Artur Cesar Isaia é graduado em História pela Universidade
Federal do Rio Grande do Sul, mestre em História pela Pontifícia
Universidade Católica do Rio Grande do Sul e doutor em História
Social pela Universidade de São Paulo. Desenvolveu estágio
de pós-doutoramento na École de Hautes Études en
Sciences Sociales, em Paris. Atualmente é professor da Universidade
Federal de Santa Catarina, onde é um dos coordenadores do Laboratório
de Religiosidade e Cultura – Larc. Tem experiência na área
de História, com ênfase em História do Brasil República
e Teoria e Filosofia da História, pesquisando principalmente
os seguintes temas: discurso religioso, catolicismo, espiritismo, umbanda.
É autor do livro "Orixás e espíritos: o
debate interdisciplinar na pesquisa contemporânea" e dos
Cadernos IHU Idéias, n° 64 intitulado Getúlio e
a Gira: a Umbanda em tempos de Estado Novo.
Por: Graziela Wolfart
Confira a entrevista.
IHU On-Line - Que relação pode ser
estabelecida entre o espiritismo e as religiões afro-brasileiras?
Artur Cesar Isaia - Entre o espiritismo e as religiões
chamadas afro-brasileiras, existe um parentesco cultural evidente,
apesar das relações, às vezes tensas, entre o
órgão representativo do espiritismo brasileiro (a Federação
Espírita Brasileira - FEB) e aquelas religiões. No Brasil,
principalmente devido às sobrevivências culturais dos
africanos de origem banto, generalizou-se a crença e o culto
em entidades ancestrais, nos espíritos, o que representa um
elo comum entre as religiões afro-brasileiras, principalmente
a umbanda e o espiritismo. Em relação às manifestações
existentes na umbanda, podemos ver nas fontes relativas ao espiritismo
que até o primeiro quartel do século XX a FEB as reconhecia
como espíritas. Este posicionamento é mudado na década
de 1950, quando a FEB tenta demarcar território. A partir desta
ocasião, mesmo que continue a reconhecer como espíritas
boa parte dos fenômenos da religiosidade afro-brasileira (basicamente
as manifestações dos chamados caboclos e pretos velhos),
não os reconhece como amparados na doutrina espírita.
Já na década de 1970, a FEB avança no sentido
de marcar território frente às religiões afro-brasileiras.
Passa, então, a reconhecer como espíritas somente as
manifestações de natureza mediúnica amparadas
na doutrina espírita (vale dizer nas obras de Allan Kardec
e na sua interpretação das mesmas). É necessário
termos em mente que estas sutilezas de argumentação
doutrinária aconteceram ao largo das vivências de boa
parte da população brasileira, a qual, espírita,
frequentadora das religiões afro-brasileiras ou eventualmente
frequentadora de ambas, dificilmente tomou conhecimento ou levou em
consideração esses porta-vozes do espiritismo brasileiro.
IHU On-Line - O que podemos entender por “espiritismo
de umbanda”?
Artur Cesar Isaia - Esta expressão aparece,
sobretudo, em um momento de afirmação da umbanda no
campo religioso brasileiro, no qual há uma necessidade de busca
de legitimação. Ora, não podemos esquecer que
este momento é ainda fortemente marcado por interditos preconceituosos,
em um Brasil em que a abolição da escravidão
é um fato recente. Apesar da perseguição oficial
se estender também ao espiritismo (vale lembrar a explícita
condenação às atividades espíritas no
primeiro código penal republicano), este conta com muito mais
aceitação por boa parte da elite letrada brasileira.
Daí a insistência dos primeiros líderes e intelectuais
umbandistas em se dizerem adeptos do “espiritismo de umbanda”.
Esta expressão vai deslizar do vocabulário religioso
dos primeiros umbandistas para a própria análise sociológica
(ela aparece até mesmo na produção de Roger Bastide
).
IHU On-Line - Qual a influência do espiritismo
nos processo de possessão das religiões neopentecostais?
Artur Cesar Isaia - Do ponto de vista cultural,
é evidente que algumas denominações vão
se ancorar em práticas extremamente familiares ao cotidiano
e à tessitura valorativa de boa parte de população
brasileira. Mesmo com um discurso de satanização do
espiritismo, da umbanda e do candomblé (discurso muito semelhante
ao católico do período pré-conciliar), o que
se vê, na prática, é uma afirmação
de valores e crenças pré-existentes, onde o inimigo
passa a ser ressignificado e a servir de ponto de referência
para o próprio sucesso dessas denominações. Um
exemplo claro pode ser apontado na forma de nominar os demônios,
em alguns rituais de exorcismo na Igreja Universal do Reino de Deus,
onde aqueles aparecem com nomes e mise-en-scène típicos
das manifestações de caboclos, pretos velhos, exus,
principalmente.
IHU On-Line - Qual o impacto do espiritismo na dinâmica
do campo religioso brasileiro?
