A doutrina espírita ancora-se na
observação dos fenômenos, especificamente
das manifestações espíritas. Por fenômeno
deve-se compreender todo evento que pode ser constatado pelos
sentidos humanos.
Segundo Kardec, os Espíritos atestam sua presença
de diversas maneiras. Alguns fenômenos se manifestam por
ações ocultas, que nada apresentam de ostensivo.
Outros, contudo, são caracterizados por uma ação
patente, ou por uma manifestação propriamente dita.
Há manifestações da ordem física ou
material que se traduzem por fenômenos sensíveis,
tais como ruídos, movimento e deslocamento de objetos.
Frequentemente não exprimem informações inteligíveis.
Existem, ainda, manifestações visuais ou aparições
de Espíritos. Esses geralmente constituem fenômenos
inteligentes, uma vez que são fontes de informações
portadoras de sentido. Anota Kardec que “toda manifestação
que comporta um sentido, mesmo quando não passa de simples
movimento ou ruído; que acusa certa liberdade de ação;
que responde a um pensamento ou obedece a uma vontade, é
uma manifestação inteligente. Existem em todos os
graus.” (Revista Espírita,
jan. 1858).
As informações colhidas por intermédio dos
fenômenos espíritas constituem revelações,
uma vez que nos situam na linha de descoberta do que não
conhecíamos (A Gênese,
Cap. 1, item 2). Para constituir uma
revelação, essa informação deve dizer
respeito às leis da realidade. O que equivale dizer que
somente podem ser consideradas como revelação se
estiverem no caminho da verdade (A
Gênese, Cap. 1, item 3).
A ciência moderna permitiu o conhecimento da realidade por
postular o necessário controle por meio dos fatos concretos.
Kardec situa o sistema espírita nessa linha, ao esclarecer
que as informações provindas do fenômeno espiritual
podem e devem ser cotejadas com os fatos: “toda revelação
desmentida por fatos deixa de o ser, se for atribuída a
Deus, não podendo Deus mentir, nem se enganar, ela não
pode emanar dele: deve ser considerada produto de uma concepção
humana.” (A Gênese, Cap.
1, item 3). Aqui, Kardec frisa que
os conteúdos revelados por via da mediunidade também
devem ser sindicados pelo confronto com os fatos, o que demonstra
que a epistemologia espírita vai muito além do controle
universal do ensino dos Espíritos.
Os fenômenos objeto de estudo do Espiritismo são
caracterizados por peculiaridades de destaque, em comparação
com aqueles estudados pelas ciências convencionais (mainstream
sciences). Constatou Kardec: “nas ciências naturais,
opera-se sobre a matéria bruta, que se manipula à
vontade, tendo-se quase sempre a certeza de poderem regular-se
os efeitos. No Espiritismo, temos que lidar com inteligências
que gozam de liberdade e que a cada instante nos provam não
estar submetidas aos nossos caprichos.” (O
Livro dos Médiuns, 1ª Parte, Cap. III, item 31).
Ao contrário do cientista que analisa um objeto inerte,
o estudioso espírita lida com seres inteligentes. Permita-se
dizer, nesse sentido, que o Espiritismo se particulariza por se
ocupar em grande parte do estudo de um “fenômeno que
fala”. Tal como se apresenta, o fenômeno espírita
é um desafio que exige uma inovadora abordagem metodológica.
Kardec identificou os meandros do novo campo que se abria à
pesquisa. Percebeu que entre as informações provindas
das fontes mediúnicas, existem aquelas que podem ser diretamente
cotejadas com fatos objetivos, enquanto há relatos que,
ante a ausência de elementos objetivos para a sua verificação,
serão melhor compreendidos por meio do contraponto entre
as diversas mensagens que versam sobre o mesmo assunto. Para essa
última hipótese o grande sistematizador teceu considerações
em torno do que denominou de “universalidade do ensino dos
Espíritos”. Não se trata propriamente de um
método científico, assim como não o é
a chamada “ancianidade dos fenômenos espíritas”
(Revista Espírita, mar. 1860),
mas sim de um postulado da epistemologia espírita em sentido
estrito. Na base deste tema encontra-se o princípio da
“universalidade das observac¸o~es”, de âmbito
filosófico (Revista Espírita, mar. 1869), assunto
que requer considerações detidas em trabalho específico.
