Em sua contribuição
ensaística ao clássico A personagem de ficção,
que tem dentre os seus colaboradores nomes exponenciais da crítica
literária brasileira, como Antonio Candido, o professor e
crítico Anatol Rosenfeld escreveu no estudo intitulado Literatura
e personagem: “Geralmente, quando nos referimos à
literatura, pensamos no que tradicionalmente se costuma chamar ‘belas
letras’ ou ‘beletrística’. Trata-se, evidentemente,
só de uma parcela da literatura. Na acepção
lata, literatura é tudo o que aparece fixado por meio de
letras – obras científicas, reportagens, notícias,
textos de propaganda, livros didáticos, receitas de cozinha
etc. Dentro deste vasto campo das letras, as belas letras representam
um setor restrito.” O texto de Rosenfeld foi publicado originalmente
em 1968, mas se revela de grande atualidade, já que o problema
mencionado é multissecular.
A partir de 1980, os pensadores franceses Gilles Deleuze e Félix
Guattari tornariam popular o conceito de rizoma no âmbito
da história das ideias. Nesta metáfora epistemológica
(alusiva à teoria do conhecimento) enfatizariam a multiplicidade
de que praticamente todos os fenômenos culturais ou da natureza
estão impregnados. Tomado de empréstimo ao reino da
botânica, o modelo rizomático aproveita esta singular
estrutura vegetal, que é assim definida por botânicos
como Waldomiro Vidal e Maria Rodrigues na obra Botânica –
organografia: quadros sinóticos ilustrados de fanerógamos:
“Os rizomas são caules subterrâneos geralmente
horizontais, emitindo, de espaço a espaço, brotos
aéreos foliosos e floríferos; dotados de nós,
entrenós, gemas e escamas, podendo emitir raízes.
Exemplo: bambu, bananeira, espada-de-são-jorge.” Outro
exemplo botânico rizomático bem conhecido é
a grama. Cada tufo de grama parece separado um do outro, embora
no subterrâneo estejam interligados, o que acaba por representar
uma figuração mais simplificada do achado delleuzeguattariano.
Em Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia 2, Delleuze e Guattari
lançam mão dessa estrutura rizomática na concepção
de um modelo de teoria do conhecimento, naturalmente que metafórico.
Uma boa exemplificação desse interligamento em rizoma
é a apresentação acerca da amplitude da literatura
feita por Anatol Rosenfeld em ‘A personagem de ficção’.
Assim, há um modelo rizomático de literatura mais
amplo, a expressão lata a que se refere Rosenfeld, e um modelo
mais restrito, da então chamada belas letras ou beletrística.
São estruturas rizomáticas que se esgarçam
a partir de um outro rizoma universal: a linguagem e sua representação
gráfica de qualquer natureza. A soma desses rizomas configuram
o platô.
Os rizomas literários de um pesquisador
Nascido em Irará, na Bahia, no início da década
de 1960, o pesquisador Emídio Silva Falcão Brasileiro
adotou Goiás e sua capital como terra do coração
no final dos anos 80. Autor de uma vasta pesquisa sobre sexualidade,
Brasileiro publicou obras como ‘Sexo: Problemas e Soluções’,
‘O Sexo Nosso de Cada Dia’ e ‘A Outra Face do
Sexo’. Se nestas últimas prevalecem o caráter
técnico-psicológico do tema, por assim dizer, na primeira
o autor conjuga estes conhecimentos ao paradigma do Espiritismo,
doutrina sistematizada por Allan Kardec na segunda metade do século
19.
Professor de Direito em instituições de ensino superior
goianas, Emídio Brasileiro se doutorou em Portugal com tese
versando sobre o Direito Natural. Neste trabalho, estabelece conexões
epistemológicas entre o Direito e a Terceira Lei de Newton,
Ação e Reação, apresentada em sua clássica
obra Princípios Matemáticos da Filosofia Natural.
Numa instigante sinergia cultural que vincula a doutrina kardequiana
à atividade de pesquisa em frentes diversas, o pesquisador
baiano tem publicado sistematicamente aos domingos páginas
de exegeses bíblico-espíritas que muito contribuem
para o enriquecimento do leitor do Diário da Manhã.
