RESUMO
Após anos de especulações,
pesquisas com DNA de fósseis levaram à fusão
de duas teorias sobre o berço e a evolução do
homem - a substituição de outras espécies e a
hibridização- num só modelo explicativo, confirmando
que, às nossas origens africanas, soma-se a aquisição
de características por miscigenação.
AS ORIGENS da nossa
espécie vêm sendo fonte de fascínio há
milênios e são responsáveis pela imensa gama de
mitos da criação registrados em diferentes culturas.
Lineu (1707-78), o grande classificador das coisas vivas, nos deu
nosso nome biológico, Homo sapiens ("homem sábio"),
e não há dúvida de que nosso crânio arredondado
nos diferencia, assim como o queixo e a arcada supraorbital pequenos.
Mas também somos notáveis por nossa linguagem, arte
e tecnologia complexa.
A questão é: onde essas características se desenvolveram?
Que lugar a humanidade pode considerar como sua terra natal? No que
diz respeito a nossos primeiros ancestrais, a resposta geralmente
aceita é a África. Foi lá que nossos primeiros
ancestrais, semelhantes a macacos, começaram a fazer seus lares
na savana. No entanto, ainda se discute ferrenhamente se foi lá
que nossa espécie nasceu.
AGENDAS RACISTAS
Quarenta anos atrás, ninguém acreditava que a origem
do homem moderno pudesse ser a África. Em alguns casos, essa
ideia se baseava em agendas racistas decadentes. Por exemplo, em 1962,
o antropólogo americano Carleton Coon afirmou: "Se a África
foi o berço da humanidade, não passou de um jardim de
infância como qualquer outro. A Europa e a Ásia foram
nossas principais escolas."
Parte da confusão se devia à ausência de precisão
ao datar evidências fósseis e arqueológicas. Nos
anos que se seguiram, contudo, tive o privilégio de ajudar
a acumular dados -fósseis, cronológicos, arqueológicos
e genéticos- que mostram que nossa espécie teve, de
fato, origem africana recente.
No entanto, como mostram as últimas evidências, essa
origem foi complexa; em meu novo livro, "The Origin of Our Species"
(a origem de nossa espécie), procuro deixar claro o que significa
ser humano e assim modificar percepções sobre nossas
origens.
NEANDERTAIS
Aos dez anos de idade, eu já era fascinado pelos humanos antigos
chamados neandertais. Aos 23, em 1971, estudante em Londres, saía
para fazer uma viagem de pesquisa de quatro meses por museus e institutos
em dez países europeus, para colher dados sobre o formato do
crânio de neandertais e seus sucessores de aparência moderna
na Europa, os homens de Cro-Magnon.
Meu objetivo era testar a teoria, então popular, segundo a
qual os neandertais e gente parecida com eles em regiões do
mundo antigo teriam sido os ancestrais dos habitantes das mesmas regiões
nos dias de hoje.
Eu dispunha de uma subvenção modesta, de modo que fui
no meu carro velho, dormio nele, acampei ou me hospedei em albergues
da juventude; na Bélgica, cheguei a passar uma noite num abrigo
para sem-tetos. Sobrevivi a confrontos em regiões de fronteira
e a dois assaltos, mas, ao final da viagem de 8.000 quilômetros,
tinha reunido um dos maiores conjuntos de dados sobre medidas do crânio
de neandertais e de homens modernos.
Nos três anos seguintes, acrescentei dados de outras amostras,
antigas e modernas, e os resultados foram claros: os neandertais tinham
desenvolvido características especiais próprias e não
pareciam ser ancestrais do homem de Cro-Magnon ou de qualquer população
moderna.
A questão era: onde nossa espécie surgiu? Em 1974, eu
não fui capaz de responder à pergunta, mas assumir o
cargo de pesquisador no Museu de História Natural significava
que eu podia prosseguir na busca.
ÁFRICA
A pesquisa trouxe pistas à tona, e, na década seguinte,
o meu trabalho -e o de alguns poucos pesquisadores- focalizou a África
como berço mais provável de nossa espécie. Permanecemos
como uma minoria isolada até 1987, quando foi publicado o artigo
"Mitochondrial DNA and the Human Evolution" (o DNA mitocondrial
e a evolução humana), de Rebecca Cann, Mark Stoneking
e Allan Wilson.
O texto levou pela primeira vez as origens do homem moderno para as
primeiras páginas de jornais do mundo inteiro, pois mostrava
que uma parte minúscula e peculiar de nosso genoma, herdada
unicamente de mãe para filha, deriva de uma ancestral humana
de há cerca de 200 mil anos. Essa mulher ficou conhecida como
a Eva Mitocondrial. Seguiu-se um furor, à medida que antropólogos
debatiam as implicações na evolução humana.
