A questão Criacionismo X Evolucionismo tem ganhado
espaço na mídia e na imprensa em discussões, polêmicas,
artigos, reportagens e opiniões. Esse tema vem sendo ainda reforçado,
ultimamente, por visões político-administrativo-religiosas
de governos que, por ignorância e/ou interesses laterais, mas
prioritários, tomam decisões a favor do obscurantismo,
como é o caso dos que proíbem o ensino da teoria evolucionista
em escolas públicas e como seria o caso se se proibisse, da mesma
forma, o conhecimento do criacionismo, seus fundamentos e seus argumentos
de fé e de razão.
Esse fenômeno, que hoje tem no mundo uma certa
amplitude e generalização, reflete-se também aqui
no Brasil, em particular em algumas situações como a que
vive o ensino público no Rio de Janeiro em que a adoção
oficial de uma linha criacionista exclusiva cria, para dizer o mínimo,
embaraços de clareza ao entendimento e à razão.
Como as questões de fé têm razões
que a própria razão desconhece e como a razão tende
a se embaraçar consigo mesma, quando se trata da fé na
razão e de tentar explicar e entender a razão da fé,
não é simples, nem tampouco trivial optar por uma coisa
ou outra sem os dogmatismos eclesiásticos ou laicos que tanto
ruído causam à convivência das boas perguntas com
o esforço sincero da demonstração das respostas
apresentadas em bem arquitetadas hipóteses de verdade, de beleza
e de bondade, divinas ou humanas, pouco importa, porque sempre formuladas
pelo próprio homem.
A pretexto dessa discussão, traduzo aqui, de
modo livre e quase que inteiramente, o capítulo
LXIX do livro Summing up, de Somerset Maugham, publicado pela
primeira vez em 1938, no qual, como o nome em inglês sugere, o
autor faz um resumo, uma súmula de sua vida intelectual de escritor.
Por alguns capítulos, o autor discute a questão
do sentido da vida, na hipótese de que ela tenha algum, trata
de diferentes filósofos e filosofias, de religião, das
leituras-guias de sua indagação em busca de respostas
e vai consolidando, para si e para o leitor que o acompanha na viagem
intelectual, a convicção do agnosticismo afirmado como
fecho do capítulo.
O texto aqui traduzido pode contribuir ao debate de
dois modos: pela fineza argumentativa e poética de sua construção
enunciativa; pela beleza simples e clara do conteúdo enunciado.
"mas ainda não tratei do tema do mal. O
problema aumenta quando se considera se Deus existe, e se existe, que
natureza lhe deve ser atribuída. Houve um tempo em que, como
todo mundo, dediquei-me à literatura dos trabalhos dos físicos.
Estava, então, tomado pelo arrebatamento da contemplação
das inúmeras distâncias que separam as estrelas e pelos
vastos períodos de tempo que sua luz tem de atravessar para chegar
até nós. Eu estava entorpecido pela inimaginável
extensão das nebulosas. Se entendi direito o que li, devo supor
que no começo as duas forças de atração
e de repulsão se compensavam de maneira que o universo, por incontáveis
eras, permaneceu em perfeito equilíbrio. Então, em algum
momento houve um distúrbio e o universo, saindo deste estado
de equilíbrio, deu origem ao universo que nos é contado
pelos astrônomos e à pequena Terra que conhecemos. Mas
o quê causou o ato original de criação e o que transtornou
o equilíbrio do universo? Parece inevitável apontar para
a concepção de um criador e o que, senão um ser
todo poderoso, poderia criar este vasto e estupendo universo? Mas aí
o mal do mundo nos força à conclusão de que este
ser não pode ser todo poderoso e todo bondade. Justamente um
Deus todo poderoso poderia ser acusado pelo mal do mundo, parecendo,
assim, absurdo considerá-lo com admiração e tratá-lo
com devoção. Mas a razão e o coração
se revoltam contra a concepção de um Deus que não
seja só bondade. Somos, então, forçados a aceitar
a suposição de um Deus que não seja todo poderoso:
tal Deus não contém em si mesmo nenhuma explicação
para a sua própria existência ou para a existência
do universo que ele criou.
um fato singular que quando se lêem os documentos
nos quais se fundam as grandes religiões do mundo se observe
que através dos tempos se leu neles muito mais do que eles contêm.
