Carlos
Iglesia
> Como lidar com as diferenças de idéias
no meio espírita ?
Vivermos com as diferenças
significa sabermos trocar idéias e
compartilhar espaços com pessoas que defendem posições
diferentes
das nossas nos pontos acessórios da Doutrina.
Amigos,
Uma constatação a que
não deixa de chegar o observador mais atento é que dentro
do movimento espírita existe uma variação de idéias
a respeito de pontos acessórios
(1) da doutrina. Nada de se estranhar, pois o número de espíritas
e simpatizantes é muito grande e a unanimidade total de idéias
dentro da comunidade espírita é praticamente impossível.
A Doutrina Espírita, e nisto
todos concordam, prima pela defesa da fé raciocinada, ou seja,
por incentivar o estudo e o raciocínio próprio em torno
do conjunto de conhecimentos que a compõe. Não
há a adesão a uma forma imposta de pensar, muito menos
a sujeição a uma autoridade doutrinária que
diga o que é certo ou o que é errado.
O que chamamos de Espiritismo é
o ensinamento transmitido pelos Espíritos, ou derivado dos estudos
sobre a comunicação mediunica, organizado por Allan Kardec
e complementado gradualmente nos cento e poucos anos que se seguiram
a sua desencarnação. A complementação foi
resultado de novas comunicações e do aprofundamento dos
estudos. Este desenvolvimento seu deu principalmente em questões
acessórias, que não modificaram o núcleo
da Doutrina (2):
- A existência de Deus, inteligência
suprema, causa primária de todas as coisas;
- A existência de um princípio
inteligente no homem, o Espírito, que sobrevive ao corpo
e conserva sua individualidade;
- O Espírito evolui através de
múltiplas existências (reencarnações)
em um processo que o leva à perfeição;
- Todos os Espíritos são criados
iguais e evoluem sujeitos à mesma lei de causa e efeito;
- A comunicação entre os Espíritos
desencarnados e os Espíritos encarnados (os seres humanos)
é possível e natural;
- A moral Espírita fundamentada na moral
Cristã (Fora da Caridade não há salvação);
Entre as questões acessórias
tratadas após a desencarnação de Kardec (3)
podemos citar:
- Aprofundamento das informações
sobre o mundo espiritual onde permanecem os Espíritos no
intervalo de suas encarnações;
- Aprofundamento dos estudos sobre a mediunidade;
- Aprofundamento dos estudos sobre os aspectos
morais/religiosos do Espiritismo;
- A afinidade entre o movimento espírita
e o esperantista;
- A afinidade entre o movimento espírita
e a homeopatia;
- A atuação social espírita;
- A questão da identidade própria
com relação a outras filosofias e religiões
espiritualistas (por exemplo: as religiões afro-brasileiras);
A bibliografia Espírita contemporânea
é imensa, refletindo a extensão do campo de assuntos tratados.
Neste campo se encontram temas tão distantes quanto o estudo
da evolução do princípio inteligente nos reinos
animal e vegetal até a discussão sobre as formas de existência
em outros planos e mundos, passando pelos testemunhos sobre as condições
do mundo espiritual e das leis que o regem.
É justamente nas áreas
periféricas deste campo de conhecimentos que surgem as discussões
e são nas idéias muito novas ou nas que não encontraram
apoio na maioria dos grupos espíritas, que se concentram as divergências.
O exemplo mais clássico
é o da polêmica sobre o corpo fluídico de Jesus,
que sem entrarmos no seu mérito, reflete justamente uma questão
deste tipo. Ela é acessória porque nada interfere no núcleo
da Doutrina e é praticamente insolúvel porque as únicas
provas que a encerrariam definitivamente seriam a descoberta do túmulo
com os restos mortais de Jesus (bastante improvável já
que os testemunhos documentais existentes - os Evangelhos - falam de
seu desaparecimento na ressureição e, mesmo que os testemunhos
não sejam precisos, já se passaram quase 2.000 anos do
fato) ou o testemunho do próprio Jesus através de médiuns
de credibilidade aceita por todas as partes.
Argumentações baseadas
em fatos e conhecimentos doutrinários, mais ou menos sólidas,
não têm como resolver a discussão porque há
outros aspectos envolvidos além dos racionais. As pessoas têm
perfis diferentes, correspondem a tipos psicológicos diferentes
(4). As mesmas situações apresentadas à pessoas
de tipos psicológicos diferentes as levam a conclusões
e respostas diferentes.
Além da questão do tipo
psicológico há o histórico pessoal. O país
onde a pessoa vive, a classe social a que pertence, a organização
em que trabalha e os grupos sociais a que se liga nas suas horas livres,
todos contribuem para formar a visão de mundo do indivíduo.
