Moisés Sbardelotto entrevista Frank
Usarski
Em razão do seu recente estudo sobre
o Budismo, Frank Usarski foi o primeiro intelectual a receber
o título de livre-docente em Ciência da Religião
no Brasil. Nascido na Alemanha, chegou ao Brasil, em 1998, e,
desde então, faz parte do Programa de Pós-Graduação
em Ciências da Religião da Pontifícia Universidade
Católica de São Paulo – PUC-SP. Como resultado
de sua pesquisa, foi publicado o livro O Budismo e as outras.
Encontros e desencontros entre as grandes religiões mundiais
(Aparecida: Ideias & Letras, 2009).
Conforme as palavras do presidente da banca que lhe conferiu o
título, Prof. Dr. João Décio Passos, publicadas
no prefácio do livro, Usarki "revela um olhar e um
método originais que elucidam um objeto inédito
– o exercício efetivo do inter-religioso –,
lança possibilidades metodológicas – as bases
para uma teologia das religiões – e vislumbra horizontes
de ação inter-religiosa – práticas
ecumênicas e éticas".
Frank Usarski é doutor, com tese sobre
os mecanismos e motivos da estigmatização pública
de novos movimentos religiosos na Alemanha Ocidental e possui
pós-doutorado na área de Ciência da Religião
pela Universidade de Hannover, na Alemanha, sobre o papel das
religiões nas Exposições Mundiais entre
1851 e 1900. Desde sua chegada ao Brasil em 1998, faz parte
do Programa de Pós-Graduação em Ciências
da Religião da Pontifícia Universidade Católica
de São Paulo – PUC-SP. Em 2009, obteve o título
de Livre Docente na área de Ciências da Religião
pela PUC-SP. Entre suas atividades acadêmicas, destacam-se
a pesquisa, o ensino e diversas publicações sobre
as religiões orientais, bem como sobre a história
e o perfil atual da ciência da religião. Além
disso, é fundador e coordenador da Revista de Estudos
da Religião – REVER – e líder do grupo
de pesquisa Centro de Estudos de Religiões Alternativas
de Origem Oriental no Brasil – CERAL. De suas obras, além
de O Budismo e as outras. Encontros e desencontros entre
as grandes religiões mundiais (Aparecida: Ideias
& Letras, 2009), citamos Constituintes da ciência
da religião. Cinco ensaios em prol de uma disciplina
autônoma (São Paulo: Paulinas, 2006).
Confira a entrevista.
IHU On-Line – Quais foram os “encontros”
e os “desencontros” mais marcantes entre o Budismo e as
outras religiões mundiais? O que significaram para a construção
do Budismo?
Frank Usarski – Geralmente,
um desafio representado pelo “outro” torna consciente
as especificidades do “próprio”, tanto no sentido
do diferencial de doutrinas e práticas já elaboradas
quanto no sentido de “lacunas” no próprio repertório
e a necessidade de refletir sobre esses elementos negligenciados,
pelo menos em função de uma apologia mais eficaz em
oposição ao outro. Seja como for, o intercâmbio
– pacífico ou conflituoso – frequentemente estimula,
dessa maneira, a “produção” de “bens
religiosos”, contribuindo para a dinâmica pela qual a
história das religiões se caracteriza.
Por exemplo, grande parte das modificações
do Budismo Mahayana – ramo dominante no Extremo Oriente –,
em comparação como o Budismo Teravada – corrente
forte nos países do Sul e Sudeste da Ásia –, são
reflexões da necessidade do Budismo de se posicionar diante
das religiões autóctones na China, sobretudo diante
do Taoísmo. Algo semelhante pode se dizer sobre o Budismo Tibetano
cujo panteão e diversas técnicas espirituais são
concessões ao Bön, religião antiga da região.
IHU On-Line – O senhor examina
a relação do Budismo com as outras religiões
mundiais a partir de três categorias: exclusivismo, inclusivismo
e pluralismo. Como o Budismo encarna essas três categorias?
Frank Usarski – As três
categorias acima mencionadas são frequentemente citadas na
literatura especializada sobre o diálogo inter-religioso. No
caso do Budismo, elas são heuristicamente úteis, mas
não podem ser aplicadas de maneira dura. Há duas razões
principais para um olhar mais diferenciado. Primeiro, encontram-se,
nas escrituras do Budismo, atitudes que não se pode associar
a nenhuma das três categorias mencionadas.
Isso vale, por exemplo, para a atitude
chamada “avyakata”. O termo técnico significa “perguntas
não respondidas” e encontra-se em sutras em que Buda
não se posiciona diante de uma disputa doutrinária.
Nesses casos, Buda mostrou uma abertura que atribui ao ouvinte do
sermão a liberdade de tomar suas conclusões próprias.
O silêncio de Buda diante da dissonância cognitiva dos
seus discípulos não cabe em nenhuma das três categorias
“clássicas” do diálogo inter-religioso.
