28/11/2008
Amparado em uma erudição monumental,
Lévi-Strauss inseriu o pensamento ameríndio no horizonte
da filosofia do Ocidente, diz o antropólogo Eduardo Viveiros
de Castro
Despatin e Gobeli/Reprodução
Lévi-Strauss em sua residência, em Paris, em 1993
CAIO LIUDVIK
COLABORAÇÃO PARA A FOLHA
Um dos principais antropólogos brasileiros, Eduardo
Viveiros de Castro se notabilizou também pela retomada criativa,
em livros como "A Inconstância da Alma Selvagem"
(ed. Cosac Naify), dos métodos e do projeto teórico de
Claude Lévi-Strauss.
E tal dívida intelectual fica patente pelo entusiasmo com que,
na entrevista a seguir, saúda o centenário do
pai da antropologia estrutural.
Professor no Museu Nacional (RJ), Viveiros de Castro também comenta
o percurso de Lévi-Strauss, sua recepção pela antropologia
brasileira e sua atualidade como paradigma científico e forma
de compreensão crítica dos impasses do mundo global.
FOLHA
- Como sintetizaria a importância de Lévi-Strauss para
a antropologia e o pensamento ocidentais?
EDUARDO VIVEIROS DE CASTRO - Lévi-Strauss reinventou
a antropologia, ao desmontar os fundamentos metafísicos do colonialismo
ocidental, e ao mesmo tempo revolucionou a filosofia, ao abrir um dos
principais caminhos do século [20] para que outros pudessem desmontar
os fundamentos colonialistas da metafísica ocidental.
FOLHA
- Quais de suas obras o sr. destacaria? Por quê?
VIVEIROS DE CASTRO - Todas. "As Estruturas
Elementares do Parentesco" (1949) é um dos grandes
clássicos do pensamento sociológico, um livro de mesma
estatura que "Economia e Sociedade", de Max Weber,
ou que "As Formas Elementares da Vida Religiosa",
de Durkheim.
"Tristes Trópicos" (1955) suscitou uma modificação
dramática na sensibilidade européia em relação
ao lugar da civilização ocidental na história humana.
"O Pensamento Selvagem" (1962) colocou os mundos
intelectuais que estavam fora da órbita das chamadas "grandes
tradições" (as culturas estatais, antigas ou modernas)
ao alcance do horizonte filosófico euro-americano.
Isso tudo dito, penso, porém, que os estudos mais tardios sobre
as mitologias ameríndias, a saber, a tetralogia "Mitológicas"
(1964-71) e as três monografias posteriores ("A Via das
Máscaras", 1979, "A Oleira Ciumenta",
1985, e "História de Lince", 1991) são
o ponto alto da trajetória intelectual de Lévi-Strauss.
Com esses livros, Lévi-Strauss tirou o pensamento ameríndio
do gueto em que jazia desde o século 16 e lhe deu carta de cidadania
para ingressar com a cabeça erguida no futuro intelectual da
espécie. A partir das "Mitológicas", a obra
de Lévi-Strauss se torna o momento em que o pensamento ameríndio
faz seu lance de dados, ultrapassando seu próprio "contexto"
cultural e se mostrando capaz de dar a pensar a outrem, isto é,
a todo aquele que, persa ou francês, se disponha a pensar -sem
mais.
Meu livro favorito de Lévi-Strauss são dois: "As
Origens dos Modos à Mesa", o terceiro volume das
"Mitológicas", maravilhosamente bem pensado, e "História
de Lince", livro curto e grandioso, sombrio e genial,
onde se acha exposta a teoria indígena da "descoberta"
da América pelos europeus.
FOLHA
- Em que circunstâncias o sr. entrou em contato pela primeira
vez com a obra lévi-straussiana? Que impacto esse "encontro"
teve para o seu próprio modo de conceber e praticar a antropologia?
Poderia exemplificar com alguma de suas obras?
VIVEIROS DE CASTRO - Os dois primeiros livros de antropologia
que li foram "As Estruturas Elementares" e "O Cru e o
Cozido", em 1970-71, em cursos que [o crítico] Luiz Costa
Lima dava na PUC-RJ na época.
Note-se que, se foram os patronos da USP que trouxeram Lévi-Strauss
ao Brasil nos anos 1930, não foi a USP quem trouxe o estruturalismo
para essas plagas, a partir do final dos anos 1960. A antropologia estrutural
custou um bocado a pegar no ambiente paulistano, por razões muito
características, que não cabe adentrar aqui. A exceção
que confirma a regra, para o caso de São Paulo, foi o grande
Bento Prado Jr., que sempre esteve um passo ou dois à frente
de seus congêneres.
A experiência de leitura de "O Cru e o Cozido"
(volume 1 das "Mitológicas"), em particular, foi decisiva
para mim. Mergulhado como me achava, aos vinte e bem poucos anos, na
efervescência cultural da época, a época da tropicália
e da antropofagia (uma teoria política da bricolagem cultural),
dos experimentos radicais da arte conceitual brasileira, da ascese barroca
da poesia concreta, da querela do formalismo versus conteudismo em arte,
do nacional-popular, das raízes, e tendo tomado fervorosamente
o partido tropical-concreto, a leitura daquela série de mitos
picarescos analisados por Lévi-Strauss, pornográficos
às vezes, surrealistas sempre, tropicalistas literalmente, mitos
tratados de modo impavidamente algébrico em "O Cru e o Cozido",
me ofereceu à imaginação esse objeto perfeito:
uma matemática rabelaisiana.
Lévi-Strauss é a síntese, muito gálica,
de Rabelais e Descartes.
FOLHA
- Hoje é possível considerar a antropologia estrutural,
em algum sentido, ultrapassada?
VIVEIROS DE CASTRO - Essa questão faria mais
sentido se aplicada à coleção de verão de
2007 de algum costureiro ou a alguma droga ou ritmo da moda nas discotecas
(ainda se chamam assim?) de Londres, Mikonos ou Recife.
Mas, se é para a respondermos: bem, sim, a antropologia estrutural
está, em alguns sentidos, ultrapassada, como a filosofia de Kant
está em alguns sentidos ultrapassada, ou a poesia de Dante.
Mas, como sabemos, isso não impede que ninguém se possa
chamar filósofo se não leu e meditou profundamente sobre
Kant, nem poeta se não leu nem se maravilhou com Dante.
Em outros sentidos, a antropologia estrutural nem sequer começou
a ser explorada em toda a sua complexidade. O estruturalismo está
muito longe de ter tido todas as suas potencialidades analíticas
esgotadas, e a fase das leituras brutalmente simplificadoras da obra
lévi-straussiana - simplificação dialeticamente
necessária, sem dúvida, para o prodigioso florescimento
de novos temas e problemas na antropologia dos últimos 30 anos
(e para a ressurreição de alguns temas bem velhos; já
ia dizer, ultrapassados) - aproxima-se de seu fim.
Após a recauchutagem do evolucionismo pela psicoantropologia
cognitiva, essa ciência perpetuamente promissora; após
a ressurgência do difusionismo com a sociologia crítica
da "invenção da tradição"; depois
da volta do funcionalismo (mas ele alguma vez foi mesmo embora?) com
a economia política da globalização; bem, talvez
tenha chegado a hora de desesquecer e recomplicar - como dizia
Leach, de "repensar" - o estruturalismo.
FOLHA
- Em "As Idéias de Lévi-Strauss" (ed.
Cultrix), Edmund Leach mostra que a antropologia anglo-americana é
herdeira de Malinowski na ênfase em aspectos como observação
participante, menos generalizações e foco nas diferenças
- mais do que nas semelhanças - entre as culturas.