Visão de mundo que servirá de filtro para o modo como
recebe as informações do mundo externo e as interpreta
(5).
Acrescente-se a estes pontos discutidos
o fato de que nosso vocabulário é adaptado às necessidades
das sociedades terrenas atuais, as palavras têm múltiplos
sentidos e nem sempre são adequadas para expressar idéias
que fogem ao modo de vida material. Assim informações
sobre o mundo espiritual ou sobre realidades que transcendem a matéria
geralmente são trazidas pelos espíritos na forma de analogias
ou de aproximações. A interpretação das
analogias e das aproximações é fortemente dependente
do receptor da informação (6).
Como a única forma de não
termos divergências de idéias no movimento espírita
seria termos todos os espíritas com o mesmo tipo psicológico,
e com o mesmo histórico pessoal, não há
outra alternativa viável senão vivermos com as diferenças.
Naturalmente existiram no passado grupos religiosos que tentaram a uniformidade
absoluta e a única forma de obtê-la é pela imposição.
Historicamente isto gerou perseguições, intolerância
e guerras religiosas. Não são bons exemplos a se seguir,
pois ao impor a uniformidade precisaram justamente deixar para trás
- ou encobrir através de sofismas - o que é mais importante
no seu núcleo: o amor ao próximo.
Vivermos com as diferenças
significa sabermos trocar idéias e compartilhar espaços
com pessoas que defendem posições diferentes das nossas
nos pontos acessórios da Doutrina. Significa compreender
que nós e elas somos Espíritas. Significa principalmente
sempre ter em mente que:
-
Os pontos acessórios não
estão completamente resolvidos e podem mudar com novos desenvolvimentos;
-
Tanto nós como elas
temos limitações e preferências, o que afeta
nosso modo de perceber a realidade;
-
Talvez nem nós, nem
elas, estejamos de posse da verdade definitiva, possivelmente ambos
estejamos errados;
-
O mesmo se dá em
qualquer outro campo de atuação da vida humana. A
uniformidade não é a regra.
A solução é
a "tolerância". Tolerância no
sentido mais amplo de que aceitamos que o outro pense de forma diferente
porque ele tem tanto direito quanto nós de ter sua interpretação
da fé raciocinada que compartilhamos. Interpretação
tão válida quanto a nossa. Se ele está certo e
nós errados, ou vice-versa, apenas o tempo dirá.
Claro que a tolerância
também vale para as pessoas que divergem de nós até
mesmo nos pontos básicos da Doutrina, nos que consensualmente
são os que identificam uma pessoa como Espírita, mas nesse
caso se trata mais da tolerância com a crença legitima
de nossos irmãos de outras religiões e com circunstâncias
que fogem ao escopo deste pequeno comentário. É natural
neste caso esclarecer a pessoa do que é o Espiritismo e mostrar-lhe,
sempre dentro do máximo respeito para suas crenças pessoais,
que ela defende idéias diferentes deste.
Kardec disse que a fé verdadeira
não teme o uso da razão. Ele poderia ter acrescentado
que a fé verdadeira também não teme conviver
com diferenças de opinião. A fé verdadeira
não teme a troca de idéias e o debate, muito menos teme
estudar as opiniões alheias. É a fé vacilante que
busca a uniformidade, para não se questionar a si própria.
Muita Paz,
Carlos Iglesia
Editor GEAE
Notas:
1
- Estamos chamando de "pontos acessórios" ou "questões
acessórias" os temas que são estudados pelos espíritas,
mas que não modificam os princípios fundamentais da Doutrina
Espírita. Os parágrafos seguintes do editorial apresentam
maiores detalhes a respeito.
2 - Os princípios fundamentais
da filosofia espírita, conforme descritos por Allan Kardec em
um discurso que apresentou por ocasião do dia de finados e que
está publicado na Revue Spirite de dezembro de 1868 (vide Boletim
GEAE 277), são:
"Crer num Deus todo-poderoso, soberanamente justo e bom; crer na
alma e na sua imortalidade; na preexistência da alma como única
justificativa da presente existência; na pluralidade das existências
como meio de expiação, reparação e adiantamento
intelectual e moral; na perfectibilidade dos seres mais imperfeitos;
na felicidade crescente com a perfeição; na remuneração
equitativa do bem e do mal, segundo o principio: a cada um segundo as
suas obras; na igualdade da justiça para todos, sem exceções,
favores nem privilégios para criatura alguma; na duração
da expiação limitada à da imperfeição;
no livre-arbítrio do homem, deixando-lhe a escolha entre o bem
e o mal; crer na continuidade das relações entre o mundo
visível e o mundo invisível; na solidariedade que liga
todos os entes passados, presentes e futuros, encarnados e desencarnados;
considerar a vida terrestre como transitória e uma das fases
da vida do Espírito, que é eterna; aceitar corajosamente
as provas, visto ser o futuro mais desejável que o presente;
praticar a caridade por pensamentos, palavras e obras, na mais ampla
acepção do vocábulo; esforçar-se cada dia
para ser melhor do que na véspera, extirpando da alma alguma
imperfeição; submeter todas as suas crenças ao
controle do livre exame e da razão e nada aceitar por uma fé
cega; respeitar todas as crenças sinceras, por mais irracionais
que nos pareçam e não violentar a consciência de
ninguém; ver enfim, nas descobertas da Ciência, a revelação
das leis da Natureza, que são as leis de Deus".
