14/06/2008
"A Resposta"- Folha de São Paulo
- Sobre a matéria de Reginaldo Prandi - "Coração
de Pomba Gira"
Quando do centenário da Umbanda, em março
deste ano (2008), o jornal Folha de São Paulo publicou uma reportagem
sobre a Umbanda contendo texto do professor Reginaldo Prandi sobre a
Umbanda e a Pomba-Gira.
Nas semanas seguintes muitos seguidores da Umbanda criticaram o professor
pelo texto. Recentemente o professor escreveu uma resposta que transcrevemos
abaixo, logo mais abaixo transcrevemos novamente o texto original do
professor; a reportagem integral do jornal Folha de São Paulo
pode lida neste
link.
A Resposta do professor Reginaldo
Prandi
- Desde suas origens, a umbanda é uma religião
muito diferenciada internamente. O saudoso Prof. Candido Procopio Ferreira
de Camargo, que escreveu há quase cinqüenta anos o hoje
pioneiro e clássico livro Kardecismo e Umbanda, preferia falar
na existência de um continuum mediúnico em vez de uma só
religião umbandista, tamanha a variedade ritual, doutrinária
e organizacional da umbanda encontrada nos locais de culto.
Muito possivelmente, certo número de umbandistas
não reconheceram nas matérias do caderno “Mais!”
da Folha de S. Paulo, publicado por ocasião das comemorações
do “centenário da umbanda”, a sua religião
exatamente como é entendida e vivida em seu terreiro, templo
ou centro. Nem poderia. As matérias tratam dos aspectos mais
gerais, constitutivos e típicos dessa religião. Não
se referem a traços particulares dessa ou daquela tendência
ritual ou doutrinária. Isso fica muito bem explicado na matéria
principal, que conta as origens e desdobramentos históricos da
umbanda.
Essa falta de reconhecimento do outro, por sinal, tem
sido um dos principais entraves à constituição,
no seio umbandista, de alguma organização ou mecanismo
coletivo capaz de atuar na defesa da umbanda, religião, que vem
sofrendo um declínio inegável no número relativo
de seus seguidores em função dos ataques que lhes são
desferidos por outras religiões, especialmente as neopentecostais.
Infelizmente, para o umbandista, e também para o seguidor do
candomblé, aquilo que não reflete exatamente o que se
faz em sua casa está errado. Os umbandistas, por isso, não
tem sido capazes de se unir. Ao contrário. As mais de setenta
federações de umbanda hoje existentes no Estado de São
Paulo são mais do que evidência desse espírito divisionista,
sectário e intolerante que grassa no meio religioso. Infelizmente
quem sai perdendo é a umbanda. Parece dirigido às paredes
o lema “União na diversidade”, que norteia a política
do Intecab — Instituto Nacional da Tradição e Cultura
Afro-Brasileira (que deveria reunir todos os tipos de seguidores da
umbanda, do candomblé, do tambor-de-mina, do xangô pernambucano
e outras manifestações que cultuam orixás, voduns,
inquices, caboclos, preto-velhos e outros encantados). Na prática
corrosiva de negar legitimidade àquele que concebe diferente
a mesma religião, chega-se até a duvidar da legalidade
de instituições legalmente constituídas (como uma
escola, uma associação, uma faculdade), pelo simples fato
de não se estar nela representado, ou por se discordar de sua
linha religiosa. O outro não é razão para o debate
construtivo, mas para a desqualificação.
Quanto ao meu texto “Coração de
Pombagira”, em termos de conteúdo, ele não difere
substancialmente de dezenas de livros sobre pombagira, escritos por
pais-de-santos e outras autoridades umbandistas à venda nas lojas
de umbanda (e nos quais eu me baseio, ao lado do conhecimento adquirido
pela pesquisa de campo sistemática). A concepção
de pombagira como mulher de costumes escuso durante sua vida terrena
é decisiva na constituição dessa entidade, assim
como o são a natureza ingênua e aguerrida do caboclo e
a bondade e sabedoria sofridas do preto-velho. A umbanda associa à
pombagira categorias socialmente marginalizadas como prostitutas, damas
de cassinos e cabaré, mulheres que se juntam a bandidos e homens
igualmente marginalizados. O que acontece depois de sua morte, num plano
espiritual, é outra coisa. Em alguns terreiros (em face da diversidade
do campo umbandista) pombagiras podem ser “batizadas” à
moda cristã e redimidas como figuras virtuosas. Mas na origem
o que as define é sua condição terrena marginal.
A perdição ou negação das virtudes pregadas
pela moralidade geral vigente é o elemento essencial na constituição
mítica dessas entidades que, junto com seus parceiros masculinos,
os exus, são o centro da prática quimbandista, encontrada
em terreiros de umbanda e hoje também em terreiros de candomblé.
