
Era o ano de 2010, a Cia. de teatro da
qual Luís Estêvão faz parte iria apresentar, na
capital de seu Estado, uma peça teatral que estava sendo muito
elogiada. Várias cidades de dois Estados já haviam assistido
e aplaudido a comovente história de perdão e redenção
à luz dos ensinamentos espíritas.
A peça estreara dez anos antes. Desde então,
teatros lotados. Gente espírita e não espírita
aplaudindo e se emocionando. E com a aprovação de gente
conhecida no movimento espírita! Pessoas com anos de estrada
que, inclusive, deram depoimento elogiando o trabalho da Cia. teatral.
Por isso, munido de grande entusiasmo e de farto material
de divulgação, Luís Estêvão se preparava
para ir aos centros espíritas da região onde a peça
seria apresentada.
Como ele não conseguiria percorrer todos os
centros da área, pensou em enviar o material por correio e
com uma carta explicando o teor da peça. De um dos centros,
recebeu uma mensagem dizendo que a peça, antes de ser divulgada,
teria o material submetido à apreciação dos titulares
na próxima reunião de diretoria, que aconteceria em
meados do mês seguinte. Luís argumentou que, até
lá, a temporada que fariam – três finais de semana
seguidos – já estaria na reta final. Acrescentou, ainda,
que se tratava de um grupo proveniente de um centro espírita
com mais de 60 anos e que ele tinha, à época, 20 anos
de Espiritismo e que era cria de pessoas conhecidas do movimento espírita.
Em vão. A aprovação para divulgar o trabalho
só viria depois da análise do baixo clero daquela instituição.
Luís Estêvão disse para a pessoa esquecer o assunto.
E como deduziu que talvez enfrentasse o mesmo problema em outros centros
caso enviasse o material por correio, resolveu que daria atenção
às instituições onde conseguiria ir pessoalmente.
Em várias, foi muito bem recebido. Identificou-se
e divulgou o trabalho à vontade. Em outros centros, foi tratado
com ressalvas. Ele poderia somente distribuir os panfletos no saguão
do centro espírita. Já em outros, recebeu autorização
somente para deixar as filipetas em cima do balcão de informações,
mas não poderia dar um pio. E houve também centros em
que foi tratado como intruso. Não poderia divulgar nada lá
dentro e pronto! Para esses, disse cordialmente que iria para a porta
do centro, na calçada. Afinal, a rua é pública.
Nela, ninguém da diretoria poderia incomodá-lo. E lá
foi ele panfletar e falar em alto e bom som o nome e o teor da peça.
Resultado: sessões lotadas, apesar do gesso que muitos espíritas
insistem em envolver a si próprios e as casas que dirigem.
Luís ficou surpreso com a recepção
fria que teve em algumas instituições espíritas.
Esperava um misto de fraternidade, acolhimento, entusiasmo e alegria
cristã. Não foi o que sempre aconteceu.
O mais gritante episódio ocorreu, no entanto,
quando Luís recebeu o telefonema de Ivo, jovem de outra cidade.
Ivo havia ouvido falar da Cia. de teatro e queria informações,
trocar experiências etc. Conversa vai, conversa vem, Luís
falou da possibilidade de apresentarem a peça em sua cidade.
Ivo, então, reiterou que, se a apresentação fosse
num dos centros espíritas locais, o texto teria de ser enviado
antes para análise da diretoria. Luís ficou bem chateado.
Retrucou que preferia, como de hábito, apresentar a peça
num local público e fazer a divulgação na calçada,
caso os centros espíritas não concordassem em ajudá-lo.
Outro baixo clero dando uma de censor, e para cima de uma peça
teatral consagrada, com mais de dez anos de estrada, era um pouco
demais para ele.
A história de Luís Estêvão
nos leva a concluir que deve haver centros espíritas que se
julgam os únicos portadores do verdadeiro Espiritismo. Qualquer
pessoa ou trabalho espírita que venha de outro local é
visto como um alienígena que precisa, antes, ser submetido
à apreciação das supremas autoridades em Doutrina
Espírita que só esse ou aquele centro possui. É
a tal da pureza doutrinária, termo que incomoda a mim e a muitos
amigos espíritas. Em nome dela, profitentes da mesma religião,
em vez de cooperarem uns com os outros, atrapalham-se porque desconfiam
uns da procedência dos outros. Pureza engessada, portanto.
Acho prejudicial esse tipo de mentalidade. Afinal,
se um palestrante ou grupo artístico de Belo Horizonte, por
exemplo, é impedido de divulgar seu trabalho nos centros espíritas
de, vamos supor, Curitiba, onde irá se apresentar, a quem ele
recorrerá, além dos veículos de comunicação
locais? Às igrejas católicas? Aos templos evangélicos?
