Uma das questões que sempre
me intrigou em "O Livro dos Espíritos" é
a de número três: pode-se dizer que Deus é o
infinito?
Homem do século XX, infinito
é um termo que sempre vi associado à matemática
e às ciências naturais, nas infindáveis tentativas
dos físicos mensurarem o tamanho do universo.
Com esta concepção
estreita que tenho, a pergunta não fazia sentido, parecia-me
própria do panteísmo, que Kardec distingue tão
claramente da concepção espírita de Deus.
Ao ler História da Filosofia,
especialmente os autores da patrística e da escolástica,
esbarrei em um pensador cristão interessante: John Duns Scotus
ou Scot (1266-1308).
Nos dilemas entre a fé e
a razão, o conceito de ente infinito ocupa um papel importante
no pensamento de Scotus. Reale e Antiseri (2011) apresentam a questão
a partir dos sentidos e do intelecto. Se é mais ou menos
fácil identificar a finalidade dos sentidos do homem, qual
é a finalidade do intelecto. Scot afirma que a finalidade
do intelecto, essencialmente humano (ente unívoco), tem por
finalidade o conhecimento.
Afirma Valverde (1987) que Scotus
se opõe ao raciocínio de São Tomás de
Aquino, que tenta demonstrar a existência de Deus a partir
dos dados dos sentidos e que, por isso, tem uma concepção
limitada dele.
"Desse
modo, Deus ficaria reduzido à mera causa primeira do mundo
físico". (pág. 179)
Scotus, portanto,
segue outra trajetória dedutiva, a de considerar o ser a
partir de suas propriedades intrínsecas, sem recorrer aos
sentidos. Ele estabelece pares de "modos de ser" que Valverde
cita: finito e infinito, possível e necessário, entre
outros. Não é difícil para Scotus mostrar que
o homem é um ente finito (unívoco, pelo que pude entender),
que, portanto, dispensa a demonstração da existência.
A questão se torna demonstrar a existência do ente
infinito.
Scotus parte da premissa de que as coisas possivelmente
existem (embora não seja necessário que existam).
É contudo necessário que existam, partindo do fato
que existem. Então, ensina Reale que Scotus pergunta qual
é a causa ou fundamento da existência, e mostra que
não pode ser o nada, porque o nada não é causa.
Também não são as coisas, porque elas não
podem dar a existência a si mesmas (Lembremos que nessa época
ninguém cogitava da teoria da evolução de Darwin
e Wallace). Então é necessário por a razão
desta possibilidade em um ser diferente, que transcende a esfera
do produtível e das coisas possíveis.
Reale e Antiseri continuam sua explicação
mostrando que se as coisas são possíveis, o ente primeiro
também é possível. E se ele é possível,
ele existe em ato, já que nenhum outro o produziria. Por
consequência, uma vez que nenhum outro o produziria, ele é
real
Scotus supera Tomás de Aquino ao afirmar
que este ente que é causa primeira, tem por característica
interna ser infinito "porque é supremo e ilimitado".
A consequencia deste raciocínio é que "o ser
infinito é o Ser, ..., porque é o fundamento de todos
os entes e, antes ainda, de sua possibilidade." (Reale e Antiseri)
Mesmo utilizando o conceito de ente infinito para
demonstrar a existência de Deus, Scotus admite que o conceito
é "em si mesmo pobre e insuficiente, porque não
consegue nos introduzir na riqueza misteriosa de Deus".
As questões iniciais de "O Livro dos
Espíritos" apontam, portanto, para as discussões
da filosofia escolástica e situam-se no conflito entre fé,
razão e empirismo, o que sugere a participação
de espíritos que dão prova de um conhecimento cada
vez mais limitado a um grupo menor de pessoas, com o avanço
da centralidade das ciências empíricas em nossa cultura.