Isso não é invenção de gente de fora da
religião. Aliás, basta apreciar, numa loja de umbanda,
as imagens, muitas em tamanho natural, de diferentes pombagiras para
se ter uma idéia nada parcial do papel social que teriam desempenhado
em vida, o que é fartamente relatado em suas lendas e em seus
mitos. Tal fato em nada diminui sua força religiosa e sua capacidade
de ajudar o outro. Isso está muito bem descrito na segunda parte
de meu artigo. Só não viu quem não quis. Mais que
isso, é dentro da própria umbanda que se costuma confundir
os exus com o diabo e as pombagiras com esposas do demônio. Basta
ouvir o que dizem dezenas de pontos cantados dedicados a essas entidades
em terreiros de umbanda. Não é imaginação
de gente de fora, muito menos de algum pesquisador desavisado ou jornalista
inexperiente. Nem consta da história relatada em “Coração
de Pombagira”.
Penso que há muito a aprender, tanto por parte
dos que estudam e divulgam a religião, quanto por parte dos que
a praticam. Seja que religião for. Por isso não me recuso
a debater minhas idéias com os que têm críticas
a apresentar. É assim que caminha o conhecimento humano.
Esperando ter respondido às dúvidas dos
leitores, subscrevo-me,
Cordialmente,
Reginaldo Prandi
Texto original
Folha de São Paulo
Domingo, 30 de Março de 2008
Coração de pombagira
Espírito de mulher, esse exu feminino cultuado
na quimbanda é usado para solucionar problemas relacionados ao
amor e à sexualidade
REGINALDO PRANDI
ESPECIAL PARA A FOLHA
De beleza exuberante e inteligência rara, Elisa
se achava uma mulher sem sorte. Vivia infeliz: todos que a cercavam,
todos a quem amava pareciam sofrer com ela. Uma maldição,
pensava ela. Casada, logo o marido passou a se servir de putas, embora
amasse e desejasse a mulher, que só penetrou uma vez, na primeira
noite. Apesar de seu tremendo desejo por Elisa, só alcançava
a ereção com outras. Ela sofria pelas dores do marido.
Ele a acusava de rejeitá-lo e batia nela.
No começo, nem tudo era sofrimento. Daquela única
vez nasceu Vitória. A menina cresceu bonita e saudável
até os sete anos. Depois começou a definhar. "É
a maldição!", Elisa se culpava. O marido se enterrou
de vez nos puteiros, ia chorar sua desventura no colo das putas. Todas
as especialidades médicas foram consultadas, todas as promessas
foram pagas, todas as rezas foram rezadas.
Consultados médiuns e videntes, cartomantes e
benzedeiras, padres, pastores e profetas, nada. A saúde da menina
decaía dia a dia. Até que Elisa foi bater à porta
de mãe Júlia, famosa mãe-de-santo. "Você
nasceu com a beleza de Oxum e a majestade de Xangô, mas seu coração
é de pombagira", disse-lhe a mãe-de-santo, depois
de consultar os búzios.
A vida recatada de Elisa, seu senso de pudor, sua modéstia,
a repressão de costumes que ela mesma se impunha, a falta de
interesse pelo sexo, tudo isso negava os sentimentos de seu coração,
contrariava sua natureza. A cura, a redenção -dela e dos
seus-, tinha uma só receita: libertar seu coração,
deixar sua pombagira viver. Foi a sentença da mãe-de-santo.
Leve e livre
Ali mesmo, naquele dia e hora, sem saber como nem por
quê, Elisa se deixou possuir por três homens que, no terreiro,
tocavam os atabaques. O prazer foi imenso. Sentiu-se leve e livre pela
primeira vez na vida.
Pensando na filha, voltou correndo para casa e encontrou
a menina melhor, muito melhor: corria sorridente, pedia comida, queria
brincar.
No dia seguinte, Elisa voltou ao terreiro. "Seu
caminho é longo ainda", mãe Júlia disse.
Depois a abençoou e se despediu. Um dos homens
com quem se deitara no dia anterior lhe deu um endereço no centro
da cidade, um local de meretrício, que Elisa começou a
freqüentar. Passava as tardes lá, enquanto o marido trabalhava.
Voltava para casa mais feliz e esperançosa, a menina melhorava
a olhos vistos.
Para preservar a honra do marido, Elisa se vestia de
cigana, cobrindo o rosto com um véu. O mistério tornava
tudo mais excitante. A clientela crescia. O marido soube da nova prostituta
e quis experimentar. Na cama com a Cigana, o prazer foi surpreendente,
muito maior do que sentira com Elisa e que nunca fora superado com outra
mulher. Seria escravo da Cigana se ela assim o desejasse. Mas a Cigana
nunca mais quis recebê-lo.