E por isso tais antropólogos tenderiam a criticar o viés
de Lévi-Strauss, que seria mais comparável ao de Frazer:
erudição monumental, mas pouco trabalho de campo e uma
vontade de elucidar os traços universais da "mente humana",
negligenciando as particularidades culturais. Como vê tais críticas?
VIVEIROS DE CASTRO - Leach era um piadista, um caso
curioso de enfant terrible vitalício da antropologia
britânica. Pois suas críticas a Lévi-Strauss devem
ser lidas tendo-se em mente que Leach foi justamente o principal difusor
do estruturalismo nas terras malinowskianas da antropologia britânica.
(A antropologia norte-americana tem pouco a ver com Malinowski: não
misturemos as estações).
Foi aliás graças ao ensino de Leach que, hoje, se pode
dizer que o verdadeiro espirito do estruturalismo está mais vivo
na antropologia britânica, graças à liderança
intelectual de uma ex-estudante de Leach em Cambridge, a antropóloga
Marilyn Strathern (o maior nome surgido na disciplina desde Lévi-Strauss),
do que na França, onde o pensamento lévi-straussiano foi
submetido, por alguns antropólogos eminentes no plano local,
a uma empresa sistemática de sabotagem intelectual. Quanto a
isso de erudição monumental (não consigo imaginar
essa expressão como significando uma crítica) versus particularidades
culturais -tal coisa não existe.
A distinção entre antropologias francesa e britânica
não se reduz a - nem sequer passa por - um contraste
entre generalizações e busca de semelhanças versus
estudos monográficos particularizantes.
Aliás, nada mais particularizante e minuciosamente etnográfico
que a etnologia francesa de hoje. E Lévi-Strauss nunca se interessou
pelas semelhanças, mas pelas diferenças. Ou melhor, pelos
sistemas formados pelas diferenças entre as diversas culturas
particulares. A oposição entre universal e particular
é uma roubada epistemológica. Isso não existe.
FOLHA
- Outro grande nome da antropologia contemporânea, Clifford Geertz,
teceu críticas duras a "Tristes Trópicos",
dizendo tratar-se de um livro a ser lido sobretudo como ficção,
literatura, mais do que como etnologia. O sr. concorda? Como o sr. avalia
essa obra de Lévi-Strauss?
VIVEIROS DE CASTRO - As críticas de Geertz (aliás,
já morto há algum tempo) não são tão
recentes assim. As primeiras delas datam do começo dos anos 1970,
se não me falha a memória. De qualquer modo, elas são
irrelevantes.
Geertz se distinguiu por criticar logo os dois estilistas máximos,
no sentido literário tanto como conceitual, que a antropologia
jamais conheceu: o britânico Evans-Pritchard e o francês
Lévi-Strauss. Parece coisa de inveja da excelência alheia.
"Tristes Trópicos" não é um
livro de ficção. É um livro que redefiniu as fronteiras
e as funções intelectuais da ficção e da
etnologia. Eu troco a obra inteira de Geertz - que não é
nada má, diga-se de passagem - por um único capítulo
de "Tristes Trópicos".
FOLHA
- Em que medida as fortes denúncias de Lévi-Strauss contra
o etnocentrismo do Ocidente ajudam hoje a pensar os rumos da civilização
globalizada?
VIVEIROS DE CASTRO - As denúncias de Lévi-Strauss
simplesmente anteciparam o que hoje está cada vez mais evidente:
que a espécie entrou em um apertadíssimo beco sem saída.
E que, se alguma esperança há, esta reside em nossa capacidade
de prestar a mais humilde, séria e solícita das atenções
à tradição intelectual dos povos que não
tiveram a pretensão inacreditavelmente estúpida e arrogante
de se colocar como maiores do que o mundo em que vivem.
MITO FORTE
Para Manuela Carneiro da Cunha, antropólogo
está tendo a glória de ser redescoberto em vida, após
ter sido considerado superado em alguns círculos
MANUELA CARNEIRO DA CUNHA
ESPECIAL PARA A FOLHA
No longo prazo, todo pensador célebre pode estar
certo de duas coisas: de morrer e de ser considerado superado. Tem sorte
quando a primeira ocorre antes da segunda".
A boutade é do antropólogo americano Marshall Sahlins.
Mas Lévi-Strauss faz no dia 28 cem anos, tempo suficiente para
um terceiro momento: o de ser tido por superado em alguns círculos,
mas de ser redescoberto ainda em vida.
Pois sua importância renasce quase meio século após
seu apogeu inicial, os anos de ouro do estruturalismo.
O Brasil e os EUA tiveram ambos importância decisiva em sua vida
e sua obra. Sem o programa Rockefeller de resgate de intelectuais ameaçados
na Europa, é muito plausível que Lévi-Strauss não
tivesse sobrevivido à Segunda Guerra Mundial. O Brasil, com efeito,
negou-lhe um visto em 1940.
Sem a Biblioteca Pública de Nova York, sem a Escola Livre de
Altos Estudos, sem a amizade do lingüista Roman Jakobson e dos
surrealistas em Nova York, a obra dele teria sido muito diferente.
Mas, sem os anos brasileiros, sem as expedições aos bororos,
aos cadiuéus, aos nambiquaras, também não teríamos
o Lévi-Strauss que tivemos.
Não só, como veremos, porque foram suas primeiras publicações
sobre os índios brasileiros que o fizeram notar nos EUA e ensejaram
que ele estivesse no rol dos intelectuais a serem "salvos"
-e não só porque são eles que protagonizam "Tristes
Trópicos", escrito quando Lévi-Strauss se julgava
definitivamente excluído do sistema universitário francês.
Por isso "Tristes Trópicos" não é um
livro acadêmico, é um livro de viagem filosófica
e sensorial que se abre com a célebre declaração:
"Odeio as viagens".
É um livro cheio de idéias, de análises e de sugestões,
maravilhosamente bem escrito, que contribuiu para a eleição
do autor, anos mais tarde, à Academia Francesa. E, finalmente,
é um livro em que Lévi-Strauss se abre, pelo menos um
pouco.
Para alguém que foi acusado de ser "cerebral", em "Tristes
Trópicos" ele mostra uma sensibilidade extraordinária
às paisagens.
Posso atestar que, quando em 1985 eu o acompanhei, a seu pedido, numa
viagem-relâmpago aos bororos -que, por motivos diversos, nunca
chegamos a ver-, ele não se frustrou. Ficou feliz em rever um
ninho de joão-de-barro e as nuvens do céu de Mato Grosso.
Dissemos que EUA e Brasil, ambos, foram essenciais na vida e na obra
de Lévi-Strauss. Mas qual foi, reciprocamente, a importância
de Lévi-Strauss nesses dois países?
Nos EUA, com poucas exceções, não se entendeu e
não se procura mais entender Lévi-Strauss. E Lévi-Strauss
no Brasil? É sabido que, no Brasil, o jovem Lévi-Strauss
não foi imediatamente reconhecido, até porque ainda não
tinha escrito nada ou quase nada.
Sua influência repercutiu fortemente aqui nos anos 1960 e 1970,
sobretudo com os estudos das sociedades gês no Brasil Central,
que foram concebidos sob o impacto dos seus artigos sobre o dualismo,
mas também desenhados para tentar refutá-los.
Na Universidade de São Paulo, Ruth Cardoso se interessava especialmente
por Lévi-Strauss; eu mesma, em 1973, procurei mostrar o lugar
da estrutura mítica no agenciamento da história, em um
ensaio sobre a lógica do mito e a lógica da ação.
