Podemos dizer com toda a certeza
que o problema da aceitação da existência
dos Espíritos - enquanto forças externas a nós
- pode ser colocado em uma forma semelhante ao problema da aceitação
da existências de coisas não observáveis pela
Ciência. Já discutimos esse problema aqui neste blog,
quando apresentamos um artigo de P. Churchland [1]
onde esse autor descreve o chamado "movimento Browniano"
como uma das evidências para a existência de átomos.
Por muito tempo, a questão sobre a existências de
átomos foi debatida, mas somente foi definitivamente aceita
com avanços mais recentes da física moderna.
A questão da existência dos Espíritos parece
ser um capítulo parecido numa obra sobre a "aceitação
dos invisíveis", ou seja, sobre a existência
de entidades que não sensibilizam diretamente os sentidos
humanos comuns. Assim, há coisas no mundo que, não
obstante existirem, não são percebidas por nós
diretamente. Mas, como podemos estar certos de que elas de fato
existem? Quais são as condições de sua aceitação?
A história recente da Ciência é uma progressão
de evidências que acabaram por nos separar definitivamente
da ideia de que somente aquilo que podemos perceber diretamente
existe [2]. A existência dos
Espíritos adiciona um novo capítulo porque não
parece haver por enquanto qualquer meio (instrumento, [2b])
capaz de transmitir a nós a sensação da existência
deles.
Obviamente, o problema não existe para os que sentiram
ou sentem a presença os Espíritos. Os sentidos humanos,
desde que expandidos (como no caso da mediunidade) podem percebê-los.
Em nossa discussão inicial, nos referimos aos sentidos
humanos ordinários para depois abordar a questão
dos sentidos expandidos. Trataremos disso em um último
post de uma série de três.
O assunto é interessante e envolve uma mudança mais
ou menos radical na noção do senso comum de acreditar
nas coisas. De fato, essa mudança se verificou ao longo
de diversas ciências (como a física e a química),
que foram "obrigadas a crer" em coisas que não
podem ser observadas diretamente, mas que existem.
Diferença entre percepção
e observação
É necessário, antes de tudo, distinguir
entre 'percepção' e 'observação'
dos fenômenos da Natureza.
Uma percepção nada mais é
que um estado mental (ou seja, um estado privado ao indivíduo
que percebe) que não implica diretamente em qualquer
conhecimento próprio sobre aquilo que é percebido
[2c].
Exemplo: vejo um lápis
em um copo com água, ele parece quebrado. Mas sei que o
lápis não está quebrado de fato. A visão
do lápis quebrado é uma imagem que se forma na minha
mente, mas que não corresponde ao conhecimento que tenho
sobre o lápis.
As ciências antigas (antes do renascimento) eram muitas
vezes baseadas em percepções dos sentidos. Mas,
mesmo os antigos já sabiam que os sentidos são facilmente
enganados. Para que uma percepção gere conhecimento,
ela deve estar acompanhada de outras informações
sobre a coisa percebida. Esse conhecimento pregresso é
muitas vezes obtido de diferentes maneiras e representa um tipo
de concepção própria pré-existente
do mundo (que pode ser herdado, aprendido etc). De certa forma,
nossa percepção é revestida dessa informação
adicional para que aquilo que sentimos seja aceito como verdadeiro
de fato.
As ciências modernas são baseadas nas chamadas 'experiências
sensíveis' que são, verdadeiramente, observações
[3]. De forma geral, podemos dizer
que observações incluem as percepções
dos sentidos, mas não se restringem a elas [2c]
porque as observações são guiadas por algo
mais.
Entretanto, podemos argumentar que as ciências modernas
em nada modificaram a necessidade das percepções
quando instrumentos foram desenvolvidos para permitir que os invisíveis
(no sentido amplo) se tornasse 'visíveis', ou seja, acessíveis
aos sentidos humanos. De fato, instrumentos são úteis
em Ciência porque eles permitem [2c]:
- Melhorar a acurácia da percepção;
- Padronizar as observações feitas através
deles.