Seus ensinamentos, seus exemplos criaram um ideal maior do que eles
próprios. Muitos de nós ficamos embaraçados quando
recebemos cumprimentos e louvaminhas. É estranho que o devoto
pense que Deus possa comprazer-se quando faz, sensivelmente, o mesmo
com Ele. Quando eu era jovem, tinha um amigo mais velho que me pedia
freqüentemente para ficar com ele em sua cidade. Era um homem religioso
que lia preces para a família reunida toda manhã. Mas
ele tinha rasurado com lápis todas as passagens do Livro das
Orações que louvavam a Deus. Ele dizia que não
havia nada mais vulgar do que ficar elogiando as pessoas na frente delas
próprias e que ele, um cavalheiro também, não podia
acreditar que Deus fosse tão deselegante a ponto de gostar disso.
Na época, parecia-me uma excentricidade. Hoje penso que meu amigo
tinha muito bom senso.
O ser humano é apaixonado, é fraco, é
estúpido, é digno de piedade; atrair para ele algo tão
tremendo quanto a cólera de Deus parece estranhamente inepto.
Não é difícil perdoar nos outros os seus pecados.
Quando nos pomos nas suas peles, em geral é fácil ver
o que os levou a fazer coisas que não deveriam ter feito e podem
se encontrar desculpas para eles. Há um instinto natural de raiva
quando algo é feito a alguém que o leva a agir com vingança,
e é difícil para quem está envolvido tomar uma
atitude de distanciamento; mas uma pequena reflexão permite-nos
olhar a situação de fora e com alguma prática é
possível perdoar o dano feito por uma pessoa mais do que por
outra. É muito mais difícil para as pessoas perdoarem
o que se faz contra elas próprias; para isso é preciso,
de fato, um poder de espírito muito especial.
Todo artista deseja que acreditem nele, mas não
se zanga com aqueles que não aceitam o que ele pretende comunicar.
Deus não é tão razoável. Ele anseia tanto
ser acreditado que você pode pensar que ele necessita de sua crença
para assegurar-se de sua própria existência. Ele promete
recompensas àqueles que acreditam nele e ameaça com punições
terríveis aqueles que não acreditam. Quanto a mim, não
posso acreditar em um Deus que se zanga comigo porque não acredito
nele. Não posso crer em um Deus que é menos tolerante
do que eu. Não posso acreditar em um Deus que não tem
nem humor nem senso comum. Plutarco, há muito tempo atrás,
pôs a questão de maneira sucinta. 'Prefiro muito mais que
os homens digam de mim que nunca existiu, nem existe um Plutarco, do
que digam que Plutarco é um homem inconstante, volúvel,
irascível, vingativo por pequenas provocações e
aborrecido com bobagens'.
Embora os homens tenham atribuído a Deus imperfeições
que eles deplorariam neles próprios isso não prova, contudo,
que Deus não existe. Prova apenas que as religiões que
os homens aceitaram não são mais que trilhas sem rumo
cortadas numa impenetrável floresta, nenhuma delas levando ao
coração do grande mistério. Vários argumentos
foram aduzidos para provar a existência de Deus, e eu quero pedir
ao leitor que seja paciente comigo enquanto os considero aqui de maneira
bastante breve. Um deles assume que o homem tem uma idéia de
um ser perfeito; e já que a perfeição inclui a
existência, então um ser perfeito deve existir. Um outro
sustenta que todo acontecimento tem uma causa e uma vez que o universo
existe, deve haver uma causa dessa existência e esta causa é
o Criador. Um terceiro, o argumento do desígnio, que Kant disse
ser o mais claro, o mais antigo e o que melhor se adequa à razão
humana é assim afirmado por um dos personagens nos grandes diálogos
de Hume: 'a ordem e o arranjo da natureza, o curioso ajuste das causas
finais, o uso simples e a intenção de todas as partes
e órgãos, tudo isso indica claramente uma causa inteligente
ou um Autor.' Mas Kant mostrou de modo conclusivo que não havia
nada a dizer a favor desse argumento que não pudesse ser dito
dos outros dois. Em seu lugar propôs um outro. Em poucas palavras,
trata-se do argumento de que sem Deus não há garantia
de que o senso de responsabilidade, que pressupõe um eu livre
e real, não é uma ilusão, seguindo-se daí
que é moralmente necessário acreditar em Deus. Contudo,
isso pode ser creditado, de um modo geral, mais à natureza amigável
de Kant do que à sua sutil inteligência. O argumento que
me parece mais persuasivo do que todos esses outros é um que
agora está em desuso. É conhecido como a prova e consensu
gentium. Afirma que todo homem, desde a origem mais remota, tem alguma
forma de crença em Deus, e que é difícil imaginar
que essa crença que cresceu com a raça humana, aceita
pelos sábios do oriente e pelos filósofos da Grécia,
os grandes escolásticos, não tenha, de fato, nenhum fundamento.
