google por “fosfato”,
usando seu smartphone.
Algo assim não poderia ter acontecido 19 meses antes, quando
Ruth tinha 27 anos e vivia em uma das seitas judaicas ultraortodoxas
fechadas de Israel. Naquela época ela nunca ouvira falar
em fosfato. Ou em smartphones.
Ruth diz que nunca havia visto uma biblioteca. Agora é difícil
tirá-la de dentro de uma.

“Todo dia aprendo alguma coisa nova – até todo
minuto”, comenta ela, maravilhada, entre as estantes da biblioteca,
onde o conhecimento está se abrindo diante dela em ritmo
vertiginoso, até assustador.
Sua corrida em direção ao mundo maior começou
em 2018, quando, encurralada em um casamento arranjado, Ruth ligou
para a linha direta de uma ONG de Jerusalém chamada Hillel
e disse que queria deixar sua família e sua comunidade.
Com a ajuda da Hillel, Rith engrossou as fileiras crescentes dos
yotzim, ou “pessoas que partem”, que abandonaram comunidades
religiosas fechadas para entrar em um mundo secular em que estão
mal equipadas para se orientar.
Ruth disse que deixou os ultraortodoxos, conhecidos em Israel como
os haredim, sem nunca ter aberto uma conta bancária, andado
de ônibus, procurado um emprego ou conversado com um desconhecido.
Agora ela já fez todas essas coisas, parte do que descreve
como sua corrida acelerada para compensar as décadas que
passou envolta em um casulo cultural, nunca se afastando mais de
450 metros da casa onde, afirma, ela e seus 12 irmãos não
aprenderam nada de ciência ou matemática, tampouco
história, excetuando o que encontravam em textos religiosos.
Ruth fazia parte do grupo hassídico satmar, conhecido por
sua adesão religiosa especialmente rígida. Ela não
tinha acesso a televisão, rádio ou internet –até
desconhecia a existência de tudo isso.
“Agora estou tentando aprender tudo”, explica ela durante
um intervalo em uma aula sobre estrutura celular, parte de um programa
de estudos especiais oferecido pela Universidade Hebraica de Jerusalém
a estudantes que não passaram pelo ensino básico.
“Acho que não tenho tempo suficiente.”
As aulas, assim como o novo apartamento de Ruth e seu emprego em
um berçário de hospital, foram organizadas com a ajuda
da Hillel.
A entidade atua como pista de pouso para as pessoas que fazem o
salto, oferecendo aos yotzim desde um lugar para dormir até
passeios guiados pela cacofonia de um shopping center.
A Hillel existe há mais de 25 anos como pequeno grupo de
voluntários que fixava adesivos com o número de sua
linha direta sobre postes de luz em bairros haredim –apenas
para vê-los ser arrancados rapidamente.
A entidade não tem relação com a organização
estudantil judaica do mesmo nome que está presente em muitas
universidades.
As comunidades ultraortodoxas muitas vezes proporcionam a seus
membros um senso de sentido na vida, certeza, beleza e pertencimento,
coisas que podem estar fora do alcance de quem vive no mundo secular.
Mas mais pessoas que nunca vêm pedindo ajuda à Hillel
para entrar nesse mundo secular –1.700 neste ano até
agora, sendo que o número tem aumentado cerca de 20% ao ano.
Um estudo recente da Universidade de Tel Aviv sugeriu que 6% dos
adultos haredim deixam as comunidades religiosas de suas famílias.
Para dar conta do recado, a Hillel aumentou seu quadro de funcionários,
de sete em 2015 para 32 hoje. A entidade se prepara para abrir sua
quarta filial no país e mantém um abrigo de emergência
em Jerusalém.
A organização opera com um orçamento anual
de cerca de US$ 10,5 milhões, sendo que boa parte desse valor
é levantada junto a doadores americanos.
O dinheiro é gasto com bolsas de estudos, acompanhamento
psicológico, habitação e colocação
em empregos.