Considere a imagem da Figura 1. Ela é o registro de vírus
da Hepatite A conseguida por meio de um microscópio eletrônico.
Se não tenho como ver um vírus com meus olhos, com
o microscópio posso inclusive medir o seu tamanho em uma
escala e compará-lo ao de outros objetos igualmente invisíveis
a sua volta.

Fig. 1 Imagem de um microscópio mostrando
vírus da Hepatite A. Como posso estar certo de que essa
imagem realmente corresponde a um vírus da Hepatite A?
Mais ainda, ela é uma prova de vírus existem?
Entretanto, penso de forma ingênua
quando acredito que minha percepção foi apenas
expandida quando observo essa imagem do vírus pelo microscópio.
Somente devo acreditar que a imagem corresponde mesmo ao vírus
se souber como o microscópio funciona, ou seja, sou obrigado
a crer em uma sequência grande de suposições,
aproximações e informações que
justificam categoricamente que aquela imagem é mesmo da
tal entidade (o vírus) invisível.
Ora, todas essas coisas adicionais não são obtidas
exclusivamente por meio de observações e, muito
menos, percepções. Elas resultam de estudos em inúmeras
outras ciências que, muitas vezes, nada tem a ver com o
objeto que percebo através do instrumento. Esse conjunto
de raciocínios, aproximações e informações
é conhecido como teoria e constitui elemento fundamental
de uma observação científica:
Uma observação
é um procedimento complexo no qual tanto a percepção
como um prejulgamento de natureza teórica concorrem
para produzir uma afirmação a respeito da coisa
observada, o que inclui sua própria existência,
caso ela não seja percebida pelos sentidos [2c].
Uma maneira de tentar salvar nossa
crença exclusiva nas percepções (o popular
"ver para crer") é justamente só aceitar
como existindo aquilo que é validado por nossas percepções
e rejeitar qualquer coisa que venha por meio de uma teoria. Mas,
ao se fazer isso:
- Somente aquilo que é percebido é real;
- Qualquer observação, para ser válida,
deve ser reduzida a uma percepção.
Portanto, aceitar esse ponto de vista leva a rejeição
de quase tudo que a ciência moderna descobriu. Não
é possível aceitar uma observação
por instrumentos porque elas não envolvem apenas percepções.
Logo, não há como escapar à conclusão:
Ao se aceitar a existência
de entidades não observáveis (os invisíveis)
estamos também obrigatoriamente aceitando a teoria
que postula sua existência e as teorias por meio das quais
os instrumentos de sua observação são validados.
De forma simbólica:

A existência de uma entidade I (invisível)
implica na aceitação da teoria T para a qual I
existe. O oposto também vale: ao se aceitar uma teoria
T para a qual I existe, também aceitamos a existência
de I.
Assim, a imagem do vírus
da Hepatite A (Fig. 1) não
constitui a única prova da existência desse
vírus. De fato, se ela não estivesse disponível,
a medicina ainda acreditaria na existência dos vírus
como entidades necessárias para explicar uma quantidade
grande de patologias. Em ciência muitas vezes não
é necessário que provas sensíveis existam
(de forma a sensibilizar os sentidos humanos, ainda que por meio
de aparelhos) para que as causas dos fenômenos sejam
aceitas.
Esse tipo de postura é chamada realista, mas trata-se
de um tipo específico de realismo que agora nada tem a
ver com o realismo ingênuo das meras percepções.
Assim, por exemplo, tenho toda razão em rejeitar que aquela
imagem seja mesmo a da entidade invisível (o vírus
da Hepatite A na Figura 1) se a teoria que explica como ela é
gerada estiver errada. Isso pode acontecer se o instrumento
de medida estiver com defeito, por exemplo [5].
A maior parte das pessoas aceita a imagem, entretanto, por uma
crença ingênua que dispensa entender os aspectos
teóricos envolvidos.
