Espiritualidade e Sociedade




Marco Paulo Denucci Di Spirito

>     Limites da universalidade do ensino dos Espíritos. O exemplo da materialização de Clarêncio

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Marco Paulo Denucci Di Spirito
>   Limites da universalidade do ensino dos Espíritos. O exemplo da materialização de Clarêncio

 


Portal Saber Espiritismo
27 de fevereiro de 2018

 

 

A doutrina espírita ancora-se na observação dos fenômenos, especificamente das manifestações espíritas. Por fenômeno deve-se compreender todo evento que pode ser constatado pelos sentidos humanos.

Segundo Kardec, os Espíritos atestam sua presença de diversas maneiras. Alguns fenômenos se manifestam por ações ocultas, que nada apresentam de ostensivo. Outros, contudo, são caracterizados por uma ação patente, ou por uma manifestação propriamente dita. Há manifestações da ordem física ou material que se traduzem por fenômenos sensíveis, tais como ruídos, movimento e deslocamento de objetos. Frequentemente não exprimem informações inteligíveis. Existem, ainda, manifestações visuais ou aparições de Espíritos. Esses geralmente constituem fenômenos inteligentes, uma vez que são fontes de informações portadoras de sentido. Anota Kardec que “toda manifestação que comporta um sentido, mesmo quando não passa de simples movimento ou ruído; que acusa certa liberdade de ação; que responde a um pensamento ou obedece a uma vontade, é uma manifestação inteligente. Existem em todos os graus.”
(Revista Espírita, jan. 1858).

As informações colhidas por intermédio dos fenômenos espíritas constituem revelações, uma vez que nos situam na linha de descoberta do que não conhecíamos (
A Gênese, Cap. 1, item 2). Para constituir uma revelação, essa informação deve dizer respeito às leis da realidade. O que equivale dizer que somente podem ser consideradas como revelação se estiverem no caminho da verdade (A Gênese, Cap. 1, item 3).

A ciência moderna permitiu o conhecimento da realidade por postular o necessário controle por meio dos fatos concretos. Kardec situa o sistema espírita nessa linha, ao esclarecer que as informações provindas do fenômeno espiritual podem e devem ser cotejadas com os fatos: “toda revelação desmentida por fatos deixa de o ser, se for atribuída a Deus, não podendo Deus mentir, nem se enganar, ela não pode emanar dele: deve ser considerada produto de uma concepção humana.”
(A Gênese, Cap. 1, item 3). Aqui, Kardec frisa que os conteúdos revelados por via da mediunidade também devem ser sindicados pelo confronto com os fatos, o que demonstra que a epistemologia espírita vai muito além do controle universal do ensino dos Espíritos.

Os fenômenos objeto de estudo do Espiritismo são caracterizados por peculiaridades de destaque, em comparação com aqueles estudados pelas ciências convencionais (mainstream sciences). Constatou Kardec: “nas ciências naturais, opera-se sobre a matéria bruta, que se manipula à vontade, tendo-se quase sempre a certeza de poderem regular-se os efeitos. No Espiritismo, temos que lidar com inteligências que gozam de liberdade e que a cada instante nos provam não estar submetidas aos nossos caprichos.”
(O Livro dos Médiuns, 1ª Parte, Cap. III, item 31). Ao contrário do cientista que analisa um objeto inerte, o estudioso espírita lida com seres inteligentes. Permita-se dizer, nesse sentido, que o Espiritismo se particulariza por se ocupar em grande parte do estudo de um “fenômeno que fala”. Tal como se apresenta, o fenômeno espírita é um desafio que exige uma inovadora abordagem metodológica.

Kardec identificou os meandros do novo campo que se abria à pesquisa. Percebeu que entre as informações provindas das fontes mediúnicas, existem aquelas que podem ser diretamente cotejadas com fatos objetivos, enquanto há relatos que, ante a ausência de elementos objetivos para a sua verificação, serão melhor compreendidos por meio do contraponto entre as diversas mensagens que versam sobre o mesmo assunto. Para essa última hipótese o grande sistematizador teceu considerações em torno do que denominou de “universalidade do ensino dos Espíritos”. Não se trata propriamente de um método científico, assim como não o é a chamada “ancianidade dos fenômenos espíritas”
(Revista Espírita, mar. 1860), mas sim de um postulado da epistemologia espírita em sentido estrito. Na base deste tema encontra-se o princípio da “universalidade das observac¸o~es”, de âmbito filosófico (Revista Espírita, mar. 1869), assunto que requer considerações detidas em trabalho específico.