Hoje, em alguns centros de antropologia no Brasil, o pensamento de Lévi-Strauss
continua vivo e atual, no sentido de que continua a gerar questões
e abordagens que, combinadas a outras influências e fermentadas
pela etnografia, inspiram-se em uma leitura sutil tanto do que ele analisou
explicitamente quanto daquilo que indicou ou deixou entrever.
Por que essa afinidade?
Não é impossível que ele e os povos indígenas
do Brasil tenham sido feitos para se entenderem mutuamente, isto é
-para retomar uma fórmula célebre da abertura de "O
Cru e o Cozido"-, que seu pensamento tenha tomado forma ou se reconhecido
no pensamento indígena tanto quanto este tomou forma e se reconheceu
no seu pensamento.
Creio que é a partir dessa hipótese que Eduardo Viveiros
de Castro tomou a si a tarefa não de retomar Lévi-Strauss
ao pé da letra, mas sim de retomar seu procedimento, levando
em conta o sentido e o alcance das questões levantadas pelo pensamento
indígena.
Assim como fez Marilyn Strathern na Nova Guiné, ele mostrou a
importância, para o antropólogo, de se deixar guiar pelo
pensamento do outro.
Foi ainda Eduardo Viveiros de Castro quem observou recentemente que,
se foi possível descrever "As Estruturas Elementares do
Parentesco" como obra pré-estruturalista, as "Mitológicas",
por sua vez, poderiam ser lidas como pós-estruturalistas.
De fato, ele discerniu, nas "Mitológicas", não
uma preponderância de silogismos totêmicos, isto é,
da lógica classificatória proposta desde "O Totemismo
Hoje" (1962), e sim um procedimento que pode ser dito pós-estruturalista,
feito de rizomas e de percursos imbricados.
Em suma, um esboço do que fizeram mais tarde Deleuze e Guattari
-mostrando assim que, contrariamente aos que simploriamente vêem
no pós-estruturalismo um antiestruturalismo, trata-se, ao contrário,
de discernir as entrelinhas, as análises concretas e os subtextos
(além dos próprios textos) de Lévi-Strauss.
Mauro Almeida, da Unicamp, também renovou a leitura de Lévi-Strauss
de forma original e contribuiu para uma leitura adequada do alcance
da inspiração matemática e cibernética em
Lévi-Strauss, salientando a sua noção de entropia.
Um dos aspectos mais misteriosos dos escritos de Lévi-Strauss
é a célebre e desconcertante "fórmula canônica"
do mito, mencionada em 1955 e, quando parecia fadada ao esquecimento,
ressurgida subitamente em "A Oleira Ciumenta" e "História
de Lince".
Almeida deu à fórmula canônica uma interpretação
original, que a conecta à concepção de dialética
que Lévi-Strauss, em 1962, opunha à de Jean-Paul Sartre:
uma forma e uma fórmula de superação, de abdução,
de "dedução transcendental", diria o antropólogo,
que permite fazer o salto sobre o vazio, ligando os silogismos que se
esgotam a novos domínios ao mesmo tempo semânticos e geográficos.
Por esses poucos exemplos que nem de longe esgotam as leituras que aqui
se fazem, percebe-se que os brasileiros, à semelhança
do que os árabes fizeram com Aristóteles na Idade Média,
conservaram viva a obra de Lévi-Strauss.
Souberam lê-la de modo original, sutil e fecundo. Sutil porque
reconheceram no próprio autor as passagens e aspectos em que
ele complica e subverte aquilo que deu ensejo a leituras simplistas.
Fecundo porque partiram não só da letra, mas também
do espírito que animou a sua obra.
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MANUELA CARNEIRO DA CUNHA é antropóloga
e professora na Universidade de Chicago. Uma versão deste texto
foi publicada em "Lévi-Strauss - Leituras Brasileiras"
(ed. UFMG).
AS OBRAS CAPITAIS
As Estruturas Elementares do Parentesco (1949)
- Marco fundador da antropologia estrutural, o livro foi escrito durante
o exílio nos EUA e sob a direta influência de seus contatos
intelectuais e amizade com o lingüista Roman Jakobson.
O conceito que dá título ao livro refere-se aos sistemas
de parentesco que prescrevem o casamento com um certo tipo de parentes,
ou seja, que classificam os parentes em cônjuges possíveis
e proibidos.
A obra é um clássico também por ter substituído,
como eixo de análise etnológica, o fato natural da consangüinidade
pelo fato cultural da aliança.
Lévi-Strauss, em diálogo com Sigmund Freud, repensa o
problema universal da proibição do incesto -fenômeno
já não mais interpretado pela óptica da proibição
moral, e sim como fator lógico de constituição
da sociedade, ao permitir a "transação" de mulheres
entre os grupos exogâmicos.
Introdução à obra de Marcel
Mauss (1950) - Este ensaio, encomendado pelo sociólogo
Georges Gurvitch -mais tarde, bastante hostil às teses de Lévi-Strauss-,
vai bem além de sua finalidade imediata, uma apresentação
protocolar da coletânea "Sociologia e Antropologia",
de Marcel Mauss (ed. Cosac Naify), um dos mais importantes cientistas
sociais do século 20.
Lévi-Strauss comenta o vanguardismo de Mauss em aspectos como
a correlação entre etnologia e psicanálise, mas
também, com ousadia, designa o sobrinho de Durkheim como um Moisés
que conduziu o povo à Terra Prometida sem ter tido a oportunidade
de entrar nela.
Com essa metáfora bíblica, quis dizer que Mauss, com a
teoria da reciprocidade desenvolvida em "O Ensaio sobre a Dádiva"
(1925), intuiu descobertas a que a antropologia só pôde
chegar mais tarde, com o próprio Lévi-Strauss, graças
aos aportes da lingüística estrutural.
Exemplo disso seria o conceito lévi-straussiano de "pensamento
simbólico" como lógica inconsciente do espírito
humano e matriz universal de possibilidades combinatórias das
quais cada sistema cultural faz usos peculiares.
Tristes Trópicos (1955) - Considerada
por muitos sua obra-prima, esta autobiografia intelectual relata, entre
outros episódios, a vinda de Lévi-Strauss ao Brasil nos
anos 1930, juntamente com outros professores franceses, para trabalhar
na fundação da Faculdade de Filosofia, Ciências
e Letras da Universidade de São Paulo.
Ele comenta o sentido de sua vocação de antropólogo,
no contexto de suas decepções com a filosofia "metafísica"
dominante nos meios universitários franceses da época.
Menciona a geologia, o marxismo e a psicanálise como as "três
mestras" inspiradoras de sua obra, pela percepção
que compartilham de que "compreender consiste em reduzir um tipo
de realidade a outro". E tece observações etnográficas
que atestam como seu contato com povos indígenas brasileiros
foi decisivo na gestação de sua futura teoria estruturalista.
O livro é marcante também pelas digressões sombrias
a respeito das perspectivas da civilização mundial, marcada,
segundo ele, pelo inchaço demográfico e pela homogeneização
cultural.
Antropologia Estrutural (1958) - Coletânea
com alguns dos principais escritos de Lévi-Strauss no período
entre 1944 e 1956.
São exemplos o programático "A Análise Estrutural
em Lingüística e em Antropologia", além de "O
Feiticeiro e Sua Magia" e "A Eficácia Simbólica"
- textos nos quais apresenta surpreendentes paralelos estruturais
entre as figuras do xamã e do psicanalista.