Por causa de certo preconceito adquirido, nossa tendência
é desejar que o "senso de realidade" das coisas
invisíveis seja o mais parecido possível com aquilo
que percebemos através das percepções. Essas
estão originalmente associadas à maneira primitiva
como nós aprendemos sobre o mundo a nossa volta. Trazemos
uma representação desse mundo na mente que foi inteiramente
adquirida por meio das percepções. Essa representação
é reforçada por estímulos externos que frequentemente
nos alcançam (pelos mesmos sentidos), de forma que tomamos
como real apenas aquilo que nos chegam exatamente por eles.
A dependência de nossa
crença pelas teorias
A conclusão que tiramos
sobre a dependência crucial que a crença em coisas
invisíveis tem da teoria que as postula aumenta consideravelmente
a importância das teorias como mecanismos de apreensão
da realidade a nossa volta.
De fato, uma teoria tem como características
[2c]:
- Uma explicação logicamente suficiente
sobre fatos ou objetos observados,
- O máximo que se pode exigir de uma teoria é
que ela seja compatível com os dados existentes,
- Não necessariamente, uma teoria é uma
explicação "cogente" [4]
do objeto que explica.
Em outras palavras, quando aceitamos
uma teoria como base para a crença na existência
de coisas invisíveis (os não observáveis)
estamos de fato dando um "salto no escuro" porque não
temos meios adicionais (exceto pelos próprios dados disponíveis
que são limitados) de "comprovar" que aquela
teoria é, de fato, verdadeira.

Fig. 2 Síntese dos conceitos descritos
aqui: a observação como resultado das percepções
guiadas com argumentos de natureza teórica que leva ao
conhecimento.
Entretanto, nem tudo o que uma
determinada teoria admite como existindo para explicar um ou mais
fenômenos na Natureza necessariamente tem sua existência
na realidade. Assim a entidade I postulada pode ser apenas um
"instrumento teórico" necessário para
a explicação e nada mais. A questão do realismo
é presentemente um debate com aspectos profundos porque
levanta dúvidas por parte dos que são céticos
dessa postura realista. Entretanto, permanece com grande força
o argumento: se as entidades teóricas postuladas não
existem de alguma forma, como é possível que teorias
científicas tenham tamanho sucesso preditivo?
No próximo post: realismo
e ceticismo.
Referências
[1]
Como
a parapsicologia poderia se tornar uma ciência.
(P. Churchland).
[2] Uma ponto de vista sobre as coisas conhecido como "realismo
do senso comum": somente o que pode ser observado é
"real".
[2b] Há diversas evidências sobre a ação
dos Espíritos em equipamentos eletrônicos. O fenômeno
das "Vozes Eletrônica" é um desses casos
que merecem melhor investigação. Entretanto, salvo
contrário, não se pode deixar de qualificá-los
como um tipo de mediunidade de efeitos físicos que ainda
prescinde da presença humana para sua manifestação.
[2c] Agazzi, E., & Pauri, M. (Eds.). (2000). The reality
of the unobservable: Observability, unobservability and their
impact on the issue of scientific realism (Vol. 215). Introduction
by E. Agazzi e M. Pauri. Springer Science & Business Media.
[3] Eis uma importante face da revolução do renascimento:
a invenção da ciência moderna que viria a
fundamentar a crença na observação (como
definido acima) e na teoria.
[4] Diz-se de um argumento expresso de forma clara e que é
capaz de persuadir as pessoas. Suas premissas são verdadeiras,
mas a conclusão é apenas provavelmente verdadeira.
[5] Nesse caso, a imagem produzida terá sido alterada de
forma mais ou menos substancial por outros fatores que não
fazem parte da "explicação normal" da
teoria do microscópio. É óbvio que uma teoria
verdadeiramente abrangente do microscópio conseguirá
prever inclusive o efeito de fatores que gerem os defeitos.