O
Recebimento do Livro na França
O livro nasceu sob o signo da polêmica,
e como tal, esgotou-se rapidamente. A primeira edição
era composta de três livros (partes), intitulados “Doutrina
Espírita”, “Leis Morais” e “Esperanças
e Consolações”. A segunda edição,
publicada em março de 1860, base da maioria das traduções
brasileiras, foi uma ampliação significativa da primeira
edição. Ela apresentava 1019 questões feitas
aos espíritos, acrescidas de comentários, contra as
550 questões da primeira edição.
A primeira parte desdobrou-se em duas: “Causas
Primeiras” e Mundo Espiritual ou dos Espíritos”.
Criticado por uns, elogiado por outros, o livro coroa o projeto
original do Prof. Rivail de discutir filosoficamente com os espíritos,
através de diferentes médiuns, questões de
assuntos diversos, capazes de circunscrever uma doutrina que tratasse
da origem, trajetória e destino dos Espíritos.
Os leitores cuidadosos verão que os Espíritos de Kardec
dissertam sobre temas caros à Filosofia e aos filósofos
europeus do século XIX, o que tornou o livro singular entre
a produção espiritualista de seu tempo.
Como foi Redigido O Livro dos Espíritos?
As principais fontes que temos são a
Revista Espírita, publicada mensalmente por Kardec e os textos
autobiográficos publicados no livro “Obras Póstumas”,
especialmente o que se intitula “Minha iniciação
ao Espiritismo”.
Silvino Canuto Abreu é um dos autores brasileiros que tratou
do tema com fontes privilegiadas. Ele teve acesso a documentos de
Kardec, como a sua correspondência, ainda não publicada.
O Prof. Rivail se aproximou dos grupos espíritas a convite
de confrades magnetizadores, embora não acreditasse na manifestação
de Espíritos. À sua época, já houvera
tido contato com sonâmbulos, que eram pessoas que alteravam
seu estado de consciência sob efeito do magnetismo e eram
capazes de relatar percepções que não seriam
possíveis pela via dos sentidos, como a realização
de diagnósticos de órgãos internos dos consulentes.
Os médiuns norte-americanos haviam estado
na Europa e fizeram demonstrações de fenômenos
das chamadas “mesas girantes”. Canuto Abreu afirma que
antes de sua passagem, nos círculos de magnetizadores, alguns
fenômenos já haviam sido objeto de experimentação
com sonâmbulas francesas.
Rivail freqüentou grupos mediúnicos que recebiam convidados
externos. Impressionou-se com as informações que os
Espíritos traziam através da psicografia mecânica,
observou outros tipos de mediunidade, como a incorporação,
o sonambulismo mediúnico inconsciente, a mediunidade auditiva
e a clarividência, ao longo de seus estudos. Contudo, ele
se incomodava com o caráter fútil das perguntas que
eram dirigidas aos espíritos em alguns destes círculos.
Os Espíritos incentivaram Rivail a empreender um projeto
de pesquisa sério, o que o levou a desenvolver uma metodologia
própria para fazer o diálogo com os Espíritos
e redigir seu livro. Ele focalizou suas questões em três
grandes temas: a Filosofia Geral, a Psicologia e a Natureza do Mundo
Invisível. (1Cf. Obras Póstumas,
pág. 269.)
As Médiuns de Rivail
No princípio de seu trabalho, Rivail
obteve muito material e teve a oportunidade de questionar diversos
Espíritos através da mediunidade de psicografia mecânica
de Caroline e Julie Baudin. Em 1855 as jovens apresentavam, respectivamente,
as idades de 16 e 14 anos.
Basicamente, Rivail preparava os temas, desenvolvia perguntas em
sua casa, multiplicava questões sobre os temas, de forma
a deixá-los claramente expostos e os levava à residência
das Baudin. Elas psicografavam com o auxílio de uma “corbeille
toupie”, ou cesta de bico, que era uma cesta comum com uma
ponta na qual se colocava um lápis ou outro material capaz
de escrever sobre a ardósia (2
O leitor interessado encontrará descrições
detalhadas das cestas e pranchetas utilizadas à época
no capítulo XIII de “O Livro dos Médiuns”,
de Kardec).