Muitas vezes acusado pelos marxistas de negar a dimensão histórica,
dada sua ênfase tanto na sincronia dos fenômenos sociais
quanto nas constantes universais da humanidade, o autor francês
irá abordar tal problema em "História e Etnologia".
Já em "A Estrutura dos Mitos", o antropólogo
relê o mito de Édipo - mencionando a interpretação
freudiana como a mais recente "versão" mítica
do relato- e lança as bases teóricas e metodológicas
do que, após o parentesco, veio a ser o outro grande campo de
aplicação do estruturalismo etnológico: a mitologia.
O Pensamento Selvagem (1962) - Lançado
no mesmo ano que "O Totemismo Hoje" -que lhe serve, no dizer
do autor, como uma "introdução histórica e
crítica", ao analisar uma categoria então fundamental
na explicação dos povos ditos primitivos-, é uma
espécie de prelúdio às "Mitológicas".
Descartando preconceitos evolucionistas, tais como a noção
de "pensamento pré-lógico" (de Lévy-Bruhl),
Lévi-Strauss diz ser o pensamento mítico uma "forma
intelectual de bricolagem", que recupera num processo contínuo
os resíduos de eventos empíricos, e uma "ciência
do concreto", tão estruturada, lógica e rigorosa
quanto o pensamento científico moderno, e igualmente capaz de
formular analogias e generalizações.
Dedicado à memória do filósofo Maurice Merleau-Ponty,
se encerra porém com uma célebre ofensiva contra outro
expoente do pensamento fenomenológico-existencial: Jean-Paul
Sartre.
Na visão dialética da história na obra de Sartre,
Lévi-Strauss vê uma outra forma de projeção
eurocêntrica e um valioso documento etnográfico acerca
da "mitologia de nosso tempo".
Mitológicas (1964-71) - Com
base na análise de cerca de 800 mitos ameríndios e inspirado
nos moldes da música -que considera semelhantes aos do mito-,
essa colossal tetralogia é composta por "O Cru e o Cozido",
"Do Mel às Cinzas", "A Origem dos Modos à
Mesa" e "O Homem Nu".
Seu objetivo é mostrar "de que modo categorias empíricas,
como, por exemplo, as de cru e cozido, de fresco e de podre, de molhado
e de queimado etc., definíveis com precisão pela mera
observação etnográfica, (...) podem servir como
ferramentas conceituais para isolar noções abstratas e
encadeá-las em proposições".
Desse modo, seria possível chegar a níveis cada vez mais
amplos de generalização e, em última instância,
desbravar os fundamentos universais do espírito humano. O meio
para isso, segundo o antropólogo, seria o rastreamento das múltiplas
recombinações, permutações e oposições
-e não, como na teoria simbolista, significados ocultos de símbolos
abstraídos do contexto - por meio das quais os "mitos se
pensam entre si".
Antropologia Estrutural 2 (1973) -
Nesta nova coletânea, tem destaque o clássico "Raça
e História" (1952) - libelo, escrito a pedido da Unesco,
contra o racismo, no qual o antropólogo sintetiza sua visão
da história mundial e sua defesa da diversidade cultural.
Cabe mencionar também "A Gesta de Asdiwal", estudo
de um mito indígena da costa canadense do Pacífico; "O
Campo da Antropologia", aula inaugural do autor no Collège
de France, em 1960; e "Jean-Jacques Rousseau, fundador das Ciências
do Homem" (1962).
Neste último, o filósofo genebrino é evocado como
precursor da etnologia por ter formulado o preceito de que, se para
estudar "os homens" é preciso olhar perto de si, para
estudar "o homem" é preciso aprender a dirigir para
longe o olhar e descobrir semelhanças depois de observar as diferenças.
Dez anos mais tarde, Lévi-Strauss lançaria um novo conjunto
de artigos que, segundo suas próprias palavras, poderia ser considerado
o terceiro volume da "Antropologia Estrutural", porém
batizado de "O Olhar Distanciado".
A Via das Máscaras (1975) -Tomando
como referência a arte dos índios da costa noroeste dos
EUA, Lévi-Strauss retoma questões fundamentais da estética
e da história da arte.
Ele argumenta que o grafismo, a plástica e a cor podem ser entendidos
como instrumentos de que um povo, escola doutrinal ou período
se utilizam para se distinguir dos seus vizinhos, rivais ou predecessores.
Minhas Palavras (1984) - Lições
ministradas por Claude Lévi-Strauss entre 1959 e 1982 no Collège
de France e na Escola de Altos Estudos em Ciências Sociais. Foi
nesta escola onde, disse, "minhas idéias sobre a mitologia
ganharam forma", o que é testemunhado em especial pelo curso,
no ano letivo de 1951-52, dedicado à "Visita das Almas",
cujo resumo consta desta coletânea.
Por meio das aulas e conferências aqui publicadas -que versam
também sobre parentesco e organização social, entre
outros temas-, o leitor pode entrar em contato, portanto, com os movimentos
da reflexão lévi-straussiana ao longo do tempo e também
com a gênese e esboço de algumas das principais obras do
autor -como "O Pensamento Selvagem" e "Mitológicas".
A Oleira Ciumenta (1985) -Nesta nova
incursão pelo vasto território dos mitos ameríndios,
Lévi-Strauss analisa, em suas analogias nos povos mais diversos,
a figura da ceramista (oleira) e as relações desse ofício
com o sentimento do ciúme.
No capítulo final, ""Totem e Tabu" Versão
Jivaro", o antropólogo francês retoma uma vez mais
o diálogo do estruturalismo com a psicanálise. Ele combate,
em Freud, a suposta afinidade descoberta entre crianças, neuróticos
e primitivos, assim como o monopólio dado ao "código
sexual" de decifração dos símbolos míticos
e oníricos.
De Perto e de Longe (1988) - Esses
diálogos com o jornalista Didier Eribon, juntamente com as entrevistas
a Georges Charbonnier, em 1961, estão entre as mais acessíveis
introduções a toda a complexidade de um dos maiores antropólogos
de todos os tempos.
Lévi-Strauss comenta seu percurso, suas idéias e obras,
confessa que gostaria de ter sido autor dramático e constrói
um auto-retrato muito revelador.
Por exemplo, em passagens como a que se identifica subjetivamente com
o "primitivismo" que lhe fornece boa parte de seus objetos
de estudo: "Tenho a inteligência neolítica; não
sou alguém que capitaliza, que faz frutificar seu conhecimento;
sou antes alguém que se desloca a uma fronteira sempre instável".
História de Lince (1991) - Num
esforço de "síntese de reflexões dispersas
ao longo dos anos", o autor investiga as fontes filosóficas
e éticas do dualismo ameríndio.
Estuda como as lendas da América resistem a fazer com que uma
situação inicialmente dual seja reduzida a uma identidade
perfeita, sustentando, antes, um dualismo dinâmico e em permanente
desequilíbrio.
Nisso o antropólogo desvela uma atitude de "abertura ao
outro" que pautou os nativos quando dos primeiros contatos com
o branco colonizador, e que é uma conduta oposta à de
nossa sociedade -voltada a reduzir o diferente a uma imagem especular
de si mesma.
Olhar, Escutar, Ler (1993) - Num
dos livros em que mais diretamente se dedica a questões relativas
à arte -que, não obstante, sempre teve grande importância
em suas investigações etnológicas-, Lévi-Strauss
evoca, como matéria-prima de análise, algumas de suas
grandes experiências estéticas pessoais -do romance de
Proust à música de Rameau e Wagner, passando pela pintura
de Poussin.
Reflete sobre um soneto de Rimbaud à luz dos modernos estudos
de poética de Roman Jakobson, além de investigar as variações
e a possível estrutura comum aos três procedimentos estéticos
básicos -olhar, escutar, ler.
