
Ontem (26/09/2020) fizemos uma exposição
sintética do livro “Revisão do cristianismo”
a convite da Fundação Maria Virgínia e Herculano
Pires (https://www.youtube.com/watch?v=eIB1YtN75gg).
Dentre as muitas coisas que Herculano convida a rever no cristianismo,
um grande conjunto delas tem um impacto muito grande sobre o nosso
entendimento dos ensinamentos do mestre galileu: os mitos.
Influenciado pelo convite Kardequiano de analisar
racional e historicamente os evangelhos e documentos dos primeiros
cristãos, Herculano mergulhou nas reflexões que os
autores do final do século 19 e início do século
20 fizeram a partir de uma mudança de atitude na pesquisa
da história do cristianismo. Em vez de fazer uma história
atrelada à teologia, autores como Guignebert trabalharam
na desvinculação das duas e na construção
de uma história baseada na historiografia da época,
nas descobertas arqueológicas, na limitada documentação
ainda existente, e na comparação do cristianismo com
outras religiões, ou seja, concebendo-o como uma religião
e não como a religião.
Na medida em que o cristianismo deixa de ser contado como uma “vinda
de Deus à Terra” e passa a ser visto como um movimento
dos homens, algumas ideias até então interditas ao
historiador do cristianismo começam a ser percebidas.
Uma delas é bem simples: os evangelhos não foram
feitos a partir do registro exato do que disse Jesus e de sua preservação
para o futuro. Os discípulos de Jesus o conheceram e ouviram
o que ele ensinava. Com a morte e a percepção de Jesus
após a desencarnação, os discípulos
entenderam que a mensagem dele deveria ser divulgada, e começaram
a ensinar, primeiro aos judeus e depois a todos os que se interessassem,
o que eles se recordavam ou entenderam que havia sido ensinado.
Dos evangelistas que eram alfabetizados, talvez Mateus tenha feito
anotações de suas memórias, sob a forma de
logia, frases ou pequenos períodos encadeados. Hoje
os historiadores propõem que o evangelho de Marcos teria
vindo da tradição de Pedro, ou seja, João Marcos,
ou os hagiógrafos que escreveram o texto desse evangelho,
teriam ouvido e escrito os ensinamentos cristãos cuja tradição
remonta ao pescador de Cafarnaum.
Além de não serem registros históricos, de
serem textos posteriores às cartas de Paulo, e de serem registros
de ensinos orais dos discípulos, concluídos anos ou
décadas após o episódio do Gólgota,
é bem possível que estejam entremeados com mitos judaicos
ou pagãos, é o que reflete Herculano Pires ao longo
do seu livro.
O mito não é, em si, uma falsidade, uma irrealidade,
como nos explica o filósofo paulistano, mas uma proto-explicação
ou explicação não racional, que se origina
no interior da alma humana. Enxergar Jesus como o messias, o “ungido”,
aquele que veio salvar o povo hebreu da escravidão e associá-lo
aos sinais entrevistos na leitura e interpretação
dos profetas, seria uma primeira “tentação”
dos apóstolos ou dos que participaram da redação
dos textos que posteriormente foram escolhidos para compor o Novo
Testamento.
Herculano não se propõe a separar o mito da narrativa
nos evangelhos, mas faz algumas análises. Ele entende que
boa parte da natividade pode ser mítica, porque apresenta
eventos improváveis e que “ajustam” a figura
de Jesus à do messias. O nascimento em Belém, por
exemplo, o “censo” que exigiria que os habitantes saíssem
de suas cidades para as cidades onde nasceram, a declaração
de morte das crianças por Herodes, a estrela de Belém
que guia os Reis magos e a fuga para o Egito fazem parte dessa mitologia
tardia inserida nos evangelhos. Herculano busca mitologemas semelhantes
em outras religiões da época para mostrar que é
possível que tenha havido uma interpolação
de mitos e histórias sagradas na história de Jesus
para que ele pudesse ser considerado o messias dos Judeus ou um
Deus para os gregos ou romanos. A partir do século quarto,
muitos elementos do paganismo irão ser empregados pelas comunidades
cristãs para que seus concidadãos aceitem mais facilmente
o prestígio do cristianismo junto ao Imperador Constantino,
até tornar-se religião oficial do império romano,
décadas depois.
Não seria demérito que Jesus tivesse nascido em Nazaré,
filho de Maria e José, com irmãos e tivesse vivido
no lar de um carpinteiro. Mais humano, ele se torna mais extraordinário
aos nossos olhos, porque nessas condições desfavoráveis
ele se torna capaz de interlocução com os estudiosos
de sua cultura e de sua época, e é capaz de elaborar
uma proposta de ser humano, de vida e de sociedade completamente
diferente daquilo que existia e que se vivia em seu tempo. Cercado
por sociedades que "naturalizaram" a instituição
da escravidão, por exemplo, Jesus propõe tratarmos
a todos como pessoas, filhos do pai. É uma concepção
além do tempo e do lugar em que Jesus viveu, além
das escrituras judaicas e, incomodamente possível.
Essa abordagem racional e histórica não nos leva
a desvalorizar os evangelhos, as cartas dos apóstolos e os
documentos que os cristãos produziram nos primeiros séculos,
mas exige uma leitura crítica, um olhar histórico,
capaz de entender que o texto, quando se aproxima do mito, não
é um conjunto de “verdades ocultas” cujas alegorias
devem ser descobertas pelo leitor, mas uma expressão vívida
dos ensinos de Jesus, a par com o desejo de reconhecimento do mestre
pela sociedade da época por seus apóstolos e discípulos.
A proposta de Herculano é intelectualmente corajosa, porque
é revisionista não só do cristianismo das igrejas,
mas por propor aos espíritas uma atitude mais racional no
que tange ao estudo dos evangelhos. Concordando ou não com
Herculano Pires, o livro merece ser estudado, debatido e entendido
por nós sem a pretensão de verdade absoluta, mas com
a pretensão de rigor e honestidade intelectuais.