Educar crianças para que elas
compreendam e obedeçam às regras da convivência
é um desafio enfrentado por pais, escola e sociedade em geral.
A tríade punição-premiação-educação
está na raiz da aprendizagem social e sua discussão
é considerada sempre pertinente. Para pesquisadores, as mudanças
na família e na sociedade contemporâneas ainda não
resultaram em uma configuração das relações
entre educar e punir. A questão dos limites volta-se para os
próprios pais e escola: a educação deve privilegiar
o diálogo com crianças e adolescentes aos invés
de punições, especialmente as corporais.
Os pais modernos têm tido dificuldades
para conseguir impor limites e educar os seus filhos. Exemplo disto
é o sucesso do programa Super Nanny (ou Super Babá,
em português). O reality show britânico tem sua trama
baseada em uma babá disciplinadora que visita casas de famílias
em que os pequenos controlam, mandam e desmandam em seus pais. Jo
passa uma semana com as crianças e ensina aos pais como conseguirem
impor respeito e criar regras sem bater ou alterar a voz. Ela apresenta
técnicas para coordenar brincadeiras, fazer com que os pequenos
obedeçam os horários de dormir etc. No show seu disciplinamento
baseado no diálogo e compreensão mútua funciona
muito bem.
Edilza Ribeiro é professora
de enfermagem na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) e conduziu
um projeto na unidade de pediatria no hospital universitário,
criando oficinas de diálogo com a comunidade. Uma delas focou
na discussão de como os pais trabalham, no seu processo educativo,
as questões com as quais eles não concordam, como punem
e se lançam mão de castigos físicos. “Sinto
os pais um pouco perdidos. A família mudou, convive menos,
tem mais estresse, tem menos pessoas para ajudar nas tarefas e a mulher
não é mais a cuidadora oficial da família. Há
um distanciamento maior entre pais e filhos. Os pais podem não
conseguir acompanhar a tecnologia, nem mesmo saber ao que os filhos
têm acesso. Nem a família e nem a sociedade têm
encontrado formas punitivas que sejam significativas e produzam efeito
nessa nova família”, afirma ela.
A diminuição no número
de filhos é um outro ponto levantado por Ribeiro. O estresse
aumentou devido a essa preciosidade que a criança ganhou. “Este
modelo tem levado a essa preponderância da vontade da criança.
É por isso que na Super Nanny, existem crianças de 5,
6 anos que controlam a vida familiar. Os adultos deixaram de ser adultos,
os pais deixaram de cumprir os seus papéis e não atendem
mais às necessidades das crianças, mas sim aos seus
desejos” conclui. O trabalho dela aponta que é justamente
nessa somatória que o castigo físico persiste, pois
ele cessa imediatamente um comportamento indesejável e é
fácil de aplicar, ao contrário do diálogo, que
demanda tempo e convivência.
“Palmada já era”
O Laboratório de Estudos da
Criança (Lacri), do Instituto de Psicologia da USP, pesquisa
a problemática da infância em geral, em especial temas
como a educação infantil e a violência doméstica.
Maria Amélia Azevedo, junto com outros pesquisadores do Lacri,
publicou diversos livros, como Mania de bater e Palmada
já era, que abordam o tema da violência doméstica
e a educação.
Maria Amélia acredita que a
punição é um recurso que deve ser usado como
exceção. Ela defende um modelo de diálogo entre
pais e filhos que aja preventivamente, ou seja, antes que seja necessária
uma punição. “Eu sou absolutamente contrária
à punição corporal, ou qualquer tipo de castigo
que humilhe as pessoas. Minha perspectiva da criança é
otimista. Ela é um ser com possibilidades e que, bem conduzido,
de uma forma que se sinta valorizado, pode aprender qualquer coisa,
inclusive a se comportar socialmente. Sou a favor da punição
pedagógica, que significa lidar com as conseqüências
dos seus atos”, defende a pesquisadora.
Junto com a deputada Maria do Rosário,
a pesquisador foi autora do Projeto de Lei No. 2654/2003, ainda em
trâmite no Congresso, que ficou conhecida como “Lei da
Palmada”. O texto classifica como crime qualquer forma de punição
corporal contra crianças, seja no lar ou na escola, e prevê
punições contra os pais, assim como a perda da guarda
dos filhos para “o pai, ou a mãe que castigar imoderadamente
o filho”.
No livro Palmada já era,
Maria Amélia apresenta 12 alternativas à punição
corporal, levantadas em entrevistas com cerca de 500 crianças
de 9 a 12 anos, alunas de escolas de São Bernardo do Campo.
