Entre os participantes brasileiros do Sínodo da Amazônia,
reunião convocada pelo papa Francisco até este próximo
domingo (27/10/2019) para discutir os rumos da fé e dos
problemas sociais e ambientais na região, está uma
delegação de 26 membros que defende uma forma de
evangelizar os povos indígenas bastante distinta da que
marcou a Igreja Católica desde sua chegada ao Brasil.
“Trabalhamos com a evangelização no sentido
do diálogo, do respeito às culturas diferentes e,
sobretudo, do desafio de perceber os sinais da presença
de Deus no meio de cada povo”, diz dom Roque Paloschi, arcebispo
de Porto Velho (RO) e presidente do Cimi (Conselho Indigenista
Missionário).
Criado em 1972, durante o regime militar, o Cimi conta hoje com
171 missionários, divididos em 11 regionais espalhadas
pelo país. Na delegação enviada ao sínodo
em Roma estão tanto o arcebispo quanto missionários
leigos (não religiosos) e parceiros indígenas do
órgão.
Influenciado pela teologia da libertação, corrente
de pensamento para a qual não é possível
separar a fé cristã da luta contra a pobreza e as
desigualdades, o conselho oferece assistência jurídica,
teológica e de comunicação às comunidades
indígenas que buscam garantir seus direitos constitucionais,
sem que isso implique na conversão de tais povos ao catolicismo.
Com 14 anos de episcopado na Amazônia (antes de se tornar
arcebispo de Porto Velho, também foi bispo de Roraima),
dom Roque Paloschi explica as diferentes abordagens desse trabalho.
“Em Roraima, tive duas experiências diferentes. Com
o povo macuxi, que já tinha tido contato com monges beneditinos
no início do século 20, esse processo de diálogo
incluiu a acolhida dos sacramentos [como o batismo e a comunhão
católicos]."
"Já com o povo ianomâmi tivemos outro processo,
de respeito e de promoção da vida daquelas comunidades.
Nesse segundo caso, não é uma evangelização
explícita, mas sim uma presença respeitosa dos missionários
junto a eles.”
A chamada “evangelização implícita”,
de fato, é um dos eixos do trabalho do Cimi, diz o missionário
leigo Aleandro Laurindo da Silva, 36, que trabalha com comunidades
indígenas urbanas, de etnias como os guaranis e os pancararus,
na Grande São Paulo, e também com grupos do Vale
do Ribeira (também guaranis).
“Nos nossos encontros com eles, não falamos de Jesus
Cristo, de Deus, da eucaristia”, afirma ele. “A perspectiva
da evangelização implícita é a seguinte:
como vamos mostrar a essas comunidades que os cristãos
são bons, que Deus é bom? Por meio da nossa presença
solidária ao lado delas, para que conquistem seus direitos.”
De acordo com Silva, um dos modelos para essa abordagem foi a
atuação de missionárias francesas, ligadas
à Fraternidade das Irmãzinhas de Jesus, junto aos
tapirapés, povo de Mato Grosso que quase desapareceu nas
primeiras décadas do século 20.

Com a ajuda das missionárias, cujo trabalho de assistência
médica reduziu drasticamente a mortalidade infantil entre
os tapirapés, a etnia hoje tem uma população
de cerca de mil pessoas. Elas tinham uma pequena capela na aldeia
da etnia, às vezes visitada pelos indígenas, mas
passaram a valorizar os ritos tradicionais do grupo, inclusive
tendo certa participação neles.
“A evangelização não é entregar
um pacote pronto, mas traçar caminhos junto com as populações”,
diz o arcebispo. “Se um macuxi se torna cristão e
católico, não pode negar sua tradição,
seus costumes, sua história. Do contrário, a evangelização
se torna colonização.”
O documento inicial preparado para as discussões do sínodo,
o chamado “instrumentum laboris” (“instrumento
de trabalho”, em latim), tem sido atacado por cardeais e
outros prelados conservadores.
As críticas se centram nas propostas para acolher influências
teológicas e rituais dos povos indígenas na liturgia
católica e também no debate sobre permitir padres
casados e uma maior participação das mulheres na
Igreja. O arcebispo de Porto Velho diz que o melhor é evitar
reações violentas aos críticos.
“Diante das polêmicas, das acusações,
o melhor caminho é seguir a experiência de Jesus.
Diante de Pilatos e de Herodes, Jesus quase não fala. Evitou
a bateção de boca e foi fiel à sua missão.”
Para Aleandro Silva, a virulência dos ataques já
existia, em certa medida, dentro de grupos católicos ultraconservadores
brasileiros, por exemplo. “Eles já tinham essa visão
deturpada do Evangelho antes.”
O missionário ressalta a importância dos debates
propostos pelo documento.
“A gente está falando de regiões remotas,
para onde a maioria dos padres não quer ir. Às vezes
o pessoal do Cimi leva dois meses viajando de barco para percorrer
nove aldeias, gastando milhares de reais, quando seria possível
oferecer assistência religiosa a essas populações
de outra maneira, formando pessoas nas próprias comunidades."
"Teremos consequências positivas para a Igreja no
mundo todo com o sínodo: ela vai se arejar, abrir as janelas
e deixar de se pautar apenas pela realidade europeia. E será
muito importante denunciar a visão destrutiva e integracionista
que existe sobre os povos indígenas.”

ENTENDA O SÍNODO
O que é sínodo
O Sínodo dos Bispos é uma reunião episcopal
de especialistas. Convocado e presidido pelo papa, discute temas
gerais da Igreja Católica (como juventude, em 2018), extraordinários
(considerados urgentes) e especiais (sobre uma região).
Instituído em 1965, acontece neste ano pela 16ª vez.
Especial Amazônia
Anunciado em 2017 pelo papa Francisco, o Sínodo da Amazônia
trata de assuntos comuns aos nove países do bioma, organizados
em dois eixos: pastoral católica e ambiental. Depois de
meses de escuta da população local, bispos e demais
participantes se reúnem de 6 a 27 de outubro, no Vaticano.
Para que serve
O sínodo é um mecanismo de consulta do papa. Os
convocados têm a função de debater e de fornecer
material para que ele dê diretrizes ao clero, expressas
em um documento chamado exortação apostólica.
As últimas duas exortações pós-sinodais
foram publicadas cerca de cinco meses depois de cada assembleia.
Quem participa
O Sínodo da Amazônia reúne 185 padres sinodais
(como são chamados os bispos participantes), sendo 57 brasileiros.
Além dos bispos da região, há convidados
de outros países e de congregações religiosas.
Também participam líderes de outras comunidades
cristãs, da população e especialistas —no
total, há 35 mulheres. O papa costuma presidir todas as
sessões.
Principais polêmicas
Este sínodo tem recebido críticas do governo brasileiro,
incomodado com o viés ambiental e pressionado pela situação
na Amazônia, e da ala conservadora da igreja, que vê
como inapropriado o debate sobre a ordenação de
homens casados como sacerdotes, a criação de ministérios
oficiais para mulheres e a incorporação de costumes
indígenas em rituais católicos.