Pareceu a muitos uma crença instintiva e pode ser que assim seja
(pode ser, porque nada aqui é seguro) já que um instinto
não existe a menos que haja uma possibilidade de que ele seja
satisfeito. A experiência tem mostrado que a prevalência
de uma crença, não importa por quanto tempo ela tenha
se sustentado, não é garantia de sua verdade. Perece,
assim, que nenhum dos argumentos para a existência de Deus é
válido. Mas, é claro que não se desaprova sua existência
porque não se pode prová-la. Respeito e admiração
permanecem no sentido de desamparo do homem diante de seu desejo de
atingir a harmonia entre si e o universo. Essas, mais do que a adoração
da natureza ou a veneração dos ancestrais, mágica
ou moralidade, são as fontes da religião. Não há
razão para crer que aquilo que se deseja, existe, mas é
um exagero dizer que você não tem direito de acreditar
naquilo que você não pode provar; não há
razão por que você não deva continuar acreditando
mesmo advertido de que à sua crença faltam provas. Suponho
que se sua natureza é tal que você deseja conforto em suas
provações e um amor que o apoie e encoraje, você
não procurará provas nem terá necessidade delas.
Sua intuição será suficiente.
Misticismo está além das provas e, na
verdade, não pede senão uma convicção vivenciada.
É independente de credos, pois encontra apoio em todos eles,
e é tão pessoal que satisfaz qualquer idiossincrasia.
É o sentimento de que o mundo em que vivemos não é
senão parte do universo espiritual do qual adquire significância;
é o sentido de um Deus presente que nos dá força
e nos conforta. Os místicos narraram suas experiências
em termos tão freqüentemente similares que não vejo
como negar-lhes realidade. De fato, tive eu próprio, numa certa
ocasião, uma experiência que só pude descrever com
palavras que os místicos usam para descrever seu êxtase.
Eu estava sentado em uma mesquita abandonada perto do Cairo quando,
de repente, senti-me arrebatado como Ignácio de Loyola sentado
às margens do rio em Manresa. Tive um sentido irresistível
do poder e da grandeza do universo e um íntimo e estilhaçado
sentido de comunhão com ele. Quase posso dizer que senti a presença
de Deus. É, sem dúvida, uma sensação bastante
comum, e os místicos tiveram o cuidado de valorizá-la
somente quando sua influência podia ser claramente vista em seus
resultados. Penso que ela pode ser ocasionada por outras causas que
não religiosas. Os próprios homens santos admitiram voluntariamente
que os artistas podem ter essa experiência e que o amor, como
se sabe, pode produzir um estado parecido de tal modo que os místicos
se viram na situação de usar frases de homens amorosos
para expressar a sua visão beatífica. Não sei se
isso é mais misterioso do que a situação, que os
psicólogos ainda não explicaram, em que você tem
um forte sentimento de que em algum momento do passado você viveu
uma experiência parecida com a que você está vivendo.
O êxtase do místico é bastante real, mas é
válido só para ele. O místico e o cético
concordam num ponto, de que ao fim e ao cabo de todos nossos esforços
intelectuais permanece um grande mistério.
Diante disso, extasiado pela imensidão
do universo e descontente com o que os filósofos me contaram
e também os santos, fui, algumas vezes, para além de Maomé,
de Jesus, de Buda, dos deuses da Grécia, de Jeová, de
Baal, até os brâmanes dos Upanishads. Esse espírito,
se espírito puder ser chamado, auto-criado e independente de
qualquer outra existência, embora tudo que exista, existe nele,
única fonte da vida em tudo que vive, tem pelo menos uma grandeza
que satisfaz a imaginação. Mas estive muito tempo ocupado
com palavras para não desconfiar delas e ao olhar para essas
que escrevi não posso deixar de concordar que seu sentido é
muito tênue. Em religião, acima de todas as coisas, a única
coisa que importa é uma verdade objetiva. O único Deus
que conta é um ser que é pessoal, supremo e bom e cuja
existência seja tão certa quanto dois e dois são
quatro. Não posso penetrar o mistério. Permaneço
um agnóstico, e a conseqüência prática do agnosticismo
é que você age como se Deus não existisse."
Fonte:
http://www.comciencia.br/200407/reportagens/01.shtml
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