Autor: E. Muller

Allan Kardec (1804- 1869). Codificador do
Espiritismo
No dia em que Allan Kardec desencarnava, constituindo
este fato dolorosa surpresa para todos os amigos e para os espíritas
em geral, nesse mesmo dia o Sr. E. Muller, grande amigo do Codificador
e de sua digna esposa assim se expressava por carta ao Sr. Finet:
Paris, 31 de março de 1869
Amigo:
“Agora, que já estou um pouco mais calmo, eu vos
escrevo. Enviando-vos meu aviso, como o fiz, talvez tenha agido
um tanto brutalmente, mas me parecia que devíeis receber
a comunicação imediata desse falecimento.
Eis alguns pormenores:
Ele morreu essa manhã, entre onze e doze horas, subitamente,
ao entregar um número da Revue a um caixeiro de livraria
que acabava de comprá-lo; ele se curvou sobre si mesmo,
sem proferir uma única palavra: estava morto.
Sozinho em sua casa(Rua de Sant’ana), Kardec punha em ordem
seus livros e papéis para a mudança que vinha processando
e que deveria terminar amanhã. Seu empregado, aos gritos
da criada e do caixeiro, acorreu ao local, ergueu-o... nada, nada
mais. Delanne acudiu com toda a presteza, friccionou-o, magnetizou-o,
mas em vão. Tudo estava acabado.
Venho de vê-lo. Penetrando a casa, com móveis e
utensílios diversos atravancando a entrada, pude ver pela
porta aberta da grande sala de sessões, a desordem que
acompanha os preparativos para uma mudança de domicílio;
introduzido numa pequena sala de visitas, que conheceis bem, com
seu tapete encarnado e seus móveis antigos, encontrei a
Sra. Allan Kardec assentada no canapé, de face para a lareira;
ao seu lado, o Sr. Delanne; diante deles sobre dois colchões
colocados no chão, junto à porta da pequena sala
de jantar, jazia o corpo, restos inanimado daquele que todos amamos.
Sua cabeça, envolta em parte por um lenço branco
atado sob o queixo, deixava ver toda a face, que parecia repousar
docemente e experimentar a suave e serena satisfação
do dever cumprido.
Nada de tétrico marcara a passagem de sua morte; se não
fosse a parada da respiração, dir-se-ia que ele
estava dormindo.
Cobria-lhe o corpo uma coberta de lã branca, que, junto
aos ombros dele, deixava perceber a gola do robe de chambre, a
roupa que ele vestia quando fora fulminado; a seus pés,
como que abandonadas, suas chinelas e meias pareciam possuir ainda
o calor do corpo dele.
Tudo isto era triste, e, entretanto, um sentimento de doce quietude
penetrava-nos a alma; tudo na casa era desordem, caos, morte,
mas tudo aí parecia calmo, risonho e doce, e, diante daqueles
restos , forçosamente meditamos no futuro..
Eu vos disse que na sexta-feira é que o enterraríamos,
mas ainda não sabemos a que horas; esta noite seu corpo
esta sendo velado por Desliens e Tailleur; amanhã será
por Delanne e Morin.
Procuram-se entre os seus papéis, suas últimas
vontades, se é que ele as escreveu; de qualquer forma,
o enterro será puramente civil.
Escrever-vos-ei, dando-vos os pormenores da cerimônia.
Amanhã, creio eu, cuidaremos em nomear uma comissão
de espíritas mais ligados à causa, aqueles que melhor
conhecem as necessidades dela, a fim de aguardar e de saber o
que se irá fazer.
De todo o coração, vosso amigo,
(a) Muller.”
A segunda carta de Muller é igualmente
preciosa. É assim vazada:
Paris, 4 de abril de 1869
Amigos.
Uma grande folha de papel! Enchê-la-ei eu esta noite?
Curvado, abatido, começo apenas a despertar de uma emoção
muito natural.
Parece-me ter estado a sonhar, entretanto tal não ocorreu
e não posso ter o consolo de uma ilusão. Tudo é
realidade, verdade brutal, sancionada por um fato. Mas sou feito
de molde a que meu pensamento não pode se acostumar à
idéia de que ele já não existe1 Que já
não existe! Compreendei bem o que minha pena deseja dizer?
Pois o que penso, o meu coração desmente o que ela
exprime. Entretanto é bem verdade! Sexta-feira nos dirigimos
ao campo de repouso, conduzindo seus despojos mortais; e o lúgubre
ruído da terra, cobrindo seu caixão, repercutiu
em ecos em meu coração. Que vos direi?... que sofri,
e que não chorei?
Minha intenção – a triste cerimônia
fúnebre realizada! – era a de vos escrever logo em
seguida, porém o meu pensamento paralisado e o meu organismo
abatido não permitiram que meu coração tivesse
esse doce consolo; eu não pude faze-lo!