Depois disso, a teoria dita "out of Africa" (saídos
da África) -ou, como prefiro chamá-la, o modelo da "origem
africana recente" para explicar nossas origens- realmente decolou.
Minha versão propunha o seguinte pano de fundo. A espécie
antiga Homo erectus sobreviveu na Ásia oriental e na Indonésia,
mas, na Europa e na África, evoluiu e transformou-se no Homo
heidelbergensis (a espécie deve seu nome a um maxilar de 600
mil anos, encontrado na Alemanha em 1907).
DIVISÃO
Então, por volta de 400 mil anos atrás, o H. heidelbergensis
sofreu uma divisão evolutiva: ao norte do Mediterrâneo,
evoluiu para os neandertais, e ao sul do Mediterrâneo, na África,
transformou-se em nós, humanos modernos.
Por fim, há cerca de 60 mil anos, o Homo sapiens começou
a deixar a África, e, há 40 mil anos, já com
as vantagens de comportamentos e ferramentas mais complexos, se espalhou
pela Ásia e pela Europa, onde tomamos o lugar dos neandertais
e dos demais povos arcaicos que viviam fora da África. Em outras
palavras: por baixo da pele, somos todos africanos.
Nem todos os cientistas concordaram, porém. Um grupo continuou
a defender a tese da evolução multirregional, numa versão
atualizada de ideias dos anos 1930. Ela previa profundas linhagens
paralelas de evolução em cada região habitada
da África, da Europa, da Ásia e da Australásia,
partindo de variantes locais do H. erectus até as populações
que hoje vivem nas mesmas regiões.
Essas linhagens não divergiram ao longo do tempo, pois foram
unidas pela miscigenação no mundo antigo, de modo que
as características modernas pudessem evoluir, se disseminar
e se acumular ao lado de diferenças regionais de longo prazo,
como o formato do rosto e o tamanho do nariz.
Um modelo diferente, o da assimilação, levava em conta
os novos dados fósseis e genéticos e atribuiu à
África um papel-chave na evolução de características
modernas. Esse modelo, porém, previa que tais características
se disseminassem a partir da África de forma muito mais gradual
do que o meu.
Os neandertais e os povos arcaicos como eles teriam sido assimilados
através de miscigenação ampla. Assim, o surgimento
evolutivo dos traços modernos teria sido um processo de fusão,
em vez de uma substituição rápida.
APERFEIÇOAMENTOS
Quem, então, estava certo? Nos anos 1990, continuou a acumulação
de dados, tanto de populações humanas recentes como
de fósseis neandertais, que davam respaldo ao modelo da origem
africana recente. Enormes aperfeiçoamentos na recuperação
e análise de DNA antigo trouxeram ainda mais informações,
algumas delas bastante surpreendentes.
Fragmentos de fósseis da Croácia renderam um genoma
neandertal quase inteiro, fornecendo informações férteis
que prometem trazer revelações sobre a biologia dos
neandertais -da cor dos olhos e do tipo de cabelo ao formato do crânio
e às funções cerebrais.
Esses resultados mais recentes têm, em grande medida, confirmado
a separação de nossa linhagem, há cerca de 350
mil anos. Mas, quando o novo genoma neandertal foi comparado em detalhe
com o de humanos modernos de diferentes continentes, os resultados
apontaram uma variação intrigante de nossa história
evolutiva: genomas de gente da Europa, China e Nova Guiné eram
um pouco mais próximos da sequência neandertal do que
os dos africanos.
Portanto, se você é europeu, asiático ou da Nova
Guiné, é possível que tenha 2,5% de DNA neandertal
em sua composição genética.
MISCIGENAÇÃO
A explicação mais provável para essa descoberta
é que os ancestrais dos europeus, asiáticos e atuais
habitantes da Nova Guiné tenham se miscigenado com neandertais
(ou, pelo menos, com uma população que possuía
um componente de genes neandertais) no norte da África, na
Arábia ou no Oriente Médio quando saíram da África,
há cerca de 60 mil anos.
Esse êxodo antigo pode ter envolvido apenas alguns milhares
de pessoas, de modo que bastaria a absorção de alguns
poucos neandertais num grupo de H. sapiens para que o efeito genético
-fortemente ampliado quando a população de humanos modernos
explodiu- fosse perceptível dezenas de milhares de anos mais
tarde.
O avanço na reconstrução de um genoma neandertal
foi espelhado na Ásia, num trabalho igualmente notável,
sobre o grupo humano que ficou conhecido como "denisovanos".
O fóssil de um osso de dedo, provavelmente de 40 mil anos de
idade, encontrado na caverna Denisova, na Sibéria, ao lado
de um enorme dente molar, não pôde ser atribuído
a uma espécie humana em particular, apesar de também
ter tido boa parte de seu genoma reconstruído.