Em apertada síntese, e para empregar as palavras de Kardec,
são informações derivadas do crivo da universalidade
do ensino dos Espíritos aquelas “instruções
idênticas, dadas em todos os lugares, por médiuns
estranhos entre si e que não sofram as mesmas influências,
notoriamente isentos de obsessões e assistidos por Espíritos
bons e esclarecidos.” (Revista
Espírita, mar. 1864). A finalidade
deste critério é a de servir como remédio
contra opiniões individuais de espíritos (Revista
Espírita, ago. 1867), a de
afastar do conjunto dos princípios do Espiritismo sistemas
excêntricos, provenientes da concepção de
um indivíduo (Revista Espírita,
abr. 1864). Dessa forma, a corroboração
de informações por fontes diversas “tem o
valor de uma obra coletiva” (Revista
Espírita, abr. 1866). Kardec
compreendeu uma multiplicidade qualitativa entre os Espíritos
comunicantes. Os Espíritos, em virtude da diferença
entre as suas capacidades, não poderiam ser tomados isoladamente
como fontes seguras de informações. (O
Evangelho Segundo o Espiritismo, Introdução, item
12).
Não se pode perder de vista que a universalidade do ensino
dos Espíritos possui um âmbito próprio e,
portanto, restrito de aplicação. Ela não
deve ser tomada na condição de lupa geral para toda
e qualquer avaliação pelo ângulo do sistema
espírita. Ao tratar da revelação espírita,
Kardec esclarece que ela “tem duplo caráter: participa
ao mesmo tempo da revelação divina e da revelação
científica.” (A Gênese,
Cap. 1, item 13). A revelação
científica relacionada ao objeto de estudo do Espiritismo
conta com mecanismos objetivos de constatação e
suas conclusões consolidadas são incorporadas ao
sistema espírita. Lembre-se que “os espíritas
apoiam-se em dados mais positivos, em fatos que eles próprios
podem constatar” (Revista Espírita,
jan. 1865), e nesse âmbito a
universalidade dos ensinos dos Espíritos não apresenta
a mesma função. Assim, o citado critério
da universalidade diz mais particularmente aos fatos espirituais
que os homens não podem perscrutar diretamente por si mesmos,
mas que atualmente podem ser compreendidos por intermédio
do “fenômeno que fala” (A
Gênese, Cap. 1, item 13). Por
estar relacionada à revelação de leis que
não podem ser mensuradas pelos sentidos e mecanismos humanos,
a finalidade primordial da universalidade dos ensinos dos Espíritos
é a de solucionar conflitos ou contradições
entre relatos ou teorias concorrentes provenientes de fontes comprovadamente
mediúnicas (Revista Espírita,
mar. 1864). Significa dizer que a
universalidade dos ensinos dos Espíritos não possui
o mesmo préstimo quando a informação, o relato
ou a teoria são confirmados pela via da experimentação
positiva (O Evangelho Segundo o Espiritismo,
Introdução, item 29).
Conclusão que deriva desta é a de que na medida
em que evoluírem os mecanismos científicos de sondagem
da realidade, reduzir-se-á proporcionalmente a participação
da universalidade dos ensinos dos Espíritos. Esse é
um aspecto da evolução da epistemologia espírita
que precisa ser explorado.
Outra limitação intrínseca ao critério
da universalidade dos ensinos dos Espíritos é a
sua finalidade de servir à consolidação dos
princípios da doutrina, não aos assuntos secundários
(Revista Espírita, abr. 1864).
Kardec não tece considerações pormenorizadas
sobre o ponto, uma vez que para determinados setores da epistemologia
espírita pendeu mais para o enfoque pragmático do
que para o desdobramento teórico. Mas nesse particular
cabe a distinção entre constatações
gerais, nas quais se incluem os princípios da doutrina
espírita, e constatações pontuais, próprias
da ciência convencional que lida com os fenômenos
materiais. Quanto mais próximo do controle por parte do
observador, mais o objeto analisado permite a identificação
de detalhes. Uma vez que o controle da universalidade lida com
a “objetividade fluida” do “fenômeno que
fala”, não concede ao investigador a mesma potencialidade
para obtenção das mais pontuais e específicas
constatações. Nesse campo, deve o estudioso satisfazer-se
com constatações genéricas. É preciso
ter em mente, assim, que não por acaso os princípios
da doutrina se encontram relacionados ao crivo da universalidade.
Esse critério naturalmente conduz à apuração
de princípios gerais em virtude da limitação
que lhe é inerente. Isso não obsta, por outro lado,
constatações pontuais derivadas do fenômeno
espiritual por outros meios, inclusive pela via da “revelação
científica”.