Entre os clientes aos quais presta assistência jurídica
estão mais de 120 mulheres que tiveram o acesso a seus filhos
impedido por tribunais religiosos que encaram sua saída dos
haredim como um colapso moral que as torna impróprias para
ser mães.
Numa noite recente, a sede da Hillel, perto de um McDonald’s
no centro de Jerusalém, estava cheia de voluntários
e clientes que examinavam roupas doadas e revisavam lição
de casa.
A entidade diz que a maioria dos yotzim que passam pela Hillel
adotam um modo de vida secular. Ninguém mais usa as mechas
de cabelo laterais ou os cintos de corda que distinguem os haredim.
Ruth, que comparece à sede da Hillel frequentemente para
participar dos jantares coletivos e passeios guiados, usava os cabelos
castanhos descobertos e uma camiseta preta estampada com os dizeres
“Thin Skin, Strong Mind” (algo como “sensível,
cabeça boa”).
Ela acabara de experimentar seu primeiro café mocha. Ruth
e um grupo de amigos que ela conheceu na Hillel formaram uma espécie
de clube de exploradores seculares que se expõem metodicamente
às novas maravilhas do mundo.
Com seus amigos, ela nadou numa piscina pela primeira vez na vida,
sentou-se numa praia pela primeira vez e comeu sua primeira comida
não kosher (bacon e um cheesebúrger).
Ela e seus amigos fizeram tatuagens juntos: um pássaro,
uma flor, o pequeno emblema de Batman que agora enfeita o pulso
de Ruth.
Como muitos outros yotzim, ela tem prazer na derrubada de todas
as restrições. “É uma espécie
de reação natural à liberdade”, comentou
Dani Shomron, um voluntário da Hillel.
Em um dos escritórios da Hillel um homem estava sentado
falando ao telefone na linha direta para a qual Ruth telefonou certa
vez, conversando com outra pessoa que estava pensando em virar seu
universo conhecido do avesso.
“Às vezes as pessoas estão apenas começando
a contemplar a ideia; outras vezes, já estão dormindo
na rua”, comentou Shomron.
Recentemente ele estava ao telefone com um homem de 20 e poucos
anos que foi expulso de casa quando seu irmão encontrou seu
smartphone escondido.
Muitos haredim – que formam mais de 10% da população
de Israel — se encerram dentro de seus bairros.
Eles são dispensados do serviço militar e passam
seus dias em escolas, conhecidas como yeshivás, que frequentemente
trocam o ensino básico típico por estudos religiosos.
Partidos políticos ultraortodoxos têm sido uma peça
fundamental na coalizão governante do primeiro-ministro Benjamin
Netanyahu, e uma reação contra a influência
haredi é uma das causas do impasse político prolongado
em Israel. Mas algumas seitas rejeitam qualquer participação
política.
Os satmar, por exemplo, rechaçam o sionismo e o governo
israelense.
Em alguns casos a Hillel prega a paciência. Quando Avi Tfilinski
ligou para a linha direta da entidade pela primeira vez, era um
rabino de 24 anos que estava passando por uma crise de fé
e não conseguia aceitar que as regras religiosas rígidas
de sua comunidade refletissem a vontade de Deus.
A Hillel o avisou que, se ele saísse, nunca mais poderia
rever seus filhos.
Assim, Tfilinski passou anos reunindo-se com outros céticos
em segredo. Tentou liberalizar seu casamento, no qual ele era considerado
o senhor e sua esposa, a “escravizada”.
“Comprei velas e tentei criar um clima romântico, mas
ela rejeitou”, disse ele. “À medida que eu fui
ficando mais livre, ela ficava mais rígida.”
Tfilinski levou 12 anos para voltar a ligar para a linha direta
e fugir para o escritório da Hillel.
Sua família, incluindo seus 13 irmãos, fez shivá
para ele, o ritual de luto judaico. Para eles, Tfilinski havia morrido.