Se os textos budistas expressam
claramente uma postura exclusivista, pluralista ou inclusivista, tem-se
que perguntar se a atitude se refere a uma doutrina ou uma prática
espiritual. Diferentemente do Cristianismo, por exemplo, o Budismo
não insiste na verdade das suas mensagens, mas destaca a utilidade
das suas práticas em que consta um caminho espiritual. Nesse
sentido, o Budismo – embora não abra mão do conceito
do nirvana como objetivo soteriológico máximo –
demonstra uma tendência de evitar brigas sobre formulações
dogmáticas “secundárias”. Ao mesmo tempo,
olha geralmente com simpatia para qualquer método – de
origem budista ou não – que supostamente contribuiu para
a evolução espiritual na direção do nirvana.
Esse exemplo indica que, em determinados momentos, as três posturas
não são alternativas, mas desempenham um papel quase
simultâneo.
IHU On-Line – Em uma perspectiva
histórica, não haveria um “budismo”, mas
sim um grande mosaico de budismo, caracterizado por duas grandes tradições:
o Theravada e o Mahayana. Quais são as diferenças entre
elas?
Frank Usarski – Há muitas
diferenças no que diz respeito à doutrina, às
práticas, à ética e a questões organizatórias
das duas correntes. Devido às restrições formais
nessa entrevista, é possível citar apenas alguns exemplos.
Quanto à dimensão das doutrinas, vale a pena lembrar
que há subcorrentes mahayanistas, como a “Terra Pura”,
cujos ensinamentos implicam a ideia de um passo soteriológico
intermediário no sentido de um possível alcance de uma
esfera transcendental que ainda não representa o nirvana, mas
fornece condições para uma evolução acelerada
na direção da salvação completa.
Outra diferença fundamental consta na teoria
do carma. Os theravadins insistem na insuperabilidade da lei do carma
e na responsabilidade exclusiva de cada indivíduo para com
seu próprio destino espiritual. O Mahayana rompe com o “automatismo
frio” do carma na versão dos theravadins e ensina a possibilidade
de que figuras salvíficas – bodhisattvas e Budas como
o Amitabha (= Amida) – interfiram positivamente nas vidas dos
seres menos evoluídos.
No que diz respeito a questões organizacionais,
pode-se citar as redefinições mahayanistas da relação
entre monges e leigos em favor dos leigos – um resultado da
ênfase do confucionismo na família e na piedade filial
– e consequentemente da aversão contra uma vida monástica
que o Budismo teve que respeitar para se enraizar no Extremo Oriente.
IHU On-Line – Segundo o senhor, existiriam
“estratégias budistas tendentes à abertura substancial”,
ou seja, uma tendência a deixar certos problemas em aberto sem
assumir posições dogmáticas e fechadas sobre
determinados problemas. Isso foi positivo para a relação
do Budismo com as demais religiões?
Frank Usarski – Já mencionei a atitude
chamada avyakata. Há diversos trechos no cânone páli
(textos mais antigos da tradição budista), entre eles
o Kalama Sutra e o Tevijja-Sutra, em que Buda quer superar a fé
cega dos seus ouvintes incentivando-os a contemplar autonomicamente
as hipóteses apresentadas em disputas inter-religiosas e a
chegar a uma opinião própria.
Essa postura é compatível com a autoimagem
do Budismo moderno de não representar uma “religião”
propriamente dita, interessada em atividades proselitistas, mas uma
“filosofia de vida” que garante a liberdade daqueles que
se associam a ela. Trata-se de uma atitude que combina com o espírito
de uma época em que as “grandes narrativas” perderam
sua relevância, e as autoridades religiosas não podem
mais contar com sua autolegitimidade baseada em um status formal.
Nesse sentido, o Budismo tem vantagens sobre outras religiões,
cujas tradições exigem uma fidelidade explícita
para com suas escrituras sagradas.
IHU On-Line – Como o não-teísmo
do Budismo influencia sua relação com religiões
fortemente monoteístas como o Cristianismo, o Judaísmo
e o Islamismo?
Frank Usarski – O termo “não-teísta”
refere-se à divergência entre o Budismo e religiões
que partem da ideia de um Deus eterno que existe fora do cosmo criado
por ele e, portanto, não é sujeito da impermanência
que determina a vida relativa. É importante ressaltar isso,
uma vez que, no decorrer da sua história, o Budismo incluiu
diversas divindades locais no seu panteão, porém “desvalorizou”
as figuras celestiais incorporadas do Hinduísmo e do Xamanismo
tibetano, localizando esses seres supra-humanos dentro da roda de
vida (samsara).
É obvio que essa cosmovisão dificulta
o diálogo com religiões monoteístas, tanto no
sentido cosmológico quanto no sentido soteriológico.
Em vez de um ato livre de um criador, o Budismo conta com a chamada
“gênese condicionada”, ou seja, com um mecanismo
impessoal responsável pelos acontecimentos nas esferas relativas
da nossa existência. Em vez de princípios cristãos,
como o de uma natureza humana contaminada pelo pecado original que
impede a autossalvação do indivíduo e de um Juízo
Final, o Budismo conta com a lei do carma, a autorresponsabilidade
de cada indivíduo e da sua capacidade de alcançar o
nirvana por esforços próprios.