Na apresentação do rizoma como metáfora epistemológica,
Gilles Deleuze e Félix Guattari o estruturam em seis princípios
universalmente aplicáveis. O primeiro e o segundo princípios,
denominados de Princípios de conexão e heterogeneidade,
afirmam que “qualquer ponto de um rizoma pode ser conectado
a qualquer outro e deve sê-lo”. Esta conexão
se realiza por meio de hastes ou fluxos subterrâneos, subjacentes,
segundo os autores. No campo da textualidade, seria algo que até
certo ponto remeteria ao conceito de intertextualidade, aqui entendida
como a relação multifuncional entre textos de quaisquer
natureza. Em outras palavras, tudo se conectaria; mesmo que num
primeiro momento isso não fosse perceptível.
A trajetória cultural de Emídio Brasileiro é
um bom exemplo. Mais especificamente, o percurso literário
do escritor. No âmbito da definição de Anatol
Rosenfeld, que pode ser pensada rizomaticamente, o pesquisador baiano
faz literatura tanto no sentido lato (extenso) quanto no sentido
mais estrito do termo. As obras já mencionadas pertencem
ao que poderia ser pensado como um rizoma: a literatura como representação
escrita de tudo o que se produz no universo textual. Contudo, obras
como Um Dia em Jerusalém e A Caminho do Deserto se inserem
naturalmente no que poderia ser pensado como o rizoma literário
do beletrismo rosenfeldiano. Além disso, ambas estão
ligadas às demais produções do autor mediante
hastes rizomáticas que remetem a outros rizomas decomponíveis:
a Bíblia e o Espiritismo.
O Evangelho de Lucas registra (cap. 2, v.
41-52) que aos doze anos de idade Jesus esteve em Jerusalém
para as festividades da páscoa. No retorno, não estava
ele com o grupo e com os pais, o que só foi descoberto depois
de um dia. Seus pais retornaram a Jerusalém e o encontraram
no templo discutindo com os doutores. Registra o evangelista: “46
– Pois bem, depois de três dias, eles o acharam no templo,
sentado no meio dos instrutores, escutando-os e fazendo-lhes perguntas.
47 – Mas todos os que o escutavam ficavam admirados com o
seu entendimento e suas respostas.” O que teria Jesus, no
início da difícil fase da adolescência, dito
aos rabinos? Neste ponto entra em jogo a proposição
aristotélica. O poeta (escritor) narra o que poderia ter
acontecido e não necessariamente o que aconteceu. A verve
literária de Emídio Brasileiro põe em ação
o Cristo adolescente a discutir com homens maduros, dando-lhes preciosas
lições em prosa poética mística repleta
de filigranas próprias do gênero denominado literatura
sapiencial.
Em ‘A Caminho do Deserto’, por sua vez, o autor percorre
pelas veredas do imaginário a saga de João Batista,
o precursor de Jesus Cristo. Em narrativa que apresenta uma instigante
densidade psicológica do primo de Jesus, Emídio Brasileiro
retrata uma alma profundamente focada na missão que tem de
cumprir, ao mesmo tempo em que a apresenta até certo ponto
atormentada por reminiscências que poderiam ter origens em
uma outra encarnação, quando animara a personalidade
do profeta Elias, conforme advoga Allan Kardec na obra espírita
de exegese bíblica intitulada ‘O Evangelho Segundo
O Espiritismo’.
‘A Caminho do Deserto’ oferece ao pesquisador em literatura
uma instigante possibilidade intertextual no âmbito da literatura
comparada, pois dialoga de maneira bem próxima com a peça
teatral de Oscar Wilde intitulada Salomé, em que o extraordinário
dramaturgo irlandês apresenta uma Salomé apaixonada
pela misteriosa figura do profeta do deserto.
Assim, a produção literária do professor Emídio
Silva Falcão Brasileiro se caracteriza como sendo profundamente
vinculada ao ethos do que é apresentado pelo crítico
germano-brasileiro, Anatol Rosenfeld, quando trata do problema da
definição da literatura tanto em seu caráter
amplo quanto restrito, o que por si dá pistas da dimensão
quantitativa e qualitativa do trabalho do pesquisador e intelectual
baiano que adotou Goiás como seu segundo Estado.