Mas ele disse que, quando cortou suas mechas de cabelo laterais,
“foi como tirar um peso de 800 toneladas de minha cabeça”.
Após anos de terapia, ele encontrou a felicidade trabalhando
na indústria do cinema.
Ele acompanha o que acontece na vida de seus seis filhos –e
agora dois netos também— por meio de espiões
em sua antiga comunidade.
“Esses pais amam seus filhos, mas o rabino lhes fala que,
quando um filho parte, passa a constituir uma má influência
sobre outros filhos da comunidade”, explicou Elimelech Lamdan,
um dos poucos haredim que se dispõe a falar sobre os yotzim
com uma pessoa de fora.
Três de seus próprios dez filhos já abandonaram
sua religião, e isso levou a ele e sua mulher demonstrarem
mais abertura.
Ruth Borovski praticamente não tem mais contato algum com
sua vida anterior. Quando era criança, ela e suas oito irmãs
ajudavam sua mãe a cuidar da casa, enquanto seu pai passava
12 horas por dia estudando a Torá na yeshivá.
Seus quatro irmãos seguiram o exemplo do pai assim que se
tornaram maiores de idade.
Quando ela tinha 23 anos, o rabino visitou sua casa, e pouco depois
ela se viu sentada em silêncio ao lado de um rapaz desajeitado
e tímido, enquanto seus pais conversavam com os dele.
Após meia hora, eles foram embora. Ela reviu o rapaz dois
meses mais tarde, no casamento deles. “Ninguém me perguntou
se eu tinha gostado dele”, diz Ruth.
Ela não gostara. Ruth não quer falar sobre seus quatro
anos de vida casada.
Comentou apenas que foram anos infelizes e que a comunidade não
lhe permitia nenhuma maneira de escapar do casamento.
Até então ela não ansiava fugir da única
vida que jamais conhecera, mas de repente começou a se sentir
presa dentro dela.
“Eu não queria partir, mas não havia lugar
para mim lá”, disse Ruth. Uma amiga que se solidarizou
com ela lhe deu o telefone da Hillel, e dois dias depois ela estava
no escritório da entidade em Jerusalém.
Tudo era estranho para ela. A primeira vez que ela viu a rua Jaffa,
uma grande avenida comercial cortada por um bonde de construção
francesa, foi um choque.
Ruth ficou atônita ao ver uma partida de futebol na televisão
– ela nunca havia visto futebol ou televisão.
“Foi como estar em um planeta diferente”, comentou.
Pouco a pouco a confusão vem dando lugar ao bem-estar. Ruth
não sente mais a tentação de ficar em contato
com seus pais, que a pressionaram para pedir desculpas e voltar
a seu marido.
“Estou feliz com minha vida. Não penso muito neles”,
disse.
Ela antes falava apenas o iídiche, a língua histórica
dos judeus europeus, mas agora está aprendendo hebraico e
inglês.
Ruth passa quase tanto tempo estudando quanto fazia seu pai, incluindo
duas ou três horas diárias na biblioteca, onde ela
tira livros das estantes de modo aleatório.
Depois de assistir a “Frozen”, o primeiro filme de
animação de sua vida, ela encheu duas páginas
com anotações de uma biografia colegial de Walt Disney.
“Ela desconhece as coisas mais básicas, mas se esforça
muito”, comentou a professora Dvorah Dminisky, a professora
que acaba de avaliar a prova sobre estrutura celular em que Ruth
recebeu nota nove.
Ruth trabalha 40 horas por semana no berçário do
hospital e pretende usar uma bolsa de estudos da Hillel para estudar
enfermagem.
Um dia ela quer trabalhar em um hospital de Boston, uma meta que
lhe foi transmitida por um de seus professores que morou nessa cidade.
Ruth nunca havia ouvido falar em Boston.
Mas tudo bem. Outra coisa nova que ela descobriu é que o
futuro terá muito pouco a ver com seu passado.