Em suma, são duas as principais limitações
do critério da universalidade dos ensinos dos Espíritos:
(i) cinge-se à dedução dos princípios
ou fundamentos das leis que regem a realidade espiritual; (ii)
presta-se a solucionar relatos conflitantes dos espíritos
sobre assuntos que não podem ser diretamente esclarecidos
pelos homens mediante confronto com parâmetros objetivos.
Isso, contudo, não é suficiente para situar o critério
da universalidade do ensino dos Espíritos no conjunto maior
da epistemologia espírita. Há muito mais a ser desenvolvido
sobre as pedras angulares assentadas por Kardec. Entre outros
assuntos, tenha-se (a) a relação do critério
em tela com a aplicação da razão, da lógica
e do bom-senso (A Gênese, Cap.
1, itens 50, 57; Revista Espírita, jun. de 1867);
(b) os pressupostos necessários e anteriores à aplicação
do critério da universalidade, relativos à constatação
do médium e da mediunidade (= fenômeno). São
temas que cabem em outro estudo.
Se na universalidade dos ensinos dos Espíritos há
um confronto entre informações oriundas de fontes
mediúnicas (= corroboração relatos/relatos),
à semelhança do confronto que preside a análise
de prova testemunhal pela via judicial, a epistemologia espírita
também permite confirmações pelo confronto
entre informações mediúnicas e fatos (= corroboração
relatos/fatos). Partindo-se do pressuposto de que uma informação
pode ser respaldada por outras fontes, é fácil concluir
que para além de conteúdos obtidos pela via mediúnica
atuarem como fatores de corroboração entre si, estes
também podem ser confirmados pelo cotejo com fatos concretos
apuráveis na realidade. A título de parâmetros
objetivos que operam na condição de elementos de
corroboração da informação proveniente
da mediunidade, tenha-se os seguintes exemplos:
(i) materializações, confirmadas em sua
realidade por registros fidedignos ou outros meios científicos.
Segundo Kardec, “de todas as manifestações
espíritas, as mais interessantes, sem contestação
possível, são aquelas por meio das quais os Espíritos
se tornam visíveis.” (O
Livro dos Médiuns, 2ª Parte, Cap. VI, item 100).
A materialização de determinado espírito
é, por si, fonte positiva para inúmeras constatações,
como a própria existência da imortalidade da alma.
Quando, por meio dessa materialização, o Espírito
atesta a sua superioridade na escala espírita (e.g.,
quando afasta uma doença de cura inalcançável
para a ciência humana) e, em acréscimo, manifesta
algumas assertivas, o conteúdo dessas declarações
pode e deve ser levado em consideração, a despeito
de não ter passado pelo crivo da universalidade do ensino
dos Espíritos. Esse conteúdo será avaliado,
obviamente, por todos os ângulos da epistemologia espírita,
mas não será desacreditado tão-somente em
virtude da ausência de confirmação por parte
de determinado número de fontes mediúnicas. A materialização
de objetos (apports), como a de um jornal antigo, tal
qual se deu nas experiências de Scole (SOLOMON, Grant; SOLOMON,
Jane. The Scole Experiment - Scientific Evidence for Life
After Death. Sidney: Campion Publishing, 2012. Vide,
ainda, The Afterlife Investigations - Edição
Brasileira, https://www.youtube.com/watch?v=v_SYq-EFuhE&t=26s),
permite a confirmação de fatos e eventos independentemente
da corroboração por parte do crivo da universalidade.
A materialização, por peculiar fenômeno de
escrita direta em filme fotográfico, de um diagrama elétrico
apresentado para facilitar a comunicação por instrumentos,
cuja estruturação se mostrou eficaz na esteira da
dica espiritual, tal como verificado nos fenômenos de Scole
(KEEN, Montague; ELLISON, Arthur; FONTANA, David. The Scole
Report. London: Society for Psychical Research, 1999, p.
118), também dispensa a confirmação por outras
fontes espirituais para concluir-se a respeito da veracidade da
revelação. Ou seja, o próprio funcionamento
do mecanismo demonstrou que a comunicação se pautava
pela verdade.
(ii) constatações diretas por aparelhos.
Quando, por intermédio de técnicas típicas
das “ciências rígidas” (hard sciences)
ou das ciências oficiais (mainstream sciences),
faz-se possível constatar a realidade espiritual (vide,
por exemplo, as pesquisas de Gary Schwartz - https://www.youtube.com/watch?v=zDvjA4u9y14&t=2599s),
para as informações objetivas que podem ser colhidas
por intermédio desses mecanismos não parece imprescindível
a atuação da universalidade do ensino dos Espíritos.
Os próprios instrumentos de pesquisa se encarregam de corroborar
a informação.
