Seria o ensino religioso uma ameaça
ao conhecimento científico? A verdade sobre as coisas é
objeto da razão ou da fé? O mundo surgiu
por acaso e segue a lógica da evolução, ou
foi criado e se modifica conforme a vontade divina? O debate
que atravessa séculos surgiu com a própria
história do conhecimento humano, e no encalço dessas
questões a polêmica esbarra no status de verdade única
conferido tanto ao saber religioso quanto ao saber científico.
No Brasil, a postura assumida em 2000 pelo então
governador do estado do Rio de Janeiro, Antony Garotinho, ao sancionar
a lei que determina que o ensino religioso faça parte do
currículo das escolas públicas, ocasionou uma retomada
dos debates sobre os limites entre ciência e religião.
A lei do ex-governador foi colocada em prática
em abril deste ano pela atual governadora, Rosinha Matheus, e trouxe
mal estar não apenas para setores "fundamentalistas"
do mundo religioso e científico, mas também, para
setores "moderados", pertencentes ou não a essas
duas instituições. A partir do segundo semestre, os
1,7 milhão de alunos dos 92 municípios serão
divididos por credo durante a disciplina religiosa, a ser abordada,
separadamente, por doutrinas como a católica, a evangélica,
a espírita, a umbandista, a messiânica e outras que
se manifestarem dentro da comunidade.
"A visão clássica era de que
a ciência explicaria o mundo e com isso não haveria
mais necessidade de se recorrer aos aspectos mágicos e
religiosos, mas não foi bem isso que aconteceu", analisa
Silas Guerriero, sociólogo e professor
do Departamento de Teologia e Ciências da Religião
da Pontifícia Universidade Católica de São
Paulo (PUC-SP).
Para ele, "apesar do mundo estar cada vez mais
"cientifizado", as pessoas ainda fazem uso de explicações
religiosas, porque a dimensão religiosa faz parte do ser
humano".
Para pensadores moderados como Guerriero, o principal
problema não é levar a religião para dentro
da escola, mas a forma como ela será abordada dentro das
instituições de ensino.
Nesse ponto, uma das principais preocupações
é o caráter confessional do ensino religioso que implica
na religião ser ensinada de maneira dogmática, separada
de acordo com os credos. Esse tipo de ensino religioso dentro da
escola pública envolve questões que ultrapassam a
questão do "status" do conhecimento. Esbarra em
questões como respeito ao sincretismo ou pluralismo religioso
(uma das principais características da sociedade brasileira),
separação entre instituições como Estado
e Igreja (apontada como um dos marcos da civilização
moderna) e no processo chamado de secularização da
sociedade.
"Com o processo de secularização,
a religião deixa de ser o processo fundador da visão
de mundo e passa a ser uma das esferas sociais, Ou seja, ela não
some, apenas se iguala a outras esferas como moral, família,
estado, educação etc. As pessoas hoje lançam
mão da religião quando precisam e da forma que precisam",
esclarece Guerriero.
A ameaça ao Estado laico, não partidário
de nenhum credo específico, é outro ponto de preocupação
dos críticos à prática do ensino religioso
confessional no estado do Rio de Janeiro. A polêmica é
alimentada pela aberta manisfestação da governadora
do estado quanto sua postura religiosa evangélica.
Para Carlos Minc, deputado do PT
que escreveu o projeto de lei que propõe a alteração
do ensino confessional para um ensino de caráter socio-antropológico,
a implementação do ensino religioso nos moldes da
realizada no Rio fere claramente a lei federal e o princípio
do Estado laico.
"Estado tem que zelar pela legislação,
defendendo o princípio da liberdade religiosa (...). É
claro que o oportunismo político ultrapassa fronteiras
éticas e morais e pode se utilizar do atraso para conquistar
apoio político de lideranças religiosas", critica
o deputado.
Sobre este aspecto, Lourenço Stelio
Rega, professor da Faculdade Batista de Teologia de São
Paulo, faz considerações mais contundentes. Segundo
ele a noção de Estado laico não condiz com
a realidade brasileira.
"Vamos ser claros, o Estado brasileiro não
é laico. Sofre influências principalmente da Igreja
Católica. Talvez neste atual governo menos, por ser de
natureza mais sincrética", enfatiza.
Já para o ex-deputado Carlos Dias,
do PP, que propôs a instituição do ensino religioso
confessional nas escolas públicas do estado do Rio de Janeiro,
a lei não ameaça o Estado laico. Para ele, o Estado
é pluralista e por isso precisa trabalhar com todas as correntes
de pensamento, inclusive a religiosa e isso também no campo
educacional, dando a liberdade de expressão para todas as
religiões.
Ensino religioso e sincretismo
No edital de abertura do concurso para professores
de ensino religioso das escolas públicas do estado do Rio,
as 500 vagas oferecidas foram separadas da seguinte forma: 342 para
o credo católico, 132 para o credo evangélico e 26
vagas para professores dos demais credos. Esse edital deixa clara
a característica confessional da educação religiosa.