Saudades do Brasil (1994) -Lévi-Strauss
dizia ser o escopo da sua antropologia um "super-racionalismo"
capaz de integrar os níveis do sensível e do inteligível.
Neste álbum fotográfico, que remonta às raízes
de sua aventura antropológica, ele dá prova da extrema
sensibilidade com que vivenciou e registrou as experiências em
terras brasileiras durante os anos 1930.
Seja pelas imagens de uma São Paulo a caminho de se converter
em metrópole industrial e financeira, seja pelas cenas da vida
cotidiana de tribos do Centro-Oeste, o livro é testemunho precioso
e elegíaco de uma época (pessoal e coletiva) soterrada
pelo tempo e pelo processo histórico hegemônico. Em 1995,
o autor lançaria um segundo livro do gênero, "Saudades
de São Paulo".
(CAIO LIUDVIK)
O BRASIL POR ACIDENTE
Vinda ao país para lecionar na USP, nos
anos 1930, foi uma casualidade que redefiniu os rumos da cultura nacional
BEATRIZ PERRONE-MOISÉS
ESPECIAL PARA A FOLHA
Foi por acaso que Lévi-Strauss veio ao Brasil.
Em 1934, depois de estudar direito e filosofia, já tinha descoberto
a vocação para a etnologia. Tudo levava o jovem Lévi-Strauss
para fora do Velho Mundo, mas nada o trazia obrigatoriamente ao Brasil.
Sua iniciação como etnólogo poderia ter sido realizada
em outro lugar: "Se me tivessem proposto a Nova Caledônia
[na Oceania] ou a África, eu teria aceitado", diria ele
mais tarde. Mas foi aqui que ocorreu.
"Minha carreira foi decidida num domingo do outono de 1934, às
9h, num telefonema", conta ele em "Tristes Trópicos",
o livro que o tornou conhecido do grande público como escritor.
Livro inclassificável, espécie de microcosmo de toda a
obra. O tal telefonema era um convite para vir dar aulas na recém-fundada
Universidade de São Paulo, onde poderia, disseram-lhe, fazer
pesquisa com os índios nos arrabaldes da cidade.
Os índios estavam bem mais longe, mas o trabalho de campo entre
eles, indispensável para obter suas "credenciais de etnólogo",
seria realizado aqui. Lévi-Strauss descreve o Brasil, sobretudo
em "Tristes Trópicos" (mas também na introdução
a "Saudades do Brasil", de 1994), com cheiro, ruído,
tato, paladar, audição e visão, operando constantemente
com códigos sensoriais, como que prefigurando "O Pensamento
Selvagem" (1962) e os mitos desdobrados nas "Mitológicas"
(1964-71).
Também descreve a natureza, homenageando paisagens como a do
litoral entre Santos e o Rio de Janeiro, a que chama de "trópicos
de sonho".
Além disso, ele lembra cidades. O Rio de Janeiro, cidade "mordida"
até o osso pela baía de Guanabara, em que tudo parece
"démodé". Ou Goiás Velho, um conjunto
de "fachadas degradadas" tomadas por cipós, bananeiras
e palmeiras.
E Goiânia, "uma planície interminável, misto
de terreno baldio e campo de batalha, espetado com postes elétricos
e estacas de medição". A São Paulo da década
de 1930 lhe parecia ser um exemplo típico das cidades americanas,
de ciclo curto, sempre a "meio caminho entre o canteiro de obras
e a ruína". Uma cidade que, "de modo geral, [...] tinha
os tons fortes e arbitrários que caracterizam as más construções".
Apesar disso, aquela São Paulo da década de 1930 não
lhe parecia feia ao ser lembrada mais tarde, apenas selvagem, "como
todas as cidades americanas", fez questão de notar. Esse
Brasil não tem, contudo, lugar de destaque em seu pensamento.
Ocupa, em sua obra, um lugar comparável ao do Sudeste Asiático,
da América do Norte ou até da própria Europa.
Dois trópicos
Pertence a um conjunto de lugares que fazem parte da trajetória
de Lévi-Strauss, que ele compara e conecta uns aos outros, no
que ele mesmo chama de seu "traveling mental".
Os "trópicos desocupados" no Brasil se opõem
aos "trópicos superpovoados" na Índia. O Rio,
à primeira vista, lembra as galerias de Milão e Amsterdã
ou a estação Saint-Lazare em Paris, mas ao ar livre. E
também o faz pensar em Nice ou em Biarritz no século 19,
assim como Calcutá. Mas o Rio é também o contrário
de Chittagong [em Bangladesh].
São Paulo, assim como Chicago e Nova York, surpreende o europeu
por parecer precocemente devastada pelo tempo. Porto Esperança
figura em sua memória ao lado de Fire Island, no Estado de Nova
York, por sua vez espécie de Veneza invertida.
Pelos lugares do mundo, Lévi-Strauss percorre um grupo de transformação
conectado por oposições, desdobramentos, inversões,
duplicações, como os que vai seguindo entre os mitos ameríndios
nas "Mitológicas", grupo em que esse Brasil não
é mais do que o ponto de partida de uma viagem que poderia ter
começado em qualquer outro lugar.
É outro o Brasil que marca a vida e a obra de Lévi-Strauss.
O Brasil que faz dele um americanista e inflete sua produção
intelectual é aquele em que vivem nambiquaras, bororos, cadiuéus,
tupi-cavaíbas, tupi-mondés... o dos índios.
O que foi decidido naquele imprevisível telefonema levaria Lévi-Strauss
a ser um americanista com uma entrada "brasileira", ou um
europeu que encontra a América em solo do Brasil.
Qualquer lugar
A trajetória de Lévi-Strauss poderia ter começado
em qualquer lugar, contanto que fosse na América. Pois os ameríndios
não são meros objetos de sua reflexão, são
co-autores de seu pensamento.
O encontro entre Lévi-Strauss e o Novo Mundo é tão
importante que especialistas têm apontado uma "indianização"
de seu imaginário científico e uma inflexão ameríndia
em sua teoria do social, tributária de Marcel Mauss tanto quanto
dos nambiquaras ou dos bororos.
"Tinha ido para o Brasil porque queria me tornar etnólogo",
disse ele certa vez. Lévi-Strauss tornou-se etnólogo entre
os brasis -como chamavam aos índios ainda os românticos-
e aprofundou sua iniciação mergulhando na leitura de obras
dedicadas aos ameríndios, nas bibliotecas de Nova York.
Tendo inaugurado um diálogo capaz de pôr nossa cultura
no caminho de um novo pensamento, como notou Pierre Clastres, o pensamento
de Lévi-Strauss, que é também pensamento ameríndio,
não cessa de indicar novos caminhos, gerando novas perguntas
e outras idéias.
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BEATRIZ PERRONE-MOISÉS é professora no
departamento de antropologia da USP.
TRÓPICOS NÃO TÃO TRISTES
Apesar de sua importância decisiva para o
futuro da disciplina, antropólogo teve contribuição
ínfima para os debates que ocorriam no Brasil, nos três
anos em que permaneceu no país
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Em "Tristes "Trópicos",
a má vontade para com o Brasil e os brasileiros é incontornável
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WALNICE NOGUEIRA GALVÃO
ESPECIAL PARA A FOLHA
Não foi "Tristes Trópicos" o
livro que caiu como uma bomba no meio estudantil, que até então
jurava por Sartre. Foi "O Pensamento Selvagem": tornou-se
ponto de honra sabê-lo de cor. A essa altura, Bento Prado Jr.
parafraseou um ditado malandro, que ficou assim: "Boy que é
boy não lê Sartre, lê Lévi-Strauss".