Em apertada síntese, e para empregar as palavras de Kardec, são informações derivadas do crivo da universalidade do ensino dos Espíritos aquelas “instruções idênticas, dadas em todos os lugares, por médiuns estranhos entre si e que não sofram as mesmas influências, notoriamente isentos de obsessões e assistidos por Espíritos bons e esclarecidos.”
(Revista Espírita, mar. 1864). A finalidade deste critério é a de servir como remédio contra opiniões individuais de espíritos (Revista Espírita, ago. 1867), a de afastar do conjunto dos princípios do Espiritismo sistemas excêntricos, provenientes da concepção de um indivíduo (Revista Espírita, abr. 1864). Dessa forma, a corroboração de informações por fontes diversas “tem o valor de uma obra coletiva” (Revista Espírita, abr. 1866). Kardec compreendeu uma multiplicidade qualitativa entre os Espíritos comunicantes. Os Espíritos, em virtude da diferença entre as suas capacidades, não poderiam ser tomados isoladamente como fontes seguras de informações. (O Evangelho Segundo o Espiritismo, Introdução, item 12).

Não se pode perder de vista que a universalidade do ensino dos Espíritos possui um âmbito próprio e, portanto, restrito de aplicação. Ela não deve ser tomada na condição de lupa geral para toda e qualquer avaliação pelo ângulo do sistema espírita. Ao tratar da revelação espírita, Kardec esclarece que ela “tem duplo caráter: participa ao mesmo tempo da revelação divina e da revelação científica.”
(A Gênese, Cap. 1, item 13). A revelação científica relacionada ao objeto de estudo do Espiritismo conta com mecanismos objetivos de constatação e suas conclusões consolidadas são incorporadas ao sistema espírita. Lembre-se que “os espíritas apoiam-se em dados mais positivos, em fatos que eles próprios podem constatar” (Revista Espírita, jan. 1865), e nesse âmbito a universalidade dos ensinos dos Espíritos não apresenta a mesma função. Assim, o citado critério da universalidade diz mais particularmente aos fatos espirituais que os homens não podem perscrutar diretamente por si mesmos, mas que atualmente podem ser compreendidos por intermédio do “fenômeno que fala” (A Gênese, Cap. 1, item 13). Por estar relacionada à revelação de leis que não podem ser mensuradas pelos sentidos e mecanismos humanos, a finalidade primordial da universalidade dos ensinos dos Espíritos é a de solucionar conflitos ou contradições entre relatos ou teorias concorrentes provenientes de fontes comprovadamente mediúnicas (Revista Espírita, mar. 1864). Significa dizer que a universalidade dos ensinos dos Espíritos não possui o mesmo préstimo quando a informação, o relato ou a teoria são confirmados pela via da experimentação positiva (O Evangelho Segundo o Espiritismo, Introdução, item 29). Conclusão que deriva desta é a de que na medida em que evoluírem os mecanismos científicos de sondagem da realidade, reduzir-se-á proporcionalmente a participação da universalidade dos ensinos dos Espíritos. Esse é um aspecto da evolução da epistemologia espírita que precisa ser explorado.

Outra limitação intrínseca ao critério da universalidade dos ensinos dos Espíritos é a sua finalidade de servir à consolidação dos princípios da doutrina, não aos assuntos secundários
(Revista Espírita, abr. 1864). Kardec não tece considerações pormenorizadas sobre o ponto, uma vez que para determinados setores da epistemologia espírita pendeu mais para o enfoque pragmático do que para o desdobramento teórico. Mas nesse particular cabe a distinção entre constatações gerais, nas quais se incluem os princípios da doutrina espírita, e constatações pontuais, próprias da ciência convencional que lida com os fenômenos materiais. Quanto mais próximo do controle por parte do observador, mais o objeto analisado permite a identificação de detalhes. Uma vez que o controle da universalidade lida com a “objetividade fluida” do “fenômeno que fala”, não concede ao investigador a mesma potencialidade para obtenção das mais pontuais e específicas constatações. Nesse campo, deve o estudioso satisfazer-se com constatações genéricas. É preciso ter em mente, assim, que não por acaso os princípios da doutrina se encontram relacionados ao crivo da universalidade. Esse critério naturalmente conduz à apuração de princípios gerais em virtude da limitação que lhe é inerente. Isso não obsta, por outro lado, constatações pontuais derivadas do fenômeno espiritual por outros meios, inclusive pela via da “revelação científica”.

