O julgamento de Jesus, foi um intrigante
paradoxo, na medida em que constitui uma indecorosa farsa da Justiça
dos homens e quanto a excelência da legislação
judaica primava justamente pelo absoluto respeito aos direitos fundamentais
da criatura humana, mediante postulados processuais teóricos
que até hoje inspiram os modernos ordenamentos penais.
Classificar simplesmente de injusto o que aconteceu com o maior Nobel
da Paz de todos os tempos - que foi Jesus, o Mestre Amado - seria
muito pouco. Tentar entender o porque daquele julgamento bestial seria
pura perda de tempo, pois nem mesmo a idiotia humana justificaria,
por si só, tamanha crueldade com um justo daquela magnitude.
Entre nós, quem melhor analisou o julgamento de Jesus, à
luz do Direito Romano, foi Ruy Barbosa, em comentário pouco
conhecido, publicado em 1899, sob o título O Justo e a Justiça
Política:
"De Anás a Herodes,
o julgamento de Cristo é o espelho de todas as deserções
da justiça".
Derradeiramente, enquanto não
se desvendam argumentos melhor raciocinados para explicar o suplício
do Gólgota, só restaria, em face do atual estágio
de conhecimento da Humanidade, o convencimento puro e simples de que
as anotações proféticas tinham de ser cumpridas,
tal qual analisara Kardec.
Conversando sobre o assunto com o ilustre escritor espírita
Hermínio Miranda, dele ouvi a conclusão simples, mas
perfeita, de que o pior e mais grave equívoco do Grande Sinédrio,
ainda é, sob o ponto de vista religioso de nossa Doutrina Espírita
"uma questão inexplicada, mas não inexplicável"
(o que é bem diferente), pois Jesus, até aqui, transcende
a capacidade humana para entendê-Lo em toda a sua profundidade
espiritual, considerando-se que para a Doutrina Espírita o
Sábio de Cafarnaum não veio em processo expiatório,
nem tampouco para nos salvar do pecado, mas, sim, como dito, para
implantar - mediante o fundamento irresistível do Amor as leis
morais no Planeta e, por isso, sofreu a brutal incompreensão
humana.
Para que possamos nos situar no tempo e entender esse incrível
julgamento de Jesus, é preciso primeiramente lembrar que Israel
era uma teocracia em que o Poder do Estado era confundido institucionalmente
com o Poder Espiritual dos Sumos Sacerdotes.
Vejamos como tal condenação alcançou esses limites
do incompreensível, tratando-se das origens do melhor Direito
que a Humanidade já produziu, tanto que até hoje seus
princípios jurídicos são copiados pelas legislações
modernas de proteção aos direitos fundamentais da criatura
humana, como é o caso da Quinta Emenda à Constituição
dos EUA, que permite ao indiciado permanecer em silêncio, de
modo a que não seja testemunha contra si próprio.
O Grande Sinédrio, assim chamada a Corte de Justiça
Suprema dos Judeus, era a única competente para conhecer e
julgar crimes apenados com a pena capital. Esse Tribunal, cuja criação
original se atribui a Moisés, constituía-se de uma Câmara
Religiosa, com 23 sacerdotes; uma Câmara legal, com 23 escribas
e uma Câmara Popular com 23 anciãos, que era a cúpula
de sabedoria da Corte. Escribas, anciãos e sacerdotes eram,
portanto, os julgadores do Grande Sinédrio, que atuavam, ora
como juizes, ora como jurados.
A seleção desses membros, que não poderiam ter
menos de 40 anos de idade, era extremamente rigorosa. Não bastava
o juiz ser íntegro, mas tinha de parecer íntegro.
Com Jesus verificou-se justamente o que o legislador da Lei Rabínica
queria evitar, a todo custo - ou seja, uma conspiração
contra o Réu - quando o protegeu com o direito de defesa, já
então considerado sagrado. Sua prisão ocorreu à
noite - primeira violação da lei dos judeus - por uma
delação caluniosa e, portanto, delituosa, de Judas Iscariotes.
Mediante essa simples acusação criminosa, sem provas
e sem qualquer direito de defesa - segunda infringência dos
códigos legais de então - sem ordem formal de prisão
- terceira ilegalidade - os guardas romanos detiveram Jesus no Jardim
de Gethssemane e o conduziram ao Grande Sinédrio. Ali, na calada
da noite - quarta arbitrariedade, pois segundo a norma legal então
vigente Jesus somente poderia ser julgado à luz do dia - transcorreu
Seu julgamento.