3 - Allan Kardec no texto "Rivalidades
entre Sociedades" (O Livro dos Médiuns) já tratava
a possibilidade das divergências provocadas por questões
acessórias:
"(...) Como dissemos no capítulo sobre Contradições,
essas divergências têm por motivo, na maioria das vêzes,
questões acessórias ou até mesmo simples palavras.
Seria pueril, portanto, cindirem o grupo, formando outro à parte
por não pensarem exatamente da mesma forma. Haveria ainda coisa
pior se os diversos grupos ou sociedades de uma mesma cidade se olhassem
recìprocamente com inveja. Compreende-se a inveja entre pessoas
que disputam entre si e podem causar-se prejuízos materiais.
Mas quando não há especulação a inveja ou
o cíume nada mais são do que mesquinha rivalidade provocada
pelo amor próprio. Como não pode haver, de maneira alguma,
uma sociedade que possa reunir todos os adeptos, as que realmente desejam
propagar a verdade, que têm um objetivo exclusivamente moral,
devem ver com prazer o aparecimento de novos grupos e, se houver concorrência
entre eles deve ser apenas uma emulação no campo do bem.
Aquelas que pretendessem estar na posse exclusiva da verdade deveriam
prová-lo tomando por divisa: Amor e Caridade, porque essa é
a divisa de todo verdadeiro espírita. (...)"
"Se o Espiritismo deve, como foi
anunciado, realizar a transformação da humanidade, só
poderá fazê-lo pelo melhoramento das massas, o qual só
se dará gradualmente, pouco a pouco, pelo melhoramento dos indivíduos.
Que importa crer na existência dos Espíritos, se essa crença
não tornar melhor, mais bondoso e mais indulgente para os seus
semelhantes, mais humilde e mais paciente na adversidade aquêle
que a adotou ? (...)"
"Essa é
a via pela qual nos temos esforçado para levar o Espiritismo.
A bandeira que arvoramos bem alto é a do Espiritismo cristão
e humanitário, em torno da qual somos felizes de ver desde já
tantos homens se juntarem em todos os pontos da Terra, porque compreendem
que está nela a âncora de salvação, a salvaguarda
da ordem pública, o signo de uma nova era para a humanidade.
(...)". Capítulo XXIX - Reuniões e Sociedades, O
Livro dos Médiuns, tradução de J. Herculano Pires,
coleção das obras completas de Allan Kardec da EDICEL.
4 - Uma leitura interessante a
respeito é o livro "Tipos Psicológicos" de C.
G. Jung. que estuda a questão dos tipos psicológicos com
grande profundidade.
5 - A diferença cultural
e suas implicações na comunicação humana
são objeto de importantes estudos, como os do Prof. Geert Hofsted
(http://www.geert-hofstede.com/). Em uma pesquisa que desenvolveu com
pessoas de 50 filiais da IBM em países diferentes, do mesmo nível
dentro da organização, ele identificou algumas características
marcantes (chamadas por ele de "dimensões da cultura")
que permitiam entender porque elas chegavam a soluções
diferentes para os mesmos problemas. Recomendo a leitura do livro "Culture's
Consequences : Comparing Values, Behaviors, Institutions, and Organizations
Across Nations" do Prof. Geert, ele traz uma excelente visão
do que como a "cultura" interfere no modo como vemos e reagimos
ao mundo.
6
- "Ninguém pode ultrapassar de improviso os recursos da
própria mente, muito além do círculo de trabalho
em que estagia; contudo, assinalamos, todos nós, os reflexos
uns dos outros, dentro da nossa relativa capacidade de assimilação".
Emmanuel, trecho do capítulo "O Espelho da Vida" do
livro "Pensamento e Vida", médium Francisco Cândido
Xavier, FEB.
Fonte:
Editorial
Boletim GEAE
Grupo de Estudos Avançados Espíritas
www.geae.inf.br
Ano 13 - Número 498 - 2005
30 de agosto de 2005
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