Eureca: esse foi o livro de base, ao equiparar o conhecimento indígena
às mais altas reflexões da civilização ocidental.
Não é pequena a proeza, e reconhecemos em quem o escreveu
um herói civilizador.
Depois, adviria o monumento que é a seqüência das
quatro "Mitológicas". Que nos remeteria para trás,
para "As Estruturas Elementares do Parentesco", em que o antropólogo
ajusta as contas com a tradição das ciências sociais
francesas, e para a antropologia estrutural.
Mas o livro inaugural, por aqui, foi mesmo aquele.
Por tudo isso, os paradoxos de nossa conjuntura mostram-se -como diria
Lévi-Strauss, louvando-se nos mitos- "bons à penser".
Pensar, por exemplo, que ele foi um dos fundadores de nossa Faculdade
de Filosofia, criada para ser a cabeça teórica da Universidade
de São Paulo.
E isso aos 27 anos, antes que escrevesse qualquer livro. Traz à
lembrança o jovem Foucault, que também foi por muitos
anos professor nessa escola, dando-nos o privilégio de ministrar
o curso de "As Palavras e as Coisas", ainda não escrito.
Contribuição ínfima
Ante o deslumbramento de uma das obras mais influentes
do século passado, fica difícil lembrar quão pouco
Lévi-Strauss se demorou por aqui (apenas os três anos do
contrato) e como foi ínfima a contribuição que
deu naquele momento. Não que fosse esse o destino fatal dos europeus
fundadores.
Seu sucessor na cadeira de sociologia, Roger Bastide [1898-1974], permaneceria
na faculdade por 16 anos, participando intensamente da vida cultural,
escrevendo semanalmente para jornais e revistas, discutindo nossa literatura,
nossas artes e nosso pensamento. Além de se tornar o iniciador
da sociologia da religião no país, com "As Religiões
Africanas no Brasil" [ed. Pioneira], mais tarde deflagraria também
os estudos sobre o negro na atualidade, com "O Negro na Sociedade
de Classes", por iniciativa da Unesco e com assessoria de Florestan
Fernandes, seu aluno e assistente. E se dedicaria à formação
de levas de estudantes.
Férias na França
Lévi-Strauss seria bem menos participativo.
Durante o ano letivo dava suas aulas e, nas férias,
regressava à pátria ou se embrenhava no sertão,
para investigar os índios. Jamais precisou quantas expedições
fez e quanto tempo ficou nas aldeias, no total.
Mesmo porque foi à França em algumas das férias,
contando em "Tristes Trópicos" que já era reconhecido
pelos empregados dos navios que faziam a travessia.
Nas entrevistas, passa por alto esse ponto delicado; e, mesmo em sua
biografia oficial da Academia Francesa de Letras, só se fala
em "várias expedições", entre os anos
de 1935 e 1938. Talvez tenha sido sensível ao fato de que construiu
uma obra notável, e enorme, em cima de uma experiência
de terreno tão reduzida.
"Tristes Trópicos" muito deve à teoria da "tristeza
tropical", vigente por aqui à época de sua estada,
exposta no influente e então reeditado "Retrato do Brasil"
[Companhia das Letras], de Paulo Prado -mas que para nós já
era mais do que superada. De toda a obra de Lévi-Strauss, seu
destino foi (hélas!) tornar-se o livro mais lido, porque o mais
fácil.
Algo de semelhante se passa com "Raízes do Brasil"
[Companhia das Letras], o menos complexo dos livros de Sérgio
Buarque de Holanda [1902-82].
No livro francês, a má vontade para com o Brasil e os brasileiros
é incontornável, e ele zomba de tudo que lhe passa pela
frente, inclusive do nível de colegas e estudantes, de nosso
subdesenvolvimento geral.
É dele o diagnóstico de que nosso país saltou da
barbárie à era da tecnologia sem passar pela civilização.
O pior é que no Brasil há muito intelectual que aceita
a avaliação negativa, vestindo a carapuça do colonizado
que dá autoridade ao colonizador para denegri-lo.
Destaca-se pela originalidade ao afirmar que a baía de Guanabara
é feia, opinião bizarra, comparando-a a uma "boca
banguela".
Quando a má vontade veio a se dissipar, Lévi-Strauss nem
a reconheceu nem quis mais falar disso. E pôde, finalmente, ao
redor dos 90 anos, publicar belos livros de fotos com prefácios
e títulos afetuosos, como "Saudades do Brasil" (1994)
e "Saudades de São Paulo" (1996).
Cordialidade
É verdade que sempre recebeu com calor em seu escritório
qualquer brasileiro que o procurasse, mesmo o mais insignificante dos
estudantes sem nenhum título. A enorme influência que acabaria
por ter em nosso país só se daria décadas mais
tarde e, assim mesmo, mediada pela moda do estruturalismo.
Autor inédito, foi aqui que hauriu a matéria-prima de
sua obra, no contato, apesar de limitado e esporádico, com os
índios. Depois, pesquisaria longamente nossa tradição
de estudos de etnologia e antropologia, que estão constantemente
citados em seus livros.
O ponto central, a meu ver, é que o contato com o Brasil forneceu
a "epifania epistemológica" que iria deflagrar-lhe
a imaginação antropológica, definindo o rumo que
sua carreira científica tomaria.
Os equívocos dessa conflituosa relação ainda têm
reflexos contemporâneos. No intuito de contribuir para o Ano do
Brasil na França, "Les Temps Modernes", a revista que
Sartre fundou, publicaria (no nº 628) quatro cartas de Lévi-Strauss
a Mário de Andrade.
Uma apresentação de dez linhas comete vários erros.
O destinatário, dizem lá, "esteve em relação"
com o remetente "enquanto diretor cultural da municipalidade de
São Paulo". Ora, novos trabalhos têm mostrado que
o Departamento Cultural, Mário à frente, co-financiou
as expedições do antropólogo.
E o tom das cartas mostra claramente que se trata de um relatório
de progresso, de uma satisfação dada ao financiador.
Além disso, Dina Lévi-Strauss, a cônjuge, era assistente
de Mário nesse mesmo departamento. Mário criaria uma subdivisão
de etnologia, que chegou a desenvolver alguns cursos dados pela assistente.
Como se não bastasse, algumas palavras são traduzidas
como se se tratasse da língua do planeta Marte, esquecendo que
a França é, do mundo todo, o país que mais dispõe
de departamentos de estudos luso-brasileiros, 33 ao todo. Embora a caligrafia
do antropólogo seja nítida e os manuscritos se encontrem
em bom estado, o endereço, à rua Cincinato Braga, é
transcrito como "Luicinato Boraga".
O nome de um intelectual brasileiro bem conhecido como Sérgio
Milliet torna-se Serge Miller. E a Rádio Patrulha vem a ser Radio
Pakulka.
Como se vê, a malícia dos deuses continua a conspirar para
envenenar esses laços.
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WALNICE NOGUEIRA GALVÃO é professora
de teoria literária na USP, autora de "Guimarães
Rosa" (Publifolha).
ENTENDA O QUE É ANTROPOLOGIA ESTRUTURAL
DA REDAÇÃO DA FOLHA DE SÃO PAULO
A antropologia estrutural, criada por Claude Lévi-Strauss,
foi cunhada em seu livro clássico "Antropologia Estrutural".
