A difícil arte de ser um jornalista espírita
Há 150 anos, os espíritos deram a
Allan Kardec um roteiro de comunicação espírita.
Sônia Zaghetto *
Especial para o Vida Espírita
www.amespirita.org.br
Quase todo centro espírita brasileiro tem um
pequeno jornal, mural informativo ou boletim. Alguns imprimem em cores,
outros fazem boletins fotocopiados. Quem não tem veículo
próprio, põe no mural o jornal de uma federativa ou de
outro centro espírita. Programas de rádio, revistas, páginas
na internet, revistas e alguns poucos – e honrosos – esforços
para fazer programas de televisão mostram o quanto as instituições
espíritas vivem enamoradas da comunicação social.
Mas há conflitos sérios nesse relacionamento.
É lugar comum dizer que falta profissionalização
da comunicação social espírita. Como é de
conhecimento geral, há problemas crônicos. Duas situações
são bem típicas. A primeira é que os jornalistas
são geralmente muito atarefados e não conseguem –
na condição de voluntários – colaborar com
a regularidade que a comunicação social exige. A segunda
ocorre quando o jornalista é chamado a trabalhar profissionalmente
e tem de enfrentar as idiossincrasias locais. Em outras palavras: a
comunicação social tem de se adaptar à visão
parcial (e amadora) do dirigente. O jornalista então é
visto não como um profissional de mercado, que cursou uma universidade
para bem desempenhar sua profissão, mas como alguém que
está ali apenas para expressar vontade e pensamento de uma outra
pessoa. Assim, subvertem-se papéis e funções, limites
são ultrapassados e todos perdem.
A falta de diálogo e reflexão sobre a comunicação
social traz prejuízos consideráveis à divulgação
da Doutrina. Um corpo teórico que normatize procedimentos e rotinas
ainda é uma lacuna a preencher. A isso somam se outros problemas
rotineiros nas agremiações humanas, inclusive espíritas:
os avanços do personalismo, da politicagem, das atitudes ególatras,
da falta de humildade para avaliar com isenção potenciais
e desempenhos, sem se deixar cegar pela bajulação e mantendo
o foco na divulgação. Sobre essa montanha de problemas
pode-se acrescentar ainda os palpiteiros de plantão e os que
julgam conhecer profundamente uma profissão diversa da sua unicamente
porque assumiram cargos de direção em instituições
espíritas.
O resultado disso é o cenário atual: raros veículos
cumprem a função básica da comunicação
social. Poucos informam com agilidade, trazem textos enxutos ou diagramação,
fotos, roteiros e edição de boa qualidade. Muitos textos
mornos, insípidos, que não atraem o leitor.
Escrever é uma arte. Escrever jornalisticamente é uma
ciência. E os dirigentes espíritas ainda não descobriram
isso. Geralmente toma-se como modelo de texto os romances espíritas,
com histórias emocionantes e bem narradas, mas com uma abundância
de adjetivos e advérbios incompatível com o texto jornalístico.
Mais grave: o conjunto do Movimento Espírita incorporou ao seu
linguajar intramuros expressões e construções frasais
em moda na primeira metade do século vinte. Na prática,
temos jovens de vinte anos que negam o que de mais belo uma língua
falada possui: a dinâmica. Línguas são vivas, móveis.
Ajustam-se a tempos novos, incorporam expressões e jeitos de
determinadas épocas, traduzem seu tempo. Em suma, carregam a
marca da contemporaneidade.
E dessa forma vemos uma estranha dualidade: nas ruas, os espíritas
falam uma língua compatível com sua época, com
seus ritmos e avanços; mas na instituição espírita
sacam de um vocabulário específico, em que palavras incomuns,
algumas já em desuso, oferecem o status da inclusão e
da aceitação no grupo. Um fenômeno que merecia ser
estudado: quanto mais próximo ao vocabulário de alguns
espíritos conhecidos por seus livros, mais o candidato a palestrante
ou escritor tem chances de ser aceito e aplaudido. Se conseguir construir
frases rebuscadas, com as construções invertidas que indicam
domínio do idioma, alcança a glória. Previsivelmente,
transpõe-se a prática para a comunicação
social.
