Valéria Cristina
Vilhena
Teóloga, é mestra em ciências
das religiões e doutora em educação e história
da cultura; fundadora do coletivo Mulheres EIG - Evangélicas
pela Igualdade de Gênero
Precisamos dialogar mais sobre Estado
laico. Sobretudo, compreender melhor que dialogar não é
somente falar, mas também ouvir com atenção e
ter empatia pelas realidades que atravessam o diálogo. O Estado
precisa ser o "ente subsidiário" que dialoga com
a sociedade, inclusive com o campo religioso. Segundo dados do Censo
de 2010 sobre religião no Brasil, cristãos são
86,8%.
Todavia, para o tema, trago aqui um
exemplo recente do futebol europeu sobre esse "ente" laico,
o Estado. A Federação Francesa de Futebol comunicou
seu corpo de arbitragem que não deveria pausar as partidas
para permitir que jogadores muçulmanos quebrassem o jejum durante
o Ramadã, o mês sagrado. No futebol inglês, a decisão
foi inversa e permitiu que as partidas da Premier League possam fazer
uma parada técnica para os jogadores muçulmanos cumprirem
seus preceitos religiosos.
A resposta oficial da federação francesa foi: "A
ideia é que haja um tempo para tudo. Um tempo para fazer esporte,
um tempo para praticar a religião", afirmou Eric Borghini,
chefe da comissão de arbitragem. Como primeira impressão,
diria que a resposta foi coerente. Entretanto, demonstrou pouco conhecimento
de religião e, consequentemente, das pessoas religiosas; logo,
conhece pouco da humanidade. Borghini primou pela obediência
à regra da laicidade francesa, e acrescentou: "Ninguém
se importa que eles não façam isso. Porque não
estamos em um país muçulmano. Você tem que aceitar
o país em que vive".
Liberdade religiosa é direito
fundamental. É sem limites? Não. Mas ela está
no mesmo contexto que exige de nós capacidade de reconhecer
e respeitar a diversidade humana e a pluralidade cultural que compõem
o nosso país. Há uma tensão ambivalente entre
inúmeros levantes reacionários e capilarizados na sociedade
contra conquistas democráticas. Temos agentes públicos,
representantes do Estado e tantas outras forças sociais em
defesa peremptória da democracia e laicidade do Estado.
Contudo, em meio a esse esgarçamento
social, estão muitas pessoas religiosas que não reconhecem,
na religião, esse tipo de força a ser disputada, já
que muita gente nem alcançou a vida digna. Portanto, exercer
a religiosidade significa potência para suportar as agruras
da vida, significa estar em rede de apoio mútuo, ter suporte
emocional, espiritual, financeiro - mesmo em meio a muitas contradições.
A sociedade brasileira está cansada e adoecida. A religião
fornecerá ainda mais sentido de vida e para a vida a muito
mais pessoas. Projetos políticos deixaram muita gente com fome
ou na insegurança alimentar, desabrigadas, endividadas, desesperadas.
O tamanho da orfandade pela pandemia e pelo feminicídio é
enorme em nosso país. Passamos por uma grave crise sanitária,
na qual fomos jogados como rebanho sem pastoreio.
O Estado laico deve ser o sustentador da pluralidade de credos, opiniões
e convicções religiosas - ou da ausência desta
na vida de nossa gente. Essa sustentação o diferencia
do conceito de um Estado ateu, no qual incorporaria ao regime político
a não crença na existência de Deus ou de alguma
outra divindade ou entidade espiritual.
Encerro retomando o caso da França. A federação
de futebol escolheu ser inflexível, optou pela segurança
das regras ao se manifestar contrária ao diálogo. Poderia
ter aprendido com a liga inglesa, que negociou e combinou deixar o
banco de reservas em prontidão para receber seus colegas muçulmanos
com fruta e água —e, assim, poderiam eles entregar o
jejum em oração para posteriormente retornarem ao jogo.
Nesse sentido, pergunto: não teriam faltado
diálogo e compreensão sobre a importância da religião
como força social? Não houve preconceito em entender
que a religião pode ser promotora de sentido de vida? Faltou
reconhecer que a religião, como qualquer outro aspecto da cultura,
molda e media subjetividades.