Em suma, são duas as principais limitações do critério da universalidade dos ensinos dos Espíritos: (i) cinge-se à dedução dos princípios ou fundamentos das leis que regem a realidade espiritual; (ii) presta-se a solucionar relatos conflitantes dos espíritos sobre assuntos que não podem ser diretamente esclarecidos pelos homens mediante confronto com parâmetros objetivos.

Isso, contudo, não é suficiente para situar o critério da universalidade do ensino dos Espíritos no conjunto maior da epistemologia espírita. Há muito mais a ser desenvolvido sobre as pedras angulares assentadas por Kardec. Entre outros assuntos, tenha-se (a) a relação do critério em tela com a aplicação da razão, da lógica e do bom-senso
(A Gênese, Cap. 1, itens 50, 57; Revista Espírita, jun. de 1867); (b) os pressupostos necessários e anteriores à aplicação do critério da universalidade, relativos à constatação do médium e da mediunidade (= fenômeno). São temas que cabem em outro estudo.

Se na universalidade dos ensinos dos Espíritos há um confronto entre informações oriundas de fontes mediúnicas (= corroboração relatos/relatos), à semelhança do confronto que preside a análise de prova testemunhal pela via judicial, a epistemologia espírita também permite confirmações pelo confronto entre informações mediúnicas e fatos (= corroboração relatos/fatos). Partindo-se do pressuposto de que uma informação pode ser respaldada por outras fontes, é fácil concluir que para além de conteúdos obtidos pela via mediúnica atuarem como fatores de corroboração entre si, estes também podem ser confirmados pelo cotejo com fatos concretos apuráveis na realidade. A título de parâmetros objetivos que operam na condição de elementos de corroboração da informação proveniente da mediunidade, tenha-se os seguintes exemplos:

(i) materializações, confirmadas em sua realidade por registros fidedignos ou outros meios científicos. Segundo Kardec, “de todas as manifestações espíritas, as mais interessantes, sem contestação possível, são aquelas por meio das quais os Espíritos se tornam visíveis.”
(O Livro dos Médiuns, 2ª Parte, Cap. VI, item 100). A materialização de determinado espírito é, por si, fonte positiva para inúmeras constatações, como a própria existência da imortalidade da alma. Quando, por meio dessa materialização, o Espírito atesta a sua superioridade na escala espírita (e.g., quando afasta uma doença de cura inalcançável para a ciência humana) e, em acréscimo, manifesta algumas assertivas, o conteúdo dessas declarações pode e deve ser levado em consideração, a despeito de não ter passado pelo crivo da universalidade do ensino dos Espíritos. Esse conteúdo será avaliado, obviamente, por todos os ângulos da epistemologia espírita, mas não será desacreditado tão-somente em virtude da ausência de confirmação por parte de determinado número de fontes mediúnicas. A materialização de objetos (apports), como a de um jornal antigo, tal qual se deu nas experiências de Scole (SOLOMON, Grant; SOLOMON, Jane. The Scole Experiment - Scientific Evidence for Life After Death. Sidney: Campion Publishing, 2012. Vide, ainda, The Afterlife Investigations - Edição Brasileira, https://www.youtube.com/watch?v=v_SYq-EFuhE&t=26s), permite a confirmação de fatos e eventos independentemente da corroboração por parte do crivo da universalidade. A materialização, por peculiar fenômeno de escrita direta em filme fotográfico, de um diagrama elétrico apresentado para facilitar a comunicação por instrumentos, cuja estruturação se mostrou eficaz na esteira da dica espiritual, tal como verificado nos fenômenos de Scole (KEEN, Montague; ELLISON, Arthur; FONTANA, David. The Scole Report. London: Society for Psychical Research, 1999, p. 118), também dispensa a confirmação por outras fontes espirituais para concluir-se a respeito da veracidade da revelação. Ou seja, o próprio funcionamento do mecanismo demonstrou que a comunicação se pautava pela verdade.

(ii) constatações diretas por aparelhos. Quando, por intermédio de técnicas típicas das “ciências rígidas” (hard sciences) ou das ciências oficiais (mainstream sciences), faz-se possível constatar a realidade espiritual (vide, por exemplo, as pesquisas de Gary Schwartz - https://www.youtube.com/watch?v=zDvjA4u9y14&t=2599s), para as informações objetivas que podem ser colhidas por intermédio desses mecanismos não parece imprescindível a atuação da universalidade do ensino dos Espíritos. Os próprios instrumentos de pesquisa se encarregam de corroborar a informação.