(iii) informações confirmadas por fontes
extracognitivas. A mediunidade permite acessar informações
que estão fora da esfera de cognição do médium
ou de participantes do entorno. Nesses casos, a confirmação
da informação pode se dar por uma via objetiva.
As cartas psicografadas por Chico Xavier oferecem grande amostragem
a título de “elementos de corroboração”.
Entre as inúmeras comunicações, tenha-se
a carta psicografada para a atriz Nair Belo (https://www.youtube.com/watch?v=JgFyB_NGgk8).
É o que se verifica, igualmente, na linha da pesquisa desenvolvida
por Ian Stevenson e Jim Tucker sobre a avaliação
de recordações de vidas passadas (vide, além
dos livros desses autores, o documentário “Histórias
de Vidas Passadas” - https://www.youtube.com/watch?v=-ts9NPysm-0).
Esses cientistas não se utilizaram da universalidade dos
ensinos dos Espíritos.
(iv) informações confirmadas pela historiografia
especializada. Informações provindas do
fenômeno mediúnico podem aduzir dados passíveis
de verificação por meio de pesquisa histórica
especializada que não se encontrava à disposição
do público geral. O desconhecimento dessas informações
por parte do médium pode se apresentar por um conjunto
de fatores, entre os quais cabe apontar: (1) a especificidade
da informação; (2) a forma de consolidação
da informação; (3) a indexação ou
a apresentação topológica da informação;
(4) a presença de barreiras linguísticas; (5) a
dificuldade de acesso à informação; (6) a
necessidade de conhecimentos interdisciplinares para compreender
a informação. Nesses casos, a informação
trazida pelo médium é confirmada por elementos exteriores,
que apresentam, em maior ou menor grau, alguma objetividade. O
elemento de corroboração é aquele obtido
pelo ângulo da historiografia. Nesse cotejo entre a informação
espiritual e a evidência histórica, a universalidade
do ensino dos Espíritos apresenta importância colateral.
A fim de ilustrar a possibilidade de fatos e eventos objetivos
atuarem na condição de elementos de corroboração
da informação mediúnica, cabe citar um exemplo
a partir da psicografia de Francisco Cândido Xavier. Especificamente,
avalia-se a revelação a respeito da existência
da colônia espiritual intitulada Nosso Lar e de uma proeminente
personalidade desta, o Ministro Clarêncio, ambas informações
apresentadas na obra “Nosso Lar”.
Há quem questione a existência da colônia de
Nosso Lar, ou mesmo de qualquer cidade no plano espiritual, sob
o pretexto de um pressuposto “rigor kardequiano”.
Note-se, todavia, que as informações em destaque
foram confirmadas por notável fenômeno de materialização
obtido por intermédio de Francisco Peixoto Lins, também
conhecido como Peixotinho. Segundo relatado por testemunhas no
documentário “Peixotinho e a Materialização
dos Espíritos” (https://www.youtube.com/watch?v=IMdvY3nVgPE),
designadamente no trecho sob o título “A materialização
de Clarêncio”, em específica reunião
mediúnica que contou com a participação deste
médium, concretizou-se a manifestação do
espírito de Clarêncio. O depoimento atesta que até
mesmo outros Espíritos que já se encontraram materializados
se espantaram com a aparição e manifestaram, verbalmente,
tratar-se do Ministro de Nosso Lar.
Cabe refletir, diante desta evidência, que consubstancia
valioso elemento de corroboração, se o chamado controle
universal do ensino dos Espíritos é pressuposto
inafastável, segundo a epistemologia espírita, para
que se possa afirmar acerca da existência do espírito
de Clarêncio, Ministro da colônia espiritual Nosso
Lar. Parece evidente que desprezar a importância da materialização
fenomênica, em casos como o presente, na condição
de elemento de corroboração da informação
mediúnica, aponta para um apego a certa ótica que
se pretende defender em detrimento da racionalidade que deve estar
na base da epistemologia espírita. É de se questionar
como é possível um rigor, em nome de Kardec, contra
os seus próprios ensinamentos. A materialização
de Clarêncio, portanto, é um exemplo que convida
para o necessário desenvolvimento da epistemologia espírita,
na esteira da abertura evolutiva do próprio Espiritismo.
Essa é uma tarefa que permitirá a adequada avaliação
das contribuições mediúnicas que se seguiram
à sistematização de Kardec. Lembre-se, em
coro com o citado mestre, que para arrancar o joio, não
se deve arrancar o bom grão. (Revista
Espírita, abr. 1866).