Mas tudo isso tem uma outra face difícil de encarar: para quem
se está fazendo comunicação social espírita?
Para o grupo de espíritas ou para o público que ainda
desconhece a Doutrina? A esse grupo externo causa estranheza essa linguagem
nostálgica. Também está desacostumado com uma outra
prática que se incorporou ao cotidiano espírita: o bonitinho.
Funciona assim: pessoas que fora da instituição espírita
têm contatos com folhetos de qualidade, fotos bem tratadas, jornais
e programas de TV de alto padrão, no centro espírita abrem
mão de tudo isto. Passam a elogiar folhetos mal feitos, produtos
de qualidade duvidosa, exageros de criatividade em que a técnica
passou longe. E escondem a opinião sincera sob a desculpa da
caridade. “Ah, não está tão bom, mas a pessoa
se esforçou tanto e, para agradá-la, vou dizer que está
bonitinho”.
Poderia ser assim: “Acho fantásticos a sua boa vontade
e seu esforço, mas precisa de ajustes e de um tratamento profissional”.
Mas então entra em cena um dos monstros que mais corroem as relações
humanas: o melindre. E pensar que o Espiritismo veio justamente para
libertar a nossa alma desses apegos infantis, desses sentimentos menores....
Mas isso é outra conversa.
Exposto o problema, fica a questão: há como escapar desse
cenário? A resposta foi dada há exatos 150 anos. No dia
15 de novembro de 1857, apenas seis meses depois do lançamento
de O Livro dos Espíritos, Kardec interrogou os Instrutores desencarnados
sobre a possibilidade de publicar um jornal espírita: o primeiro
do mundo. A resposta – pela mediunidade de Ermance Dufaux –
veio sob a forma de um verdadeiro manual de comunicação
social espírita. Manual que o codificador soube seguir à
risca e que os espíritas do século 21 ainda não
conseguiram pôr em prática. Quem se interessar pelo assunto
pode consultar o texto. Está em Obras Póstumas, segunda
parte, e se chama “A Revista Espírita”. Os olhos
de um jornalista verificam com facilidade que cada orientação
dada pelos espíritos a Kardec é compatível com
a moderna teoria da comunicação. Bem seguidas, são
o néctar de um jornalismo que tem vibração e agilidade.
Ali, os espíritos falam de coisas sagradas para a comunicação
social. Uma delas: melhor nada fazer do que fazer mal feito, já
que a primeira impressão determina o futuro dos veículos
de comunicação.
Outro ponto: a regularidade que fideliza o público.
Um dado curioso: Kardec insiste em saber se deveria
ter um amigo para financia-lo. Os espíritas não se entusiasmam
e ele opta por fazer a Revista sozinho. Mais tarde (leia a nota de pé
de página no livro citado), o codificador reconhece que as interferências
do financiador poderiam ter comprometido o trabalho. Traduzindo: a independência
tem peso no bom jornalismo.
Aspecto essencial que revela o pensamento avançado dos desencarnados:
a sugestão de que o texto equilibre o estudo sério e os
fatos capazes de atrair os leitores curiosos. A genialidade de Allan
Kardec manteve essa linha em doze anos de Revista Espírita. Basta
ler a publicação dele para se render aos títulos
inteligentes e à seleção de matérias. Tudo
muito interessante, provocativo. O leitor é instigado. Lê-se
a Revista Espírita de um fôlego só. Mesmo passados
um século e meio, os textos continuam hipnóticos –
marca registrada de um bom escritor e de um bom jornalista. Aos jornalistas
espíritas deste século, ainda resta uma esperança:
redescobrir a orientação sobre comunicação
social que permanece oculta nas páginas de Obras Póstumas.
* Sônia Zaghetto é Jornalista
e colaboradora na divulgação da Doutrina Espírita.
Atuou como Assessora de Comunicação da FEB até
fevereiro de 2007 onde, além da assessoria de imprensa, desenvolveu
projetos como o programa de TV Terceira Revelação. Colabora
com o portal www.espiritismo.net e dirige o programa de TV Vida e Valores,
da Federação Espírita do Paraná.
Fonte: Jornal Vida Espírita
- Fevereiro 2008
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