Não se pode esquecer as tentativas de mediação
entre o Budismo e as religiões monoteístas por parte
de filósofos associados à chamada Escola de Kyoto, particularmente
nas obras de Masao Abe, mas essas construções intelectualmente
sofisticadas parecem bastante forçadas e confirmam indiretamente
o oposto daquilo que é intencionado pelos pensadores afins,
ou seja: intensificam a impressão de que, no nível em
questão, há incompatibilidades inconciliáveis
entre termos ontológicos e soteriológicos entre o Budismo
e as religiões monoteístas.
IHU On-Line – Em um dos capítulos do
livro, o senhor fala de “divergências substanciais”
entre o Budismo e as demais religiões mundiais. Em linhas gerais,
quais seriam elas?
Frank Usarski – Há alguns temas recorrentes
no diálogo entre o Budismo e o Hinduísmo, Judaísmo,
Cristianismo e o Islã. O tema mais frequente é o do
teísmo nas tradições não-budistas que
o Budismo vê como um ponto crítico. Outros assuntos são
mais específicos e têm sido abordados em diálogos
com uma das quatro religiões acima mencionadas. Quanto ao Cristianismo,
por exemplo, o Budismo tem dificuldades de atribuir a Jesus Cristo
um status divino que ultrapassa sua apreciação “apenas”
como um mestre espiritual.
Além disso, uma retrospectiva revela que determinados
tópicos ganharam uma relevância maior em certos momentos
históricos. Para citar novamente o Cristianismo, budistas europeus
do início do século XX criticavam fortemente a presença
de missionários cristãos em países como China
ou Birmânia e o impacto “destrutivo” das respectivas
atuações sobre a cultura budista local.
IHU On-Line – O senhor afirma que há
“um preconceito fortemente enraizado no senso comum [de] que
‘bem lá no fundo’, no âmago, todas as religiões
partem dos mesmos princípios, têm objetivos semelhantes
e se unem no desejo de harmonia e de paz no mundo”. Nesse sentido,
é possível uma ética mundial, como defende Hans
Küng?
Frank Usarski – Como cientista da religião
interessado na comparação das religiões, tenho
problemas com a ideia ingênua de que todas as religiões
querem a mesma coisa e compartilham uma essência comum. Ao mesmo
tempo, concordo com a busca de Hans Küng para uma ética
mundial. Mas esta só pode der construída a partir do
reconhecimento das particularidades, da integridade e da dignidade
de cada um dos interlocutores envolvidos. Caso contrário, acontecerá
o mesmo que ocorreu com os chamados “direitos humanos universais”.
A respectiva declaração foi lançada em 1948,
portanto, em um momento no qual países ocidentais representavam
a maioria dos membros da ONU. Depois da descolonização
e da entrada de países recém emancipados, foram articuladas
dúvidas sobre a “universalidade” dos valores oficialmente
sancionados.
O resultado foi que, em 1981, a Organização
para a Unidade Africana lançou a chamada “Carta de Banjul
dos Direitos Humanos”, que representa uma reformulação
dos direitos “ocidentais” de 1948. O mesmo vale para Declaração
de Cairo de Direitos Humanos pela XIX Conferência Islâmica
dos Ministros Exteriores em Cairo (1990). Isso significa que há
partes do mundo insatisfeitas com a versão oficial dos Direitos
Humanos, uma vez que os últimos não refletem as experiências
historicamente acumuladas por povos localizados em partes “não-ocidentais”
do mundo.
É obvio que uma ética mundial deve transcender
essas frentes. Mas isso só pode acontecer quando as vozes de
todos os interlocutores têm o mesmo peso. O primeiro passo nessa
direção é o reconhecimento do fato de que há
muitas plausibilidades em jogo e de que muitas das diferenças
têm suas raízes em doutrinas religiosas distintas e em
alguns pontos inconciliáveis.
IHU On-Line – Pode-se dizer que o Budismo
é uma religião tolerante em relação com
as demais? Quais seriam os limites e possibilidades de diálogo
entre o Budismo e as demais religiões mundiais?
Frank Usarski – O Budismo desfruta uma imagem
muito positiva. Muitos o veem como a mais pacífica dentre as
grandes religiões. Em minha opinião, a doutrina budista
tem esse potencial. Porém, nenhuma religião nasce e
se desenvolve em um vácuo, e poucos dos seus representantes
são santos, mas sim sujeitos a tentações “mundanas”.
Há momentos na história que demonstram que o Budismo
também é vulnerável nesse sentido.
Isso vale, por exemplo, para a instrumentalização
de instituições budistas locais por parte do governo
japonês em função da perseguição
violenta de cristãos no país a partir de 1631. Mas,
ao longo da história, e comparado com as duas outras religiões
universais, isto é, o Islã e o Cristianismo, o Budismo
pode ser considerado uma religião norteada, sobretudo, pela
ideia de convivência pacífica.