Artur Cesar Isaia - Embora os censos demográficos
apontem para uma parcela mínima da população
como seguidora do espiritismo, a crença em alguns pilares da
sua doutrina aparece extremamente difundida no Brasil. A crença
nos contatos com os espíritos, na reencarnação
é algo que salta aos olhos em fenômeno comprovado pelas
pesquisas de opinião. Por outro lado, a reincidente presença
desses temas na mídia, nas telenovelas, principalmente, ajuda
a compreender este fenômeno. Isto sem falar no evidente sucesso
de bilheteria dos últimos filmes brasileiros que tratam desta
temática.
IHU On-Line - Por que o espiritismo era considerado
loucura e doença contagiosa na primeira metade do século
XX no Brasil?
Artur Cesar Isaia - Em minha opinião, basicamente
por duas razões: a primeira prende-se às características
da psiquiatria da época, extremamente normativa, refratária
a qualquer vivência que não se encaixasse no tipo standard
de sanidade mental construído. Como a psiquiatria da época
ainda insistia na oposição total entre o racional e
o irracional e o critério de sanidade auferia-se pelo predomínio
do primeiro, as atividades mediúnicas eram encaradas como uma
anormalidade, na qual o mundo subliminar, irracional afirmava-se frente
à racionalidade e ao predomínio da vontade individual.
A segunda razão, pela extrema familiaridade entre a medicina
psiquiátrica e o estado nesta época. Em ambos, vigorava
uma posição intervencionista, que pregava o “ajuste”
de boa parte da população brasileira aos padrões
de sanidade, higiene e laboriosidade, tidos, igualmente, como padrões
de normalidade. Daí as campanhas antiespíritas e antialcoólicas,
por exemplo, abraçadas por parte da medicina psiquiátrica
da época, aparecerem entrelaçadas às atividades
do Estado. Posicionamento totalmente diferente tem a medicina psiquiátrica
contemporânea em relação a este assunto, em um
momento em que o sujeito moderno, racional, cartesiano é relativizado.
IHU On-Line - Quais as principais diferenças
em relação aos discursos religiosos espírita,
católico e umbandista?
Artur Cesar Isaia - Do ponto de vista das vivências
da população brasileira, talvez fosse mais fácil
responder quais as semelhanças entre eles, já que boa
parte dos brasileiros transita, sem problemas de consciência,
entre espiritismo, catolicismo, umbanda e demais manifestações
afro-brasileiras. Contudo, do ponto de vista estritamente doutrinário,
o que as diferencia basicamente é a crença na reencarnação,
assumida tanto pelo espiritismo quanto pela umbanda e que vai de encontro
à ideia de salvação pregada pelo catolicismo
e a crença nos chamados novíssimos: a morte, o juízo,
o paraíso e o inferno.
IHU On-Line - Como o espiritismo se posiciona, em
geral, em relação à política?
Artur Cesar Isaia - Essa pergunta é muito
difícil de responder, uma vez que depende do ângulo que
se está analisando a questão e de qual o “porta
voz” autorizado escolhemos para falar em nome do espiritismo.
Como no espiritismo não há uma hierarquia e nem uma
autoridade central, as federações e associações
espíritas não podem ter a palavra final sobre qualquer
assunto. Mesmo a FEB teve e tem sua autoridade contestada inúmeras
vezes. Um desses momentos foi o da assinatura do chamado Pacto Áureo
, assinado em 1949 no Rio de Janeiro e que pretendia unificar o posicionamento
dos espíritas no Brasil. Este documento foi contestado por
alguns líderes espíritas, como Deolindo Amorim (que,
coincidentemente, escreveu sobre as relações entre espiritismo
e religiões afro-brasileiras). Portanto, temos que precisar
a partir de que fontes, de que universo empírico nos referimos
para caracterizar o posicionamento espírita em relação
à política. Se utilizarmos como corpus documental a
obra de codificação espírita, o chamado “Pentateuco”
(O Livro dos Espíritos, O Livro dos Médiuns, O Evangelho
Segundo o Espiritismo, O Céu e o Inferno e A Gênese)
vamos ver o espiritismo referendando basicamente o mundo sociopolítico
pós-revolucionário francês. Quando falamos em
mundo pós-revolucionário, falamos da orientação
institucional e da realidade sociopolítica que triunfou após
1789. Sendo assim, essas obras (que pertencem à segunda metade
do século XIX) referendam em boa parte a conciliação
entre os ideais revolucionários de igualdade, fraternidade
e liberdade com os interesses da propriedade. Na obra de codificação
espírita, vamos encontrar a defesa de um mundo harmônico
e tranquilo, onde trabalhadores e patrões deveriam coexistir,
onde se defende a legitimidade do salário e da propriedade
privada e onde a luta revolucionária de matiz socialista é
condenada (embora possamos ver a presença de socialistas utópicos
como simpatizantes do espiritismo). Em linhas gerais, o Pentateuco
referenda o liberalismo pós-revolucionário, aparecendo
a defesa clara da laicidade do Estado, da universalização
do ensino, da igualdade entre homens e mulheres e da república.
Fonte: http://www.ihuonline.unisinos.br