Carlos Vogt

>   A evolução do homem e a criação de Deus



Artigos, teses e publicações

Carlos Vogt
>   A evolução do homem e a criação de Deus

 


A questão Criacionismo X Evolucionismo tem ganhado espaço na mídia e na imprensa em discussões, polêmicas, artigos, reportagens e opiniões. Esse tema vem sendo ainda reforçado, ultimamente, por visões político-administrativo-religiosas de governos que, por ignorância e/ou interesses laterais, mas prioritários, tomam decisões a favor do obscurantismo, como é o caso dos que proíbem o ensino da teoria evolucionista em escolas públicas e como seria o caso se se proibisse, da mesma forma, o conhecimento do criacionismo, seus fundamentos e seus argumentos de fé e de razão.

Esse fenômeno, que hoje tem no mundo uma certa amplitude e generalização, reflete-se também aqui no Brasil, em particular em algumas situações como a que vive o ensino público no Rio de Janeiro em que a adoção oficial de uma linha criacionista exclusiva cria, para dizer o mínimo, embaraços de clareza ao entendimento e à razão.

Como as questões de fé têm razões que a própria razão desconhece e como a razão tende a se embaraçar consigo mesma, quando se trata da fé na razão e de tentar explicar e entender a razão da fé, não é simples, nem tampouco trivial optar por uma coisa ou outra sem os dogmatismos eclesiásticos ou laicos que tanto ruído causam à convivência das boas perguntas com o esforço sincero da demonstração das respostas apresentadas em bem arquitetadas hipóteses de verdade, de beleza e de bondade, divinas ou humanas, pouco importa, porque sempre formuladas pelo próprio homem.

A pretexto dessa discussão, traduzo aqui, de modo livre e quase que inteiramente, o capítulo LXIX do livro Summing up, de Somerset Maugham, publicado pela primeira vez em 1938, no qual, como o nome em inglês sugere, o autor faz um resumo, uma súmula de sua vida intelectual de escritor.

Por alguns capítulos, o autor discute a questão do sentido da vida, na hipótese de que ela tenha algum, trata de diferentes filósofos e filosofias, de religião, das leituras-guias de sua indagação em busca de respostas e vai consolidando, para si e para o leitor que o acompanha na viagem intelectual, a convicção do agnosticismo afirmado como fecho do capítulo.

O texto aqui traduzido pode contribuir ao debate de dois modos: pela fineza argumentativa e poética de sua construção enunciativa; pela beleza simples e clara do conteúdo enunciado.

"mas ainda não tratei do tema do mal. O problema aumenta quando se considera se Deus existe, e se existe, que natureza lhe deve ser atribuída. Houve um tempo em que, como todo mundo, dediquei-me à literatura dos trabalhos dos físicos. Estava, então, tomado pelo arrebatamento da contemplação das inúmeras distâncias que separam as estrelas e pelos vastos períodos de tempo que sua luz tem de atravessar para chegar até nós. Eu estava entorpecido pela inimaginável extensão das nebulosas. Se entendi direito o que li, devo supor que no começo as duas forças de atração e de repulsão se compensavam de maneira que o universo, por incontáveis eras, permaneceu em perfeito equilíbrio. Então, em algum momento houve um distúrbio e o universo, saindo deste estado de equilíbrio, deu origem ao universo que nos é contado pelos astrônomos e à pequena Terra que conhecemos. Mas o quê causou o ato original de criação e o que transtornou o equilíbrio do universo? Parece inevitável apontar para a concepção de um criador e o que, senão um ser todo poderoso, poderia criar este vasto e estupendo universo? Mas aí o mal do mundo nos força à conclusão de que este ser não pode ser todo poderoso e todo bondade. Justamente um Deus todo poderoso poderia ser acusado pelo mal do mundo, parecendo, assim, absurdo considerá-lo com admiração e tratá-lo com devoção. Mas a razão e o coração se revoltam contra a concepção de um Deus que não seja só bondade. Somos, então, forçados a aceitar a suposição de um Deus que não seja todo poderoso: tal Deus não contém em si mesmo nenhuma explicação para a sua própria existência ou para a existência do universo que ele criou.