Publicado originalmente em 1958, ele reúne artigos que definiram
o projeto científico do pensador francês. Inspirada pela
obra do lingüista suíço Ferdinand de Saussure (1857-1913),
a antropologia estrutural concentra-se no modo como elementos de um
sistema se combinam - e não em seu valor intrínseco.
"Diferença" e "relação" são
conceitos essenciais. A combinação desses elementos dá
margem a oposições e contradições que servem
para dar ao reino social seu dinamismo. A antropologia estrutural considera
a cultura um sistema de comunicação por símbolos,
que deveria ser analisada da mesma maneira como se analisam, por exemplo,
romances.
OBRAS DE LÉVI-STRAUSS NO BRASIL
As Estruturas Elementares do Parentesco (Vozes, 2003)
Antropologia Estrutural 1 (Cosac Naify, 2008)
Antropologia Estrutural 2 (Tempo Brasileiro, 1993)
O Pensamento Selvagem (Papirus, 2005)
Sociologia e Antropologia, de Marcel Mauss (introdução
de Claude Lévi-Strauss, Cosac Naify, 2003)
O Cru e o Cozido - Mitológicas 1 (Cosac Naify,
2004)
Do Mel às Cinzas - Mitológicas 2 (Cosac
Naify, 2005)
A Origem dos Modos à Mesa - Mitológicas
3 (Cosac Naify, 2006)
O Homem Nu - Mitológicas 4 (Cosac Naify, 2009)
De Perto e de Longe (entrevista a Didier Eribon) (Cosac
Naify, 2005)
História de Lince (Companhia das Letras, 1993,
esgotado)
Saudades do Brasil (Companhia das Letras, 1994, esgotado)
Saudades de São Paulo (Companhia das Letras,
1996, esgotado)
Tristes Trópicos (Companhia das Letras, 1996)
Olhar, Escutar, Ler (Companhia das Letras, 1997, esgotado)
Minhas Palavras (Brasiliense, 1991, esgotado)
+ CRONOLOGIA
28.nov.1908 - Claude Lévi-Strauss nasce em Bruxelas,
na Bélgica. É filho de pais franceses: Raymond Lévi-Strauss
e Emma Lévy. Em 1909, a família, de origem judaica, muda-se
para Paris
1927 - Inscreve-se em direito e faz curso de filosofia
na Sorbonne
1932 - Casa-se com Dina Dreyfus
1933 - É nomeado para o liceu de Laon
1935 - Em fevereiro, embarca para o Brasil. Desembarca
em Santos e passa a viver em São Paulo. Reside na rua Cincinato
Braga, 395, entre a rua Carlos Sampaio e a avenida Brigadeiro Luís
Antônio. Assume a cadeira de sociologia na Universidade de São
Paulo. Tem como colegas de trabalho o geógrafo Pierre Monbeig
(1908-1987), o historiador Fernand Braudel (1902-1985) e o filósofo
Jean Maugüé (1904-1985). Junto com a mulher, também
etnóloga, faz a primeira viagem a Mato Grosso, onde inicia os
estudos sobre os índios cadiuéus, bororos e nambiquaras
1938 - Desiste da renovação do contrato
na Universidade de São Paulo para consagrar-se a uma longa expedição
pelo interior do Brasil
1939 - Volta à França e instala, no Museu
do Homem, as coleções etnográficas recolhidas nos
anos em que esteve no Brasil. Separa-se de Dina
1941 - Com o avanço da Segunda Guerra, decide
partir para os EUA. Passa a viver em Nova York, onde ensina na New School
for Social Research
1945 - Casa-se com Rose-Marie Ullmo. Deste casamento
nasce Laurent. Após a guerra, torna-se conselheiro cultural da
Embaixada francesa nos EUA
1947 - Retorna à França
1948 - Defende na Sorbonne a tese "As Estruturas
Elementares do Parentesco", que é publicada em 1949
1950 - Com o apoio da Unesco, viaja à Índia
e ao Paquistão Oriental (atual Bangladesh). Assume a função
de diretor de estudos na Escola Prática de Altos Estudos, na
seção de ciências religiosas
1954 - Após o segundo divórcio, casa-se
com Monique Roman
1955 - Publica "Tristes Trópicos",
autobiografia intelectual, narrativa de viagem ao Brasil e ensaio científico
sobre os indígenas cadiuéus, bororos, nambiquaras e tupi-cavaíbas.
A obra torna-se um clássico da etnologia e dos estudos sobre
o país
1957 - Nascimento do filho Matthieu
1958 - Publica o volume 1 de "Antropologia Estrutural",
dedicado à memória do francês Émile Durkheim
(1858-1917), um dos fundadores das ciências sociais
1959 - É eleito para a cadeira de antropologia
social no Collège de France, fundado em 1530 e uma das mais prestigiosas
instituições de ensino da França
1960 - Funda, no Collège de France, o Laboratório
de Antropologia Social
1961 - Cria, com colaboradores, a "L'Homme - Revue
Française d'Anthropologie" (O Homem - Revista Francesa de
Antropologia)
1962 - Publica "O Totemismo Hoje" e "O
Pensamento Selvagem" -este último dedicado à memória
do filósofo francês Maurice Merleau-Ponty (1908-61)
1964-71 - Lévi-Strauss publica os quatro volumes
das "Mitológicas"
1968 - Na França, é condecorado com a
Medalha de Ouro do Centro Nacional de Pesquisas Sociais
1973 - Eleito para a Academia Francesa. Publica "Antropologia
Estrutural 2", obra dedicada aos membros do Laboratório
de Antropologia Social
1974 - Numa quinta-feira, 27 de junho, toma posse na
Academia Francesa
1982 - Aposenta-se do Collège de France
1985 - Volta ao Brasil após 46 anos
1989 - O Museu do Homem organiza a exposição
"As Américas de Claude Lévi-Strauss"
1994 - Publica "Saudades do Brasil", que reúne
fotografias do interior do país que fez entre 1935 e 1938
1996 - Publica "Saudades de São Paulo",
com fotografias de São Paulo feitas entre 1935 e 1937. "Se,
no título de um livro recente, apliquei ao Brasil (e a São
Paulo) o termo "saudade", não foi por lamento de não
mais estar lá. De nada me serviria lamentar o que após
tantos anos não reencontraria. Eu evocava antes aquele aperto
no coração que sentimos quando, ao relembrar ou rever
certos lugares, somos penetrados pela evidência de que não
há nada no mundo de permanente nem de estável em que possamos
nos apoiar" ("Saudades de São Paulo", tradução
de Paulo Neves, Cia. das Letras, 1996)
28.nov.2008 - Claude Lévi-Strauss completará
cem anos. "É assim que me identifico, viajante, arqueólogo
do espaço, procurando em vão reconstituir o exotismo com
o auxílio de fragmentos e de destroços" ("Tristes
Trópicos", trad. Rosa Freire d'Aguiar, Cia. das Letras)
RETRATO DE UM HOMEM INVISÍVEL
"Sem forças" e encerrado em seu
apartamento em um bairro nobre de Paris, Lévi-Strauss não
deverá participar das comemorações de seu centenário;
amigos falam sobre a convivência com o antropólogo
GABRIELA LONGMAN
COLABORAÇÃO PARA A FOLHA, EM PARIS
Mais importante intelectual vivo, Lévi-Strauss
completa cem anos, no próximo dia 28, recolhido.
Tido como o pai do estruturalismo e grande responsável pela afirmação
da antropologia no campo das ciências humanas, ele assistiu -ou
participou- às infinitas transformações políticas,
sociais e comportamentais do século 20.
Depois de atravessar duas guerras mundiais, um Maio de 68 e todos os
rebuliços que se seguiram, a Paris atual tem muito pouco em comum
com aquela em que ele passou a infância e a juventude.
