Estivemos atendendo a um pedido
da Aliança Municipal Espírita de Belo Horizonte, ao
estudar com os amigos do Cenáculo Espírita Thiago
Maior sobre “A natureza da alma e suas transformações”.
Em princípio seria uma revisão de dois capítulos
do livro de Allan Kardec chamado “O céu e o inferno
ou a justiça divina segundo o espiritismo”.
Dois significados diferentes
para a palavra natureza
Ao trazer ao título a questão
da natureza fomos rever quais significados são utilizados
por Kardec para essa palavra. Resolvemos usar a lógica de
uma técnica usual dos tradutores, verificar o sentido das
palavras ao longo da obra de um mesmo autor.
O dicionário Houaiss
enumera treze sentidos diferentes com que essa palavra pode ser
usada, mas nos interessam dois específicos que aparecem sob
a rubrica da filosofia: a natureza como essência, como substância
do ser (a natureza de Deus ou do homem, por exemplo) e “tudo
quanto existe no cosmos sem intromissão da consciente reflexão
humana”, ou seja, os planetas, os ecossistemas, etc.
A natureza como essência
Ao procurar em Allan Kardec qual sentido ele empregava,
encontramos textos com os dois significados, logo em “O Livro
dos Espíritos”. Ele fala em “natureza da alma”
(introdução, item II), natureza do espírito
(introdução item IV) e natureza de Deus (questão
11). Em todos esses casos, ele trata de “essências”,
e não faz sentido falar em cosmos. Isso nos leva a entender
que, em princípio, Kardec é dualista, porque entende
que existem duas substâncias diferentes: o espírito
(com é minúsculo) e a matéria (que pode ser
ou não percebida pelos cinco sentidos).
Alguns espíritas entendem que Kardec é
monista, porque o espírito não se apresenta sem o
seu perispírito (é o que ele denomina como Espírito,
com E maiúsculo, porque se encontra individualizado, capaz
de ser identificado pelos médiuns, e que se encontra na questão
76 e seguintes), mas é bastante claro que Kardec e os Espíritos
com quem ele dialoga falam de duas substâncias distintas que
interagem, como na questão 27:
“Há, então, dois elementos
gerais do Universo, a matéria e o espírito? “Sim,
e acima de tudo Deus, o criador, pai de todas as coisas...”
A natureza como “cosmos
sem intromissão da consciência humana”
Em outras situações,
Kardec usa a palavra natureza como cosmos (e não como Universo,
que seria formado a partir do espírito e da matéria).
Na introdução de O
Livro dos Espíritos, se encontra frases como “estamos
longe de conhecer todos os agentes ocultos da Natureza”, e
na questão 9 se encontra “Não podendo nenhum
ser humano criar o que a Natureza produz...”. Nesses dois
exemplos, a palavra natureza não significa essência,
mas o universo material, descrito pela física, química
e biologia, e suas leis.
Alguns tradutores de O Livro dos
Espíritos, como Guillon Ribeiro e Evandro Noleto Bezerra
perceberam essa diferença de significado, e traduziram com
uma pequena diferença: quando entendem que a palavra natureza
é cosmos, a escreveram com maiúscula, mesmo no meio
da frase, e quando entendem que é essência, publicam
em minúscula (exceto no início da frase, claro).
Quando levei a questão para
dois amigos da LIHPE, um deles me perguntou se havia consultado
o original francês. Olhei essas passagens e mais algumas em
três diferentes edições francesas que encontramos
no IPEAK e na edição bilíngue de Canuto Abreu.
Para nossa surpresa, a distinção feita não
é de Allan Kardec, que escreve natureza sempre em minúscula
(exceto onde a gramática exige maiúscula), mas dos
tradutores.
Não me parece que os tradutores
tenham agido como "traidores", como diz a expressão
italiana "traduttore traditore", mas mereceria uma nota
de rodapé nos livros, para que os leitores saibam exatamente
o que foi feito, com a finalidade de transmitir o que pensava Allan
Kardec e os Espíritos com quem dialogava, e deixando claro
o risco do tradutor haver se equivocado em sua interpretação
do texto que traduz. Não sei dizer, também, se no
passado era considerada a diferença entre natureza e Natureza,
como hoje é considerada a diferença de significado
de estado e Estado.
Concluindo
Essa questão dos sentidos diferentes para palavras iguais,
usada por Kardec em diversas situações, mais detidamente
a questão da palavra natureza, não foi estudada por
mim à exaustão, ou seja, só consultei uma dúzia
de trechos da obra kardequiana. Merece ser ampliado, para termos
uma boa compreensão dos seus livros e artigos.
Outra questão que fica relevante
é a troca da palavra Natureza pela palavra universo, entre
a quarta e quinta edições de A Gênese, ou seja,
Allan Kardec não emprega essas duas palavras como sinônimas.
Isso merece ser estudado mais detidamente.
Outra questão que se nos
impõe é distinguir o conceito de princípio
inteligente, ou espírito, como princípio ou substância
(como diziam os gregos, e nos lembrou o Sílvio Chibeni) de
princípio espiritual ou seja, uma dimensão espiritual
nos animais, por exemplo, sem todas as faculdades encontradas no
Espírito.
Para algumas pessoas pode parecer
preciosismo, mas muitos espíritas acabam fazendo o que os
Espíritos que se comunicaram com Kardec pedem que não
seja feito: ficar brigando por causa de palavras. Explicar e justificar
os significados, com abertura para o contradito, modifica a atitude
de estudos dos interessados no espiritismo.