Eis, entretanto, na medida em que minhas lembranças podem
ser exatas, as circunstâncias da cerimônia:
Precisamente ao meio-dia o cortejo se pôs a caminho, um
carro mortuário modesto, um único, abria-o, arrastando
após si, docemente comprimida, a multidão numerosa
composta por todos aqueles que puderam se encontrar nessa última
reunião. O acompanhamento fúnebre foi conduzido
pelo Sr. Levent, vice-presidente da Sociedade Espírita
de Paris; em seguida a multidão de amigos, simpatizantes,
os interessados de toda espécie; os empregados e pessoas
desocupadas fechavam o cortejo, ao todo mil ou mil e duzentas
pessoas.
O carro fúnebre seguiu pela Rua de Grammont, atravessou
os grandes “boulevards”, a Rua Laffite, Notre-Dame-des-Lorrettes,
a Rua Fontaine, as avenidas exteriores de Clichy e penetrou no
Cemitério de Montmartre, em meio a multidão que
o seguia. Bem longe, lá no fundo, mais longe ainda, nos
limites do cemitério, uma vala escancarada aguardava o
seu ocupante, e os curiosos romperam as filas para ouvir os discursos
(pobres criaturas!). As cordas do coveiro envolveram o caixão
que desceu lentamente ao fundo do abismo. Um grande silêncio
se fez. O vice-presidente da Sociedade se aproximou da vala e
sua voz emocionada, compenetrada, convicta, em nome da entidade,
solicitou ao morto o prosseguimento de seus conselhos e lhe disse,
não um adeus mas uma até breve. Camille Flammarion,
sobre um pequeno cômoro, ali existente por acaso, tomou
da palavra em nome da ciência unida ao Espiritismo e, da
enérgica maneira afirmou aos olhos de todos, a fé
que o anima. Em seguida foi a vez de Delanne, que falando em nome
dos irmãos da província, prometeu ao Espírito
de Allan Kardec que todos seguiríamos a rota por ele tão
laboriosamente traçada. Um quarto e último discurso
foi pronunciado por nosso colega Sr. Barrot. Cada orador, dirigindo-se
ao Espírito Allan Kardec, lhe dizia: “Velai por nós,
velai por vossas obras, vós que possuís a liberdade”.
Nada nas palavras desses oradores lembrava essas tristes orações
fúnebres que fazem o coração desesperar por
suas palavras: “Adeus, eu não te reverei mais, nunca
mais!”. Longe de nós esse triste pensamento; o Espiritismo
oferece-nos uma consolação maior e todos os discursos
pronunciado sobre a tumba do Mestre terminaram por animadoras
palavras: Até logo, querido amigo de nossos corações,
até nos revermos em um mundo melhor! E possamos nós,
como tu cumprimos com nossa missão na Terra!
Em seguida a multidão se dispersou, retornando aos seus
afazeres ou às suas reflexões. A Sociedade deveria
se reunir à Rua Sant’Anne, para solicitar uma evocação:
assim sendo, os membros individualmente para lá voltavam
com apressuramento.
Seis comunicações foram ali obtidas.
Muito vosso
Muller
Aí estão, fiéis quanto possível,
as traduções dos documentos copiados em Lyon por
Sausse e cujos originais, como quase tudo talvez, se perdeu. Verifica-se
que Allan Kardec não foi sepultado no Père-Lachaise,
mas sim , no velho cemitério de Montmartre e, em seguida,
transladado para o dolmen mais tarde construído e onde
foi também sepultada a Sra. Allan Kardec.
É bom relacionar que o Sr. Delanne, várias vezes
mencionado, não é o celebre escritor espírita,
Gabriel, na época pouco mais do que uma criança,
mas seu pai o Sr. Alexandre Delanne, fiel amigo do Professor Rivail.
Quanto ao mais, além do discurso de Camille Flammarion,
tudo se perdeu na voragem do tempo. Nem mesmo o previdente Muller
pudemos obter qualquer notícia. Ele assinava-se M. E. Muller
e foi, como dissemos, o encarregado pela família do ilustre
desencarnado, de dirigir-lhe as últimas palavras de despedida.
Além disso há o retrato de Henri Sausse, o primeiro
biógrafo de Kardec, existente milagrosamente nos arquivos
de Cairbar Schutel. Tudo o mais é a própria obras
imperecível de Kardec.
Fonte: Reformador e Revista Internacional de
Espiritismo

Entrada do Cemitério Montmartre em
1860.
Imagem/fonte: http://www.pariscemeteries.com/news-1/2017/12/3/postcard-from-paris
Allan Kardec desencarnou
no dia 31-03-1869 e foi sepultado no dia 2 de abril de 1869 no
Cemitério Montmartre.
Discursaram: o vice-presidente da
Sociedade Parisiense de Estudos Espíritas, Sr. Levent,
o célebre astrônomo Camille Flamarion, que fez um
relato da veneranda existência do codificador, Alexandre
Delanne e E. Muller.
Em 29 de março de 1870, os despojos
de Kardec foram exumados e transferidos do Cemitério Montmartre
para o Cemitério Père-Lachaise. A inauguração
do belo dólmen do Père Lachaise se deu às
duas horas da tarde do dia 31. Na comovente solenidade, falaram
os eminentes vultos do espiritismo da França: Levent, Desliens,
Leymarie e Guilbert.