Porém, se essa é a idéia, o ensino religioso
deveria atender a todos os credos, o que dificilmente acontecerá
se essa divisão de professores for mantida. Mesmo que outra
divisão fosse feita, também seria difícil atender
as diversas possibilidades de demanda religiosa, se for levado em
conta o sincretismo religioso brasileiro e autonomia religiosa característica
da secularização da sociedade.
"O Estado não tem meios de oferecer
um ensino religioso que atenda todos os tipos de crença.
Por outro lado, se isso acontecesse, não haveria sentido
porque isso seria papel da Igreja e não da escola",
argumenta Guerriero.
Para Rega a educação religiosa na
escola deve lidar com o fenômeno religioso presente na vida
humana, o relacionamento com o "sagrado" e os temas pertinentes
a essa questão. "Deve ensinar aos alunos a reconhecer
os elementos que compõe a vida religiosa, tais como as definições
de religião, os ingredientes ou componentes da experiência
e prática religiosa, os ritos e os símbolos",
argumenta o professor.
O ensino religioso nas escolas deveria ser fenomenológico,
ou seja, com uma abordagem antropológica, sociológica
e cultural. "Poderia e deveria acontecer dentro das escolas
públicas apenas se pudesse seguir os moldes de uma ciência
da religião, caminhando no sentido de mostrar os vários
mitos da criação, promovendo o respeito às
diferenças", conclui Guerriero.
Criacionismo X evolucionismo
Segundo determinação da Secretaria
de Estado da Educação do Rio de Janeiro, em 2004 as
escolas públicas promoveriam "reflexões sobre
a criação do mundo" por meio de uma "abordagem
superficial do criacionismo". Porém, não foi
explicado que metodologia os professores deverão utilizar
para isso. Essa explicação vaga sobre a forma como
o criacionismo será apresentado em sala de aula é
uma das principais críticas à proposta de ensinar
religião nas escolas públicas do Rio. Existe a preocupação
por parte de cientistas e políticos, contrários a
essa medida, de que isso poderia ocasionar uma espécie de
competição pela verdade sobre o surgimento do universo
entre os professores de biologia e religião, criando assim,
um embate entre criacionismo religioso e a teoria evolucionista.
"Não devemos colocar num mesmo plano
religião e ciência. Não estou dizendo com
isso que uma seja mais verdadeira que a outra. Apenas que suas
verdades devem ser vistas em contextos diferentes". O criacionismo
e a Teoria da Evolução pertencem a âmbitos
de cognição diferentes e é um erro e colocá-las
em um mesmo plano. "Seria um retrocesso", analisa Guerriero.
A falta de entendimento da natureza distinta dessas
duas interpretações de mundo, leva alguns cientistas
a quererem eliminar a religião, assim como algumas religiões
querem eliminar a ciência. Segundo Guerriero, no meio dessas
posições antagônicas existem ainda posições
intermediárias. São as pessoas que buscam explicações
científicas para a religião, achando que a fé
se tornaria "mais verdadeira" se pudesse ser comprovada
cientificamente. Ou ainda aquelas que acreditam na ciência
"até certo ponto", utilizando a religião
para completar a explicação.
"É uma tentativa de conciliar as
duas explicações sobre o mundo", conclui.
Para Rega há confusões entre o estudo
da religião e da ciência.
"As duas áreas são diferentes.
Tenho minhas convicções que vão de encontro
com o criacionismo. Mas creio que, num ambiente acadêmico,
se deve estudar a maior quantidade de opções e controvérsias,
para que cada pessoa possa decidir por si mesma", afirma
o teólogo.
Uma diferença fundamental observada por Guerriero
é que a dúvida é um pressuposto da ciência,
enquanto a religião é uma questão fundamentalmente
de fé. "No caso do criacionismo ou gênesis, podemos
mostrar um mito de criação, qual a idéia de
mito e como o mito interfere na vida do ser humano, mas deixando
claro que é uma verdade diferente da ciência".
Caso essa separação não ocorra, afirma, ou
o mito é anulado ou a ciência é desmascarada.
Secularização
da sociedade brasileira
A secularização é um conceito surgido na própria
Igreja para designar coisas que são deste mundo, não
pertencem ao mundo milenar ou sagrado. As ciências humanas
acabaram se apropriando do termo para designar um processo de dessacralização
que acontece na modernidade. De maneira geral a secularização
acontece em três níveis: institucional, cognitivo e
comportamental.
No nível institucional ocorre a transferência do poder
das instituições que têm alguma referência
religiosa para as instituições que operam segundo
outros critérios como os racionais e pragmáticos.
O poder passa das instituições religiosas para as
instituições laicas. No âmbito cognitivo, as
pessoas deixam de explicar o mundo através da religião
e passam a explicá-lo, fundamentalmente, pela razão
e pela ciência. E, finalmente, em termos comportamentais ocorre
a privatização da própria experiência
religiosa. A religião não é mais institucionalizada
de forma tradicional, se desloca para a esfera do indivíduo,
já que o sujeito passa a ter uma autonomia religiosa.