As crianças foram perguntadas sobre como é que elas
poderiam ser educadas sem apanhar, mesmo quando elas apresentam maus
modos, recusa de ir a escola, mentira, bagunça etc. “O
meu trabalho levantou as sugestões das próprias crianças.
As crianças devem aprender pelo diálogo que elas estão
erradas. A palmada é violência. É preciso criar
um castigo significativo e pedagógico, por exemplo, se ela
copia um trabalho escolar, ela deve refazê-lo, perdendo o seu
tempo de lazer e aprendendo a lidar com as conseqüências
de seus erros”, diz a pesquisadora. O livro defende uma criação,
em conjunto entre pais e filhos, de regras, com direitos e deveres
de cada e afirma que ao participar dessa criação, as
crianças criam uma predisposição para obedecê-las.
A punição corporal é
abominada por ambas as pesquisadoras. Edilza Ribeiro aponta os riscos
desse tipo de punição. “A problemática
do castigo físico é colocar as pessoas que o aplicam
em um nível de adrenalina e estresse altíssimo. Eu acho
que ele deve ser combatido e reduzido até que ele seja zero.
O castigo físico é uma escada. Ele tem um degrau, o
segundo degrau etc. E quando você está no décimo
degrau, já não existe autocensura e a pessoa não
se escandaliza mais. É aí que ocorrem as agressões”
descreve ela.
Maria Amélia tem uma postura
ainda mais agressiva contra o castigo corporal:. “Bater num
adulto é agressão, num animal é crueldade, como
você pode dizer que bater numa criança é educação?
Não sou contra punição, em certas situações
é necessário você usar medidas de contenção.
Mas, sem degradar, nem humilhar. A criança deve entender porque
está sendo punida. O ser humano fala e dialoga e assim transmite
valores. A palmada é o caminho do curto-circuito”, argumenta.
Na escola, o dilema da disciplina
A pedagoga Áurea Guimarães,
professora da Faculdade de Educação da Unicamp, cita
Freud e sua célebre frase, “sem repressão não
há civilização”, para exemplificar como
o ato de educar é uma necessidade da vida em sociedade.
Áurea defende que a escola
seja um espaço propício à discussão. “É
preciso ensinar a criança a relação entre o ‘eu'
e o ‘mundo', fazer com que ela reflita sobre em que medida aquilo
que ela quer afeta os outros. Isto é um exercício, é
uma prática social”, afirma a pesquisadora. Segundo ela,
a instituição da escola não tem conseguido ser
um espaço fomentador dessa reflexão. Quando existe a
punição, como suspensões, advertências
e até expulsões, elas têm um caráter muito
mais exemplar, do que reflexivo. “A criança deixa de
fazer algo por medo, não por compreender o certo e o errado”
conclui.
A temática da pesquisa da pedagoga
é a depredação e a violência na escola.
Ela conta que seu interesse pelo tema surgiu ao visitar escolas públicas
na cidade de Campinas, São Paulo, onde havia algumas muito
depredadas e outras bem conservadas. Ao desenvolver o estudo, ela
pôde perceber que quanto mais disciplinador era o regime, menos
havia depredação do patrimônio escolar. “A
depredação surge não como uma revolta à
disciplina, mas sim como uma tentativa de chamar a atenção.
Pois nas escolas com um regime disciplinar muito frouxo, a sensação
não era de liberdade, mas, de descaso e abandono”, conta
Áurea.
Infelizmente, ela avalia que a escola,
no momento atual, está sendo incapaz de ajudar nessa construção
de um censo crítico. O número de escolas em estado de
abandono é muito maior do que as com um disciplinamento mais
presente, e os casos de indisciplina aumentam vertiginosamente, devido
a falta de limites. Ela aponta que quando há escolas com maior
ordem e disciplina, isto é fruto muito mais de iniciativas
individuais do que do Estado. “Há, por exemplo, uma escola
do Jardim Ângela, um dos bairros mais violentos de São
Paulo, onde o diretor fez um trabalho, seguindo a linha do Paulo Freire,
envolveu a comunidade, os pais, a sua equipe e teve um ótimo
resultado. A escola evoluiu de uma aparência de destroços
de guerra para um lugar limpo, organizado e disciplinado”, exemplifica.
A falta de medidas que envolvam um
projeto pedagógico para toda a escola é o grande erro,
segundo Áurea. Ela afirma que de nada adianta cada professor
tentar disciplinar de uma maneira. Essa desordem pinta o cenário
atual, em que os professores não conseguem impor limites aos
alunos, chegando a casos extremos de até terem medo deles.