um fato singular que quando se lêem os documentos nos quais se fundam as grandes religiões do mundo se observe que através dos tempos se leu neles muito mais do que eles contêm. Seus ensinamentos, seus exemplos criaram um ideal maior do que eles próprios. Muitos de nós ficamos embaraçados quando recebemos cumprimentos e louvaminhas. É estranho que o devoto pense que Deus possa comprazer-se quando faz, sensivelmente, o mesmo com Ele. Quando eu era jovem, tinha um amigo mais velho que me pedia freqüentemente para ficar com ele em sua cidade. Era um homem religioso que lia preces para a família reunida toda manhã. Mas ele tinha rasurado com lápis todas as passagens do Livro das Orações que louvavam a Deus. Ele dizia que não havia nada mais vulgar do que ficar elogiando as pessoas na frente delas próprias e que ele, um cavalheiro também, não podia acreditar que Deus fosse tão deselegante a ponto de gostar disso. Na época, parecia-me uma excentricidade. Hoje penso que meu amigo tinha muito bom senso.

O ser humano é apaixonado, é fraco, é estúpido, é digno de piedade; atrair para ele algo tão tremendo quanto a cólera de Deus parece estranhamente inepto. Não é difícil perdoar nos outros os seus pecados. Quando nos pomos nas suas peles, em geral é fácil ver o que os levou a fazer coisas que não deveriam ter feito e podem se encontrar desculpas para eles. Há um instinto natural de raiva quando algo é feito a alguém que o leva a agir com vingança, e é difícil para quem está envolvido tomar uma atitude de distanciamento; mas uma pequena reflexão permite-nos olhar a situação de fora e com alguma prática é possível perdoar o dano feito por uma pessoa mais do que por outra. É muito mais difícil para as pessoas perdoarem o que se faz contra elas próprias; para isso é preciso, de fato, um poder de espírito muito especial.

Todo artista deseja que acreditem nele, mas não se zanga com aqueles que não aceitam o que ele pretende comunicar. Deus não é tão razoável. Ele anseia tanto ser acreditado que você pode pensar que ele necessita de sua crença para assegurar-se de sua própria existência. Ele promete recompensas àqueles que acreditam nele e ameaça com punições terríveis aqueles que não acreditam. Quanto a mim, não posso acreditar em um Deus que se zanga comigo porque não acredito nele. Não posso crer em um Deus que é menos tolerante do que eu. Não posso acreditar em um Deus que não tem nem humor nem senso comum. Plutarco, há muito tempo atrás, pôs a questão de maneira sucinta. 'Prefiro muito mais que os homens digam de mim que nunca existiu, nem existe um Plutarco, do que digam que Plutarco é um homem inconstante, volúvel, irascível, vingativo por pequenas provocações e aborrecido com bobagens'.

Embora os homens tenham atribuído a Deus imperfeições que eles deplorariam neles próprios isso não prova, contudo, que Deus não existe. Prova apenas que as religiões que os homens aceitaram não são mais que trilhas sem rumo cortadas numa impenetrável floresta, nenhuma delas levando ao coração do grande mistério. Vários argumentos foram aduzidos para provar a existência de Deus, e eu quero pedir ao leitor que seja paciente comigo enquanto os considero aqui de maneira bastante breve. Um deles assume que o homem tem uma idéia de um ser perfeito; e já que a perfeição inclui a existência, então um ser perfeito deve existir. Um outro sustenta que todo acontecimento tem uma causa e uma vez que o universo existe, deve haver uma causa dessa existência e esta causa é o Criador. Um terceiro, o argumento do desígnio, que Kant disse ser o mais claro, o mais antigo e o que melhor se adequa à razão humana é assim afirmado por um dos personagens nos grandes diálogos de Hume: 'a ordem e o arranjo da natureza, o curioso ajuste das causas finais, o uso simples e a intenção de todas as partes e órgãos, tudo isso indica claramente uma causa inteligente ou um Autor.' Mas Kant mostrou de modo conclusivo que não havia nada a dizer a favor desse argumento que não pudesse ser dito dos outros dois. Em seu lugar propôs um outro. Em poucas palavras, trata-se do argumento de que sem Deus não há garantia de que o senso de responsabilidade, que pressupõe um eu livre e real, não é uma ilusão, seguindo-se daí que é moralmente necessário acreditar em Deus. Contudo, isso pode ser creditado, de um modo geral, mais à natureza amigável de Kant do que à sua sutil inteligência. O argumento que me parece mais persuasivo do que todos esses outros é um que agora está em desuso. É conhecido como a prova e consensu gentium. Afirma que todo homem, desde a origem mais remota, tem alguma forma de crença em Deus, e que é difícil imaginar que essa crença que cresceu com a raça humana, aceita pelos sábios do oriente e pelos filósofos da Grécia, os grandes escolásticos, não tenha, de fato, nenhum fundamento. Pareceu a muitos uma crença instintiva e pode ser que assim seja (pode ser, porque nada aqui é seguro) já que um instinto não existe a menos que haja uma possibilidade de que ele seja satisfeito. A experiência tem mostrado que a prevalência de uma crença, não importa por quanto tempo ela tenha se sustentado, não é garantia de sua verdade. Perece, assim, que nenhum dos argumentos para a existência de Deus é válido. Mas, é claro que não se desaprova sua existência porque não se pode prová-la. Respeito e admiração permanecem no sentido de desamparo do homem diante de seu desejo de atingir a harmonia entre si e o universo. Essas, mais do que a adoração da natureza ou a veneração dos ancestrais, mágica ou moralidade, são as fontes da religião. Não há razão para crer que aquilo que se deseja, existe, mas é um exagero dizer que você não tem direito de acreditar naquilo que você não pode provar; não há razão por que você não deva continuar acreditando mesmo advertido de que à sua crença faltam provas. Suponho que se sua natureza é tal que você deseja conforto em suas provações e um amor que o apoie e encoraje, você não procurará provas nem terá necessidade delas. Sua intuição será suficiente.