Segundo os registros históricos, não havia qualquer
audiência prévia designada para a leitura de acusação
- quinta inobservância da lei. Os testemunhos falsos, que permaneceram
impunes, se multiplicavam. O evangelista Marcos conta que finalmente
duas testemunhas se apresentaram, porém com depoimentos contraditórios,
tornando seus testemunhos nulos de pleno direito: uma dissera que
ouvira Jesus declarar que era capaz, de destruir o templo e a outra
que iria destruí-lo. Esses precários testemunhos - absolutamente
rejeitados pela Lei Rabínica - foram decisivos para a condenação
de Jesus. Sexta injustiça em face da lei.
Alguns juizes, que por dever legal deveriam respeitar o princípio
de presunção da inocência, diante de qualquer
acusado, tutelando o réu, acabaram violando impunemente essa
regra do Estado judeu, ao forçar Jesus a fazer uma confissão,
com a agravante de não disporem de provas, nem tampouco de
acusação formal contra Ele. Assim, por exemplo, fê-lo
o Sumo Sacerdote e juiz Caifás, que parecia ensandecido no
afã de incriminar Jesus: És o Cristo, filho de Deus?
- insinuava ele com absoluta parcialidade.
Sétima injustiça legal. Não obstante esses gritantes
erros jurídicos "in procedendo", Jesus foi surpreendentemente
declarado culpado pela unanimidade dos juizes.
Levado ao Governador da Judéia, Pôncio Pilatos - que
teria o poder - mais que isso, o dever institucional - de anular um
julgamento calcado indevidamente em tantos vícios processuais,
o Mestre sofre a oitava arbitrariedade.
Do princípio ao fim de sua avaliação, Pilatos
não vê qualquer culpa em Jesus:
"que acusação
me trazem contra esse homem"
Ao que obtiveram resposta nitidamente
aleatória:
"se não fosse culpado
não o trairíamos".
Irritado Pilatos devolve:
"Ide e julgai-o na forma da
vossa lei".
Mas os Sumos Sacerdotes prontamente
replicaram:
"isso não podemos fazer,
pois não nos é permitido matar ninguém."
Percebendo que Pilatos estava irredutível,
os Sumos Sacerdotes, resolveram, então, inventar, naquele momento,
uma mentira horripilante, cruelmente imaginada naqueles tempos ainda
distantes da teoria maquiavélica: que Jesus exercera uma traição
contra César. E foi aí que Pilatos hesitou. Como iria
ele permitir o sacrifício de um inocente, colocando em risco
seu próprio cargo? Com efeito, uma denúncia do Grande
Sinédrio a César poderia, em sua presumida avaliação,
ser fatal.
Afinal, ameaçavam os Sumos Sacerdotes:
"Se vieres a soltar este homem,
não serás amigo de César."
Em face dessa denúncia, que
sabia mentirosa, Pilatos resolveu entregar a responsabilidade do julgamento
ao todo poderoso e destemido Herodes Antipas, o tetrarca da Galiléia,
que estava em Jerusalém para as festividades da Páscoa.
Diante do Imperador, Jesus preferiu exercer o sagrado direito que
lhe conferia a Lei judaica, de permanecer em silêncio, o que
levou Herodes a devolver o acusado a Pilatos, que continuou enfático:
"Não encontro nesse
homem nenhuma culpa do que o acusais".
O ordenamento jurídico dos
romanos exigia nesse caso que a sentença capital fosse formalmente
anulada pelo Governador e o inocente imediatamente liberado.
Pilatos, que concentraria a nona injustiça sofrida por Jesus,
resolveu perguntar quem queria que fosse anistiado, Jesus, ou Barrabás,
pois o costume da época permitia que o povo anistiasse um condenado
à morte na Páscoa.
Mas não teve jeito. Em face dos gritos que se ouvia, Barrabás!
Barrabás! - o ladrão a quem pretendiam beneficiar com
a anistia - Pilatos indagou à enlouquecida multidão
o que faria de Jesus, ao que imediatamente esbravejaram:
Crucifica-o!
Crucifica-o!
O Governador da Judéia, então,
toma uma bacia de água para lavar as mãos e, assim,
sentencia contra todos os princípios legais dos romanos - cometendo
um crime de responsabilidade por abuso de poder, pois não obstante
declarar que "estou inocente do sangue deste justo", autorizou
a execução da sentença de morte.
O julgamento de Jesus foi, como se demonstrou, uma deslavada farsa,
a evidenciar que os textos legais, isolada e primorosamente elaborados
e aprovados, não haverão de ensejar a realização
da justiça dos homens, que, de resto, depende, isto sim, da
Ética reinante na cultura de um povo, pouco importando nesse
sentido a excelência dos ordenamentos jurídicos, como
nos mostra o mais importante e injusto do julgamento da História
dos Homens, que até hoje constitui questão aberta para
a exata compreensão da criatura humana nos limites da fé
raciocinada a que nos concitou Allan Kardec.