As meninas colocavam a ponta dos dedos no corpo
da cesta (as duas ao mesmo tempo) e, conversando assuntos triviais,
esta movimentava-se redigindo as respostas às questões
propostas, enquanto as jovens conversavam assuntos diversos
(3 Cf. Obras Póstumas, página
267).

Figura 1: Desenho de uma cesta de bico contemporânea
à pesquisa de Rivail.
Rivail formulava as perguntas verbalmente e
às vezes mentalmente (4 Cf.
Obras Póstumas, página 268.),
o que lhe dava mais confiança na existência de seres
inteligentes, capazes de lhe perceber os pensamentos.
Os Espíritos incentivaram Rivail a rever os conteúdos
e ele resolveu submeter os textos a outros médiuns. A terceira
principal médium da construção da primeira
edição de “O Livro dos Espíritos”
foi Ruth Celine Japhet, que concedeu a Rivail, a pedido dos Espíritos,
sessões sem público, voltadas à revisão
do texto do livro nascente.
Canuto Abreu afirma que Kardec incentivou posteriormente as médiuns
a escreverem com pena de pato, o que aumentou a capacidade de produção
mediúnica. Além das três médiuns, Kardec
incluiu textos recebidos por correspondência ou de círculos
que visitou (5 Cf. Revista Espírita,
1858, pág. 34.) e contou com
a colaboração de outros médiuns 6 (6 Cf. Obras
Póstumas, pág. 270), em menor escala.
“Da fusão de todas
essas respostas, coordenadas, classificadas e muita vez recompostas
no silêncio na meditação, foi que elaborei
a primeira edição de O Livro dos Espíritos,
entregue à publicidade em 18 de abril de 1857.”
Allan Kardec 7 (7 Cf. Obras Póstumas,
pág. 270).
Rivail não publicou o nome
dos médiuns e os protegeu do público o quanto pôde.
O assédio e perseguições sofridas pelas irmãs
Fox, nos Estados Unidos, parece ser uma das razões de tanto
zelo com a identidade das jovens. Ele, mesmo adotando pseudônimo,
contudo, não seria poupado. Uma curiosidade, a médium
Ermance Dufaux não participou da primeira edição
de O Livro dos Espíritos, embora seus trabalhos estejam presentes
em quase todos os exemplares da Revista Espírita de 1858.
Canuto Abreu (8 Cf. O Livro dos Espíritos
e sua Tradição Histórica e Lendária)
escreve que ela teria sido apresentada a Rivail no período
do lançamento de O Livro dos Espíritos.
O Método de Kardec
Por que Rivail fez as mesmas perguntas para médiuns diferentes,
por que submeteu o texto à apreciação de diferentes
espíritos antes de publicá-lo?
Este é o cerne do método desenvolvido por ele para
o intercâmbio com o mundo espiritual.
Em primeiro lugar, Kardec não considerava os espíritos
como reveladores (9 Cf. Obras Póstumas,
pág. 269), mas como fontes de informação.
Pessoas desencarnadas, com maior ou menor capacidade de explicação
de sua realidade, mais ou menos ligadas às crenças
que defendiam antes da morte. Pode-se dizer, que no entendimento
de Kardec, é necessária uma análise o mais
ampla e franca possível daquilo que é produzido pelos
médiuns, seja pelas limitações dos espíritos,
seja pelas limitações dos próprios médiuns.
Este segundo ponto é uma das razões pelas quais Kardec
confirmava informações obtidas por médiuns
intuitivos com médiuns mecânicos. Uma vez que o fenômeno
se dá com menor influência das idéias próprias
do médium mecânico (recorde-se que as meninas conversavam
enquanto a cesta escrevia frases de conteúdo diverso), o
codificador os considera importantes para o trabalho de revisão.