Claro que recorrerá aos grupos espíritas, desde que
esses não coloquem barreira por desconfiarem da qualidade doutrinária
do que será apresentado. Se nós não nos ajudarmos,
quem nos ajudará?
Quando Bárbara, escritora e palestrante espírita,
publicou o primeiro livro, Mercedes e Edson, casal de amigos de outra
cidade, sugeriram ao presidente do centro do qual fazem parte que
a chamassem para uma palestra e sessão de autógrafos.
A resposta foi negativa. Alegação: – Ah, ninguém
conhece ela. Ué? Então passe a conhecer! Não
só a ela, mas a outros tantos companheiros de ideal que estão
desenvolvendo trabalhos interessantes, mas não são chamados
para ir ali ou aqui porque o baixo clero do local, guardião
absoluto da pureza doutrinária engessada, não conhece
A, B ou C. Mas como não quer se dar ao trabalho de conhecer,
alega que ninguém conhece. Transfere-se um preconceito individual
para um pronome indefinido chamado ninguém.
Poucos antes de publicar o livro primogênito,
Bárbara já havia feito palestra em um centro da mesma
cidade. Depois que o livro saiu, os convites espocaram. Ela já
foi, inclusive, divulgar sua obra em outros estados. Nunca mais soube
se Edson e Mercedes tentaram emplacar o nome dela no centro que frequentam.
Mas provavelmente a resposta deve ser a mesma ainda: – Ah, ninguém
conhece ela.
Ser escritor espírita é, aliás,
um bom ensejo para constatar como esse ardor em defender a suposta
pureza doutrinária vem engessando o movimento espírita.
Joel, outro escritor, comentou comigo que, há
um tempo, um clube do livro espírita encomendou 500 exemplares
de um de seus títulos. Além disso, outro livro dele
estava sendo analisado pelo mesmo clube para, posteriormente, ser
oferecido aos sócios. Joel ficou feliz com a notícia.
Escritores querem ser lidos, comentados etc. Logo depois, ele ficou
sabendo que um grande centro espírita estava pensando em convidá-lo
para um café literário. É uma atividade regular
que a instituição realiza. Só que, antes de formalizarem
o convite, estavam analisando seus livros. Joel ficou feliz novamente
pelo interesse em sua obra. Só que veio junto uma ponta de
incômodo. Será que o fato de ele ter anos de movimento
espírita, quatro obras publicadas até agora e por uma
editora conceituada não são elementos suficientes para
referendar sua produção literária? Para que submetê-la
a tantas análises? Será que o clube do livro e o centro
do café literário não confiam no que a editora
dele – muito séria, por sinal – publica? Para que
tanta filtragem assim? Será que o Espiritismo dele é
incompatível com o Espiritismo alheio? Mas não é
tudo Doutrina Espírita?
Sei que deve haver cuidado devido ao fato de muitos
escritores que se dizem espíritas estarem publicando obras
com erros doutrinários. Em contrapartida, não acho de
bom tom desconfiarmos de tudo e de todos, inclusive de editoras que
há anos primam por um trabalho sério e cuidadoso. Esse
excesso de zelo pode transformar todos nós em donos da verdade
espírita, a ponto de Joãozinho achar que só ele
e o pessoal do centro dele entendem de Doutrina Espírita e,
em nome da tal pureza, dificultarem o trabalho de espíritas
de outras regiões devido a desconfianças infundadas.
Termino esse capitulo com uma história que
meu amigo Sidney Aride, de Nova Iguaçu (RJ), me contou. Um
confrade dele, a quem chamarei de Ciro, mudou-se para outra cidade
por questões de trabalho. Lá chegando, procurou um centro
espírita e se apresentou. Disse que vinha de Nova Iguaçu,
onde frequentava a instituição espírita XYZ há
15 anos, exercendo tarefas como aplicador de passes, palestrante e
evangelizador de mocidade. Mandaram-no se matricular no Estudo Sistematizado
da Doutrina Espírita (Esde), curso de três anos voltado
para quem está começando no movimento espírita.
De nada adiantou Ciro dizer que já havia feito
o Esde, tampouco sua folha corrida. Naquele centro, para trabalhar,
só depois de fazer o Esde. Ciro achou melhor procurar um centro
de mentalidade mais aberta, onde foi aceito sem engessamentos e está
até hoje.
Sei que às vezes é complicado aceitar
de cara alguém que já chega pronto. Mas creio que, num
caso desses, o dirigente deveria pedir algumas referências a
Ciro, checá-las e, tão logo confirmada a procedência,
integrá-lo aos poucos às atividades do local. Bem melhor
do que vê-lo como um intruso a ser tratado como iniciante porque
teve a petulância de querer saber tanto de Espiritismo quanto
os habitantes locais. E bem melhor do que, em nome da pureza doutrinária
(e engessada), jogar um balde de água fria em alguém
de primeira linha que chega para somar.