A insistência dele foi inútil. "Um
dia te mato na porta do cabaré", ele a ameaçou, ressentido
e enciumado. Ela se manteve irredutível.
Num entardecer de inverno, ele esperou pela Cigana na
porta do puteiro e, na penumbra, lhe deu sete facadas. Assustado, olhou
o corpo ensangüentado da morta estirado no chão e reconheceu,
no piscar do néon do cabaré, o rosto desvelado de Elisa.
Um enfarto o matou ali mesmo.
Longe dali, no terreiro de mãe Júlia,
o ritmo dos tambores era arrebatador. As filhas-de-santo giravam na
roda, esperando a incorporação de suas entidades.
Na gira de quimbanda, exus e pombagiras eram chamados.
Os clientes, que lotavam a platéia, esperavam sua vez de falar
de seus problemas e resolver suas causas. As entidades foram chegando,
e o ambiente se encheu de gargalhadas e gestos obscenos. O ar cheirava
a suor, perfume barato, fumaça de tabaco, cachaça e cerveja.
A força invisível da magia ia se tornando mais espessa,
quase podia ser tocada.
Cada entidade manifestada no transe se identificava cantando seu ponto.
De repente, uma filha-de-santo iniciante, e que nunca entrara em transe,
incorporou uma pombagira.
Com atrevimento ela se aproximou dos atabaques e cantou
o seu ponto, que até então ninguém ali ouvira:
"Você disse que me matava/na porta do cabaré/ Me deu
sete facadas/ mas nenhuma me acertou/ Sou Pombagira Cigana/ aquela que
você amou/ Cigana das Sete Facadas/ aquela que te matou".
Mãe Júlia correu para receber a pombagira,
abraçou-a e lhe ofereceu uma taça de champanhe. "Seja
bem-vinda, minha senhora. Seu coração foi libertado",
disse a mãe-de-santo, se curvando.
Pombagira Cigana das Sete Facadas retribuiu o cumprimento
e, gargalhando, se pôs a dançar no centro do salão.
Biografias míticas
Essa é uma história de ficção,
mas poderia não ser. É baseada em relatos que ouvi e li
em anos de pesquisa sobre umbanda e candomblé. Pombagiras são
espíritos de mulheres, cada uma com sua biografia mítica:
histórias de sexo, dor, desventura, infidelidade, transgressão
social, crime.
Pombagira é um exu, um exu feminino. Na concepção
umbandista, o termo exu nomeia dezenas de espíritos de homens
e mulheres que em vida tiveram uma biografia socialmente marginal.
O culto dessas entidades é reunido na quimbanda,
uma das divisões da umbanda, hoje em dia também encontrada
em muitos terreiros de candomblé.
A quimbanda cuida das situações de vida que a moralidade
dos caboclos e pretos-velhos, que compõem a outra divisão
da umbanda, rejeita e reprime.
Pombagira tem múltiplas identidades, cada uma com nome, aparência,
preferências, símbolos, mito e cantigas próprios.
Entre dezenas há: Pombagira Rainha, Maria Padilha, Sete Saias,
Maria Molambo, Pombagira das Almas, Dama da Noite, Sete Encruzilhadas.
Apela-se especificamente às pombagiras para a
solução de problemas relacionados a fracassos e desejos
da vida amorosa e da sexualidade. Pombagira junta e separa casais, protege
as mulheres, propicia qualquer tipo de união amorosa ou erótica,
hétero ou homossexual.
Aspirações e frustrações
Para a pombagira e seus companheiros exus, qualquer
desejo pode ser atendido. Por meio dos pedidos feitos às pombagiras,
podemos entender algo das aspirações e frustrações
de parcelas da população que estão de certo modo
distantes de um código de ética e moralidade embasado
em valores da tradição ocidental cristã.
O culto dá acesso às dimensões mais próximas
do mundo da natureza, dos instintos, das pulsões sexuais, das
aspirações e desejos inconfessos.
Revela esse lado "menos nobre" da concepção
de mundo e de agir no mundo. Umbanda e candomblé são religiões
que aceitam o mundo como ele é e ensinam que cada um deve lutar
para realizar seus desejos.
Por isso, com freqüência são vistas
como liberadoras. Não se crê no pecado nem em premiação
ou punição após a morte. A vida é boa e
deve ser levada com prazer e alegria.
Nessa busca da realização dos anseios
humanos mais íntimos, exus e pombagiras reforçam sem dúvida
uma importante valorização da intimidade, às vezes
obscura, de cada um de nós, pois para os exus e pombagiras não
há desejo ilegítimo nem aspiração inalcançável
nem fantasia reprovável.
>>> clique aqui para ver a lista completa de notícias
>>>
clique aqui para voltar a página inicial do site
topo