Misticismo está além das provas e, na verdade, não pede senão uma convicção vivenciada. É independente de credos, pois encontra apoio em todos eles, e é tão pessoal que satisfaz qualquer idiossincrasia. É o sentimento de que o mundo em que vivemos não é senão parte do universo espiritual do qual adquire significância; é o sentido de um Deus presente que nos dá força e nos conforta. Os místicos narraram suas experiências em termos tão freqüentemente similares que não vejo como negar-lhes realidade. De fato, tive eu próprio, numa certa ocasião, uma experiência que só pude descrever com palavras que os místicos usam para descrever seu êxtase. Eu estava sentado em uma mesquita abandonada perto do Cairo quando, de repente, senti-me arrebatado como Ignácio de Loyola sentado às margens do rio em Manresa. Tive um sentido irresistível do poder e da grandeza do universo e um íntimo e estilhaçado sentido de comunhão com ele. Quase posso dizer que senti a presença de Deus. É, sem dúvida, uma sensação bastante comum, e os místicos tiveram o cuidado de valorizá-la somente quando sua influência podia ser claramente vista em seus resultados. Penso que ela pode ser ocasionada por outras causas que não religiosas. Os próprios homens santos admitiram voluntariamente que os artistas podem ter essa experiência e que o amor, como se sabe, pode produzir um estado parecido de tal modo que os místicos se viram na situação de usar frases de homens amorosos para expressar a sua visão beatífica. Não sei se isso é mais misterioso do que a situação, que os psicólogos ainda não explicaram, em que você tem um forte sentimento de que em algum momento do passado você viveu uma experiência parecida com a que você está vivendo. O êxtase do místico é bastante real, mas é válido só para ele. O místico e o cético concordam num ponto, de que ao fim e ao cabo de todos nossos esforços intelectuais permanece um grande mistério.

Diante disso, extasiado pela imensidão do universo e descontente com o que os filósofos me contaram e também os santos, fui, algumas vezes, para além de Maomé, de Jesus, de Buda, dos deuses da Grécia, de Jeová, de Baal, até os brâmanes dos Upanishads. Esse espírito, se espírito puder ser chamado, auto-criado e independente de qualquer outra existência, embora tudo que exista, existe nele, única fonte da vida em tudo que vive, tem pelo menos uma grandeza que satisfaz a imaginação. Mas estive muito tempo ocupado com palavras para não desconfiar delas e ao olhar para essas que escrevi não posso deixar de concordar que seu sentido é muito tênue. Em religião, acima de todas as coisas, a única coisa que importa é uma verdade objetiva. O único Deus que conta é um ser que é pessoal, supremo e bom e cuja existência seja tão certa quanto dois e dois são quatro. Não posso penetrar o mistério. Permaneço um agnóstico, e a conseqüência prática do agnosticismo é que você age como se Deus não existisse."



Fonte: http://www.comciencia.br/200407/reportagens/01.shtml





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