(iii) informações confirmadas por fontes extracognitivas. A mediunidade permite acessar informações que estão fora da esfera de cognição do médium ou de participantes do entorno. Nesses casos, a confirmação da informação pode se dar por uma via objetiva. As cartas psicografadas por Chico Xavier oferecem grande amostragem a título de “elementos de corroboração”. Entre as inúmeras comunicações, tenha-se a carta psicografada para a atriz Nair Belo (https://www.youtube.com/watch?v=JgFyB_NGgk8). É o que se verifica, igualmente, na linha da pesquisa desenvolvida por Ian Stevenson e Jim Tucker sobre a avaliação de recordações de vidas passadas (vide, além dos livros desses autores, o documentário “Histórias de Vidas Passadas” - https://www.youtube.com/watch?v=-ts9NPysm-0). Esses cientistas não se utilizaram da universalidade dos ensinos dos Espíritos.

(iv) informações confirmadas pela historiografia especializada. Informações provindas do fenômeno mediúnico podem aduzir dados passíveis de verificação por meio de pesquisa histórica especializada que não se encontrava à disposição do público geral. O desconhecimento dessas informações por parte do médium pode se apresentar por um conjunto de fatores, entre os quais cabe apontar: (1) a especificidade da informação; (2) a forma de consolidação da informação; (3) a indexação ou a apresentação topológica da informação; (4) a presença de barreiras linguísticas; (5) a dificuldade de acesso à informação; (6) a necessidade de conhecimentos interdisciplinares para compreender a informação. Nesses casos, a informação trazida pelo médium é confirmada por elementos exteriores, que apresentam, em maior ou menor grau, alguma objetividade. O elemento de corroboração é aquele obtido pelo ângulo da historiografia. Nesse cotejo entre a informação espiritual e a evidência histórica, a universalidade do ensino dos Espíritos apresenta importância colateral.

A fim de ilustrar a possibilidade de fatos e eventos objetivos atuarem na condição de elementos de corroboração da informação mediúnica, cabe citar um exemplo a partir da psicografia de Francisco Cândido Xavier. Especificamente, avalia-se a revelação a respeito da existência da colônia espiritual intitulada Nosso Lar e de uma proeminente personalidade desta, o Ministro Clarêncio, ambas informações apresentadas na obra “Nosso Lar”.

Há quem questione a existência da colônia de Nosso Lar, ou mesmo de qualquer cidade no plano espiritual, sob o pretexto de um pressuposto “rigor kardequiano”. Note-se, todavia, que as informações em destaque foram confirmadas por notável fenômeno de materialização obtido por intermédio de Francisco Peixoto Lins, também conhecido como Peixotinho. Segundo relatado por testemunhas no documentário “Peixotinho e a Materialização dos Espíritos” (https://www.youtube.com/watch?v=IMdvY3nVgPE), designadamente no trecho sob o título “A materialização de Clarêncio”, em específica reunião mediúnica que contou com a participação deste médium, concretizou-se a manifestação do espírito de Clarêncio. O depoimento atesta que até mesmo outros Espíritos que já se encontraram materializados se espantaram com a aparição e manifestaram, verbalmente, tratar-se do Ministro de Nosso Lar.

Cabe refletir, diante desta evidência, que consubstancia valioso elemento de corroboração, se o chamado controle universal do ensino dos Espíritos é pressuposto inafastável, segundo a epistemologia espírita, para que se possa afirmar acerca da existência do espírito de Clarêncio, Ministro da colônia espiritual Nosso Lar. Parece evidente que desprezar a importância da materialização fenomênica, em casos como o presente, na condição de elemento de corroboração da informação mediúnica, aponta para um apego a certa ótica que se pretende defender em detrimento da racionalidade que deve estar na base da epistemologia espírita. É de se questionar como é possível um rigor, em nome de Kardec, contra os seus próprios ensinamentos. A materialização de Clarêncio, portanto, é um exemplo que convida para o necessário desenvolvimento da epistemologia espírita, na esteira da abertura evolutiva do próprio Espiritismo. Essa é uma tarefa que permitirá a adequada avaliação das contribuições mediúnicas que se seguiram à sistematização de Kardec. Lembre-se, em coro com o citado mestre, que para arrancar o joio, não se deve arrancar o bom grão. (
Revista Espírita, abr. 1866).

 

Fonte: http://www.saberespiritismo.com/2018/02/limites-da-universalidade-do-ensino-dos-espiritos-o-exemplo-da-materializacao-de-clarencio.html

 




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