05/12/2011
O peso do silêncio na Noruega - Igualdade
mascara vergonha
"Naquela noite eu soube que, se não o deixasse, eu morreria."
A violência sexual é comum na Noruega, onde uma
em cada dez mulheres foi estuprada
A Noruega disputa com seus vizinhos nórdicos o título
de país com maior igualdade de gêneros do mundo. Mas ela
ainda parece parar na porta do quarto do casal. A violência sexual
contra mulheres na Escandinávia compartilha características
vistas em sociedades menos igualitárias: é muito comum
e raramente denunciada, e os que a cometem são ainda mais raramente
condenados. Antigos preconceitos sobre prerrogativas masculinas e suposições
modernas sobre a emancipação feminina conspiram para criar
um muro de silêncio, vergonha e ambiguidade jurídica.

- mulher que fugiu de seu marido -
SIMEN GRYTOYR PARA THE INTERNATIONAL HERALD TRIBUNE
Por KATRIN BENNHOLD
OSLO - Ela correu para salvar sua vida. Seu marido
a havia estuprado novamente naquela noite, dessa vez com mais violência
que nunca em 15 anos de casamento. Ele a forçou a ter relações
sexuais diversas vezes, a sufocou e ameaçou matá-la. Quando
ela fugiu nas primeiras horas de 23 de março de 2008 -desceu
as escadas, atravessou o pátio, chegou à rua e subiu em
um táxi-, ele a alcançou antes que o motorista pudesse
partir. Ela correu e finalmente chegou a uma delegacia.
"Você precisa estar disposta a deixar para trás
toda a sua vida, sua identidade de esposa, de uma família normal",
disse a mulher, hoje com 43 anos, em uma entrevista.
"Você precisa estar pronta para chamar de estuprador o
homem que você já amou. Eu não conseguia fazer
isso antes. Mas naquela noite soube que se não o deixasse eu
morreria."
A Noruega disputa com seus vizinhos nórdicos o título
de país com maior igualdade de gêneros do mundo. Mas ela
ainda parece parar na porta do quarto do casal.
A violência sexual contra mulheres na Escandinávia compartilha
características vistas em sociedades menos igualitárias:
é muito comum e raramente denunciada, e os que a cometem são
ainda mais raramente condenados. Antigos preconceitos sobre prerrogativas
masculinas e suposições modernas sobre a emancipação
feminina conspiram para criar um muro de silêncio, vergonha e
ambiguidade jurídica.
Uma em cada dez mulheres norueguesas com mais de 15 anos foi violentada,
segundo a maior organização de abrigo do país,
o Secretariado do Movimento de Abrigo. Mas pelo menos 80% dos casos
nunca são levados à atenção das autoridades,
e somente 10% deles terminam em condenação, segundo o
Ministério da Justiça.
Em nenhum lugar esse tabu é mais persistente do que na casa
da família, há muito fora do alcance da polícia
e do Estado.
"A maioria dos estupros acontece em casa", disse Tove Smaadahl,
diretora geral do Movimento de Abrigo.
Em uma pesquisa feita em 2005 pelo Instituto Norueguês de Pesquisa
Urbana e Regional, 9% das mulheres entrevistadas que tinham um relacionamento
disseram sofrer agressão sexual.
"Não, não temos igualdade entre homens e mulheres",
disse Smaadahl, "não enquanto não abordarmos o
estupro entre o casal."
Sexo, casamento e a lei
Na maior parte da história, a lei do estupro em muitos países
esteve na mesma categoria que o furto de propriedade, cometido por um
homem contra outra pessoa. Ela evoluiu para algo mais próximo
do rompimento de contrato pela mulher estuprada, cuja família
agora estava com a honra comprometida, antes de finalmente aumentar
o consenso de que o corpo de uma mulher deve ser controlado por ela
e que qualquer um que viole esse controle está cometendo um crime.
Mas a Noruega ainda é um dos 127 países - incluindo
12 membros da União Europeia - que não criminalizam
explicitamente o estupro no casamento, segundo uma pesquisa das Nações
Unidas publicada em julho.
Laura Turquet, principal autora do relatório Progresso das Mulheres
do Mundo 2011 da ONU, considera crucial criminalizar explicitamente
o estupro conjugal, tanto de modo simbólico quanto prático.
"A legislação explícita envia uma mensagem
clara para a polícia e os tribunais de que a violência
sexual nunca é uma questão privada", ela disse.