Grande área residencial da burguesia parisiense -comparável,
talvez, ao bairro de Higienópolis, em São Paulo-, o 16º
arrondissement foi desde sempre a casa de Lévi-Strauss.
É ali que mora, há mais de 50 anos, num quinto andar do
número 2 da rua dos Marroniers. A poucas quadras, fica a rua
Passy, endereço onde viveu por mais de 20 anos com os pais, num
apartamento de onde se avistava ainda o campo e suas fazendas.
Hoje, os prédios de La Défense -principal centro financeiro
da França, localizado no extremo oeste- transformaram a paisagem.
A arquitetura de arranha-céu que Lévi-Strauss vira em
São Paulo nos anos 1930 e em Nova York nos anos 1940 ganharia
um canto específico para se desenvolver, para que o restante
de Paris mantivesse preservada a unidade estética dos prédios
baixos, telhados com chaminés, terraços de ferro e os
bulevares haussmanianos que deixam transparecer os séculos 18
e 19.
Se a arquitetura se manteve em certa medida uniforme, para a alegria
dos turistas, a população mudou.
Milhões de chineses, marroquinos, brasileiros, senegaleses, malianos
são agora tão parisienses quanto aquele professor de etnologia
que trabalhava como subdiretor do Museu do Homem e visitava os mercados
de pulgas em busca de peças exóticas para sua coleção.
O kebab é tão popular quanto o crepe. O pluriculturalismo
-termo em grande medida lévi-straussiano- é a marca principal
desta nova cidade e de seus subúrbios, com todos os problemas
de imigração e discriminação que gravitam
em torno desse novo quadro.
A Paris de Godard e Truffaut é substituída pela de Laurent
Cantet, com "Entre Paredes".
"Sem forças"
Mas esta cidade, mais lévi-straussiana do que nunca, tornou-se
distante para Lévi-Strauss, que praticamente não sai mais
de casa.
No dia 25, não irá ao colóquio que o Collège
de France organiza com a presença de alguns de seus principais
seguidores.
E, no 28, não estará presente à grande jornada
de homenagens que o Museu do Quai Branly prepara para o centenário,
com leituras de suas obras, projeção de documentários
e fotos das expedições.
"É preciso dizer que ele está absolutamente sem
forças", adverte à Folha, por telefone, a secretária
que gerencia sua correspondência.
As visitas de seus ex-alunos se tornam cada vez mais raras, assim como
rareou-se seu hábito de escutar música clássica
ao longo da tarde.
Mas são fatos recentes. Até o ano passado, Lévi-Strauss
recebia amigos para jantar, lia publicações de sua área.
Com freqüência, atravessava ainda o rio rumo ao Quartier
Latin, onde fazia visitas ao Laboratório de Antropologia Social
(LAS), que ele fundou em 1960 após sua nomeação
para a recém-criada cadeira de antropologia social do Collège
de France, grande consagração de seu nome e seu trabalho.
Visitar hoje o laboratório no nº 52 da rua Cardinale Lemoine
é mergulhar na atmosfera parisiense dos anos 1970, com o carpete
vermelho manchado, um cheiro agridoce e o design editorial antiquado
dos periódicos, expostos lado a lado numa pequena vitrina de
vidro.
Com a Sorbonne, a Escola Normal Superior e o Collège de France
ali próximos, o 5º arrondissement continua sendo por excelência
o bairro dos estudantes - embora as jovens pró-Sarkozy não
lembrem em muito as radicais feministas que passeavam pelas ruas no
tumulto daquela época.
Dirigido atualmente por Pierre Descola, o centro de pesquisa tem cerca
de 50 membros e uma das mais importantes bibliotecas da área
de etnologia e etnografia.
Escaninho vazio
Entre os avisos no mural da entrada, uma folha sulfite anuncia um colóquio
em homenagem a Lévi-Strauss na Rússia e escaninhos de
madeira guardam a correspondência destinada a cada um dos membros.
O de Lévi-Strauss está lá, sim, embora vazio.
A vice-diretora Brigitte Derlon lembra-se bem de vê-lo chegar
até bem pouco tempo, caminhando com certa dificuldade, mas bem-disposto.
Quando criou o laboratório, o etnólogo francês contava
com a companhia de um pesquisador romeno, Isac Chiva, a quem nomeou
subdiretor.
Fugindo do stalinismo, o jovem judeu chegou a Paris, onde foi aluno
de Lévi-Strauss na Escola Prática de Altos Estudos antes
de tornar-se seu parceiro. Hoje, também recolhido em seu apartamento,
tem dificuldade para rememorar antigos nomes, datas, histórias.
"Lévi-Strauss está bem, afinal tem cem anos. O problema
sou eu, que tenho 82 e estou assim. É muito difícil lembrar.
Não deveria ter aceitado te receber para esta entrevista, pois
não tenho mais memória", diz.
Cada frase é interrompida e seguida por longos silêncios
e as perguntas ficam quase todas sem resposta.
Mas, ao ouvir falar em Lévi-Strauss, o colega caminha da sala
até sua biblioteca e começa a mostrar as primeiras edições
de "Antropologia Estrutural", "As Estruturas Elementares
do Parentesco" e "Tristes Trópicos" autografadas.
"Para Isac Chiva, pesquisador sutil e tenaz,
em testemunho de minha estima e amizade", diz uma das dedicatórias.
Esses amigos de tanta convivência jantavam juntos há um
ano, mas hoje muito raramente trocam um telefonema.
Resposta doce
De uma geração bem mais jovem de pesquisadores, Emmanuel
Devaux foi procurá-lo em 1978.
"Eu era um jovem tímido. Queria saber
se era pertinente partir para um trabalho de campo na América
do Norte, e não na Amazônia, como faziam todos os meus
colegas do departamento", contou à Folha.
Lévi-Strauss recebeu-o, muito cortês.
"Vá sim, mas saiba que será deprimente",
foi a resposta.
Em 2007, Devaux enviou-lhe um livro, em que questionava
os conceitos estruturalistas.
"Recebi uma resposta muito doce que dizia:
"Leio seu livro ainda, embora muito lentamente.
O que me deixa mais tempo para meditar sobre nossas concordâncias
e discordâncias"."
As atuais concordâncias e discordâncias
de Lévi-Strauss em torno da imigração na França,
da eleição de Obama, da crise financeira e de outras ordens
do dia são um mistério. Faz alguns anos que parou por
completo de dar entrevistas por "já não se considerar
um homem deste tempo".
E de que tempo ele é, então? Talvez daquele tempo mítico
que ele próprio descreve em "A Via das Máscaras".
Tempo em que a coleção de arte primitiva morava no Museu
do Homem, e não no enorme Museu do Quai Branly, criado por Jean
Nouvel.
Tempos de Barthes, Bachelard, Braudel. Hoje, todos eles viraram nomes
de ruas parisienses, escritos em letras brancas sobre placas azuis.
Saussure é uma avenida movimentada perto da Porte de Clichy,
bem ao norte. Foucault é uma alameda que termina no rio, colada
ao Trocadéro.
Hoje, solto num tempo em que seus amigos, inimigos e seguidores diretos
já desapareceram, Lévi-Strauss persiste como homem e como
mito -ele que tanto analisou a interação simbólica
entre vivos e mortos na sociedade dos bororos.
Disputando com Sartre o título de intelectual mais influente
do século 20, ele é ainda um senhor de cem anos, recolhido
no silêncio. Absolutamente vivo.
Reportagem completa do jornal FOLHA DE SÃO PAULO
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