As reservas de Kardec à produção mediúnica
dos médiuns intuitivos são conhecidas. Ele escreve
que “são muito comuns, mas muito sujeitos a erros,
por não poderem discernir, muitas vezes, o que provém
dos Espíritos do que deles próprios emana” (10
O Livro dos Médiuns, cap. XXVI, pág. 235.).
Uma terceira característica do método de Rivail é
o diálogo socrático com os Espíritos. Rivail
multiplica perguntas e usa a razão como instrumento para
separar as respostas gratuitas daquelas elaboradas e encadeadas
com lógica. Rivail conhece bem as limitações
da mediunidade. Em um texto intitulado “Contradições
na Linguagem dos Espíritos” (11
Revista Espírita, 1858, pág. 225 e 226.) ele
relaciona os seguintes pontos:
1. O grau de ignorância
ou de saber dos Espíritos aos quais nos dirigimos;
2. O embuste dos Espíritos inferiores que podem, por malícia,
ignorância ou malevolência e tomando um nome de empréstimo,
dizer coisas contrárias às que alhures foram ditas
pelo Espírito cujo nome usurparam;
3. As falhas pessoais do médium, que podem influir sobre
as comunicações, alterar ou deformar o pensamento
do Espírito;
4. A insistência por obter uma resposta que um Espírito
recusa dar, e que é dada por um Espírito inferior;
5. A própria vontade do Espírito, que fala conforme
o momento, o lugar e as pessoas e pode julgar conveniente nem
tudo dizer a toda gente;
6. A insuficiência da linguagem humana para exprimir as
coisas do mundo incorpóreo;
7. A interpretação que cada um pode dar a uma palavra
ou a uma explicação, de acordo com as suas idéias,
os seus preconceitos ou o ponto de vista sob o qual encara o assunto.
Mesmo limitada, a mediunidade é o único meio de comunicação
que dispomos e que Rivail dispunha em seu tempo com os Espíritos.
Seus cuidados possibilitam a obtenção de um conhecimento
de qualidade superior. Os cuidados com O Livro dos Espíritos
influenciaram as obras posteriores que lhe foram um “desenvolvimento
de assuntos específicos”, tratados de maneira geral
no coração da codificação.
Os Desdobramentos de “O Livro dos
Espíritos”
A publicação de O Livro dos Espíritos
é um marco no movimento espírita, especialmente nos
países neolatinos. Enquanto encarnado Kardec supervisionou
13 edições de O Livro dos Espíritos. A atual
tradução febiana, realizada por Evandro Noleto Bezerra,
mostra que à exceção da segunda edição,
as demais tiveram mudanças pontuais (explicadas pelo tradutor
na edição comemorativa dos 150 anos de O Livro dos
Espíritos).
As principais lideranças do movimento francês foram
atraídas ao Espiritismo pela leitura desta obra. Flammarion,
Denis, Alexandre Delanne e muitos outros espíritas relatam
em suas biografias como se convenceram ante a lógica rigorosa
dos Espíritos, trabalhada pela pena do codificador.
No Brasil, a primeira tradução em língua portuguesa
(feita a partir da 12 a. edição francesa) parece ter
sido feita por Joaquim Carlos Travassos, tendo adotado o pseudônimo
de Fortúnio e publicado pela famosa Editora Garnier, no Rio
de Janeiro em 1875. Travassos teria presenteado Bezerra de Menezes
com o livro, que o teria convertido.
A Federação Espírita Brasileira tem publicado
até o momento a tradução de Guillon Ribeiro,
mas são muito conhecidas a tradução comentada
feita por José Herculano Pires e a tradução
do Instituto de Difusão Espírita, feita por Salvador
Gentile.
Washington Fernandes nos informou através da LIHPE (12
Liga de Historiadores e Pesquisadores Espíritas) que
são conhecidas as traduções do livro para nove
idiomas: o português, o espanhol, o italiano, o alemão,
o inglês, o esperanto, o grego e o árabe.