Segundo um estudo de 2009 entre 11 países europeus, de coautoria
de Liz Kelly, diretora da Unidade de Estudos de Abusos contra Mulheres
e Crianças da Universidade Metropolitana de Londres, uma das
raras comparações internacionais até agora realizadas,
61% dos estupros ocorreram em um espaço privado, frequentemente
a casa da vítima ou do perpetrador. Dois terços dos suspeitos
eram conhecidos da vítima e 25% eram parceiros atuais ou anteriores.
Como é citado no relatório, 40% dos estupros em que o
perpetrador não conhecia a vítima mas foi identificado
foram processados, com a condenação de mais de 70%. Em
comparação, somente 14% dos suspeitos de estupro entre
parceiros foram condenados.
Identidade destroçada
O marido da mulher norueguesa que fugiu desesperada naquela noite de
março é um mecânico de automóveis, um homem
descrito pelos amigos dela como "um sujeito comum". Quando
ela finalmente o levou ao tribunal, ele admitiu que a espancava mas
foi absolvido de estupro. Recebeu uma ordem de restrição
de um ano e a própria mãe dela lhe disse para voltar para
o marido.
"É por isso que tão poucas mulheres procuram a
polícia", lamentou Inger-Lise W. Larsen, que dirige o
maior abrigo para mulheres em Oslo desde 2007.
O abrigo já refugiou as filhas e irmãs de imigrantes
decididos a vingar a honra da família -mas também esposas
de embaixadores, policiais e diretores de empresas. Cerca de 350 mulheres
e 300 crianças a procuram todo ano; 70% sofreram violência
sexual, física e psicológica durante quatro anos antes
de chegar lá.
Mulheres norueguesas e de classe média de qualquer origem tendem
a sentir mais vergonha por ser estupradas e espancadas do que outras
mulheres no abrigo.
"Essas mulheres construíram toda uma identidade, uma
fantasia sobre um relacionamento e a família", disse Anne-Cecilie
Johnsen, psicóloga especializada em aconselhamento sobre estupro.
Quando há crianças envolvidas, é ainda mais difícil
se afastar. Havia a impossibilidade de admitir que "o pai do seu
filho é um estuprador", disse uma mulher. Além disso,
"desde que você permanece no casamento você tem uma
certa dose de controle", ela completou.
"Sim, você é espancada; sim, você é
estuprada. Mas também pode administrar a situação
e mantê-lo longe da criança."
"Não apenas uma questão feminina"
Knut Storberget, ministro da Justiça e da Polícia da
Noruega, recentemente aderiu a uma iniciativa da ONU de homens contra
a violência contra mulheres, juntamente com o primeiro-ministro
da Espanha, José Luis Rodríguez Zapatero, e o secretário-geral
da ONU, Ban Ki-moon.
"Esta não é apenas uma questão feminina",
disse a vice de Storberget, Astri Aas-Hansen, que encomendou um estudo
ambicioso para traçar o perfil dos estupradores.
O problema, segundo Helle Nesvold, uma médica no mais antigo
centro de tratamento do estupro da Noruega, é que as boas intenções
nem sempre se traduzem em bons resultados.
A maioria das vítimas de estupro, particularmente de agressão
matrimonial, não procuram o hospital para o exame forense, ela
disse. Até 60% das que o fazem preferem não envolver a
polícia.
"Mesmo em casos relatados à polícia, esta nem
sempre utiliza todas as evidências que coletamos", ela
disse, apontando para uma sala cheia de arquivos. Mas "a situação
está melhorando gradualmente", acrescentou.
Nesvold disse que muitas mulheres que sofreram agressão sexual
se recusam a falar sobre a experiência.
"Precisamos de uma estrutura muito mais abrangente, em que as
mulheres expostas à violência doméstica sejam
sistematicamente indagadas sobre abuso sexual", ela disse.
Por que a violência sexual ainda é tão predominante
em países onde a igualdade de gênero deu passos tão
gigantescos? Alguns especialistas afirmam que, conforme a sociedade
avança na distribuição de poder entre os gêneros,
pode haver uma transição em que a violência cresce
como última forma da dominação masculina.
"Quanto mais independentes as mulheres são dos homens
e mais iguais em termos de salário, posição social
e educação, maior a probabilidade de encontrarmos esse
tipo de crime", disse Aas-Hansen.
"Quando um crime acontece no quarto do casal, este deixa
de ser privado."