Isso trouxe à tona um ramo asiático até então
não reconhecido da linhagem neandertal, mas novamente com uma
variação. Aqueles denisovanos eram relacionados a um
grupo de humanos vivos: os melanésios do Sudeste Asiático
(e provavelmente também a seus vizinhos australianos).
Esses grupos carregam cerca de 5% do DNA denisovano, de outro evento
de miscigenação que deve ter acontecido quando seus
ancestrais passaram pelo sul da Ásia, há mais de 40
mil anos.
Como fica o meu modelo das origens africanas recentes diante de toda
esta complexidade e das evidências de miscigenação
com os neandertais e os denisovanos? Foi desmentido, em favor do modelo
multirregional, como afirmaram alguns?
PÊNDULO
Penso que não. Como vimos, em 1970, nenhum cientista pensava
que a África fosse o lugar de origem evolutiva dos humanos
modernos; a região era vista como atrasada e um tanto irrelevante,
e o pêndulo da opinião científica balançava
fortemente em direção aos modelos de ancestralidade
não africana e neandertal.
Vinte anos depois, o pêndulo estava começando a se mover
em favor de nossas origens africanas, à medida que as evidências
fósseis começavam a ser reforçadas pelos sinais
claros do DNA mitocondrial. O pêndulo se moveu ainda mais com
o crescente surgimento de dados fósseis, arqueológicos
e genéticos na década de 1990.
Hoje, a chegada de volumes enormes de dados de DNA, incluindo os genomas
neandertal e denisovano, sustou e até mesmo reverteu o movimento
pendular, distanciando-o da substituição absoluta. Em
lugar disso, estamos olhando para um modelo misto de hibridização
e substituição, ou de "substituição
com vazamentos". É essa dinâmica que torna tão
fascinante o estudo da evolução humana. Ciência
não é questão de estar certo ou errado, mas de
uma aproximação gradual da verdade do mundo natural.
O quadro maior é que ainda somos predominantemente (mais de
90% de nossa origem genética ancestral) de origem africana.
Mas existe uma razão especial para fazer essa observação?
Globalmente falando, a proeminência da África na história
de nossas origens não envolve um padrão evolutivo especial,
mas se deve às grandes áreas habitáveis do continente,
que ofereciam mais oportunidades para variações morfológicas
e comportamentais, e para que inovações genéticas
e comportamentais se desenvolvessem e se conservassem.
A "modernidade" não foi um pacote que teve origem
em um tempo, um lugar e uma população africanos, mas
sim um composto cujos elementos surgiram em tempos e lugares diferentes
e que, então, se aglutinaram gradualmente até assumir
a forma que reconhecemos hoje.
SELEÇÃO CULTURAL
Meus estudos me levaram a reconhecer mais, na evolução
humana recente, as forças da demografia (a necessidade de grandes
populações e redes sociais progredirem), do movimento
aleatório e da contingência (eventos do acaso) e da seleção
cultural do que a seleção natural que considerei anteriormente.
Parece que o "progresso" cultural foi intermitente durante
boa parte de nossa evolução, até que os grupos
humanos se tornaram grandes, passaram a ter indivíduos de vida
longa e a contar com redes sociais amplas, fatores que ajudaram a
maximizar as chances de inovações sobreviverem e se
acumularem.
Lineu disse, a respeito do Homo sapiens, "conhece-te a ti mesmo".
Conhecermo-nos significa reconhecer que tornar-se moderno é
o caminho que enxergamos quando olhamos para trás, para nossa
história evolutiva. Essa história nos parece especial,
é claro, porque a ela devemos nossa existência.
Aquela imagem de espécies humanas (em geral, indivíduos
do sexo masculino, que vão se tornando cada vez menos peludos
e de pele cada vez mais clara) marchando decididamente pela página,
ilustraram nossa evolução em muitos artigos populares,
mas reforçaram incorretamente a visão de que a evolução
não passou de um progresso que desembocou em nós, seu
ápice e sua realização final.
Nada poderia estar mais distante da verdade. Houve muitos outros caminhos
que poderiam ter sido trilhados; muitos deles teriam levado a um mundo
sem humanos, outros à extinção dos humanos, e
outros ainda a uma versão diferente da "modernidade".
Podemos habitar apenas uma versão do ser humano -a única
que sobrevive hoje-, mas o que é fascinante é que a
paleoantropologia nos mostra os outros caminhos para que nos tornássemos
humanos, seus êxitos e seu eventual término, fosse ele
em decorrência de fracassos ou de puro e simples azar.
Às vezes, a diferença entre fracasso e sucesso na evolução
é estreita. É certo que hoje vivemos numa situação
de precariedade extrema, enfrentando um planeta superpovoado e a perspectiva
de mudanças climáticas globais numa escala que os humanos
jamais experimentaram. Esperemos que nossa espécie esteja à
altura do desafio.