E as paixões hoje são quase as
mesmas de ontem, senão mais açuladas, mais violentas
e devastadoras, no homem que prossegue inquieto.
Joanna de Ângelis
A maldade dos homens sempre inquietou
os pensadores dos mais diversos campos do saber e da ação
humana: filosofia, ciência, arte, religião.
Recentemente o Jornal do Brasil publicou
em seu caderno Idéias uma resenha sobre uma obra que trata deste
tema. O livro em questão é O mal no pensamento
moderno, de Susan Neimam e o título
e subtítulo da matéria, assinada por Joel Macedo,
é também expressivo: “O mal nosso de
cada dia - Filósofa parte do terremoto de Lisboa para mostrar
como o mal deixou de ser divino para se tornar criação
do homem”.
Para a autora, o terremoto de Lisboa
em 1755 é um divisor de águas nas concepções
sobre o mal. Antes deste evento que abalou a Europa, prevalecia “a
visão de males naturais como punição para males
morais”.
Nas palavras do resenhista:
Lisboa aboliu as causas morais, absolveu
Deus e os pecados coletivos, e os terremotos passaram a ser vistos como
desastres naturais, algo fora da intenção divina ou responsabilidade
humana. Explicar o mal como processos naturais, implicando mais a natureza
em si, foi uma forma de tornar o mundo menos ameaçador.
Deus não é mais agente
punitivo, causa de males que retornam aos homens como forma de castigo.
O mal depois de Lisboa é reduzido ao seu aspecto moral, aquele
praticado pelo homem, por deliberação de sua vontade.
Dentro de certos padrões previsíveis
os males humanos pareciam não mais destinados a inquietar os
filósofos, pois que o mal parecia ter limites... O Holocausto
(extermínio dos judeus e outras vítimas durante a Segunda
Grande Guerra), no entanto, reavivou a discussão sobre os limites
da barbárie, da perversão humana, lançando na atmosfera
intelectual européia e mundial uma onda de pessimismo e descrença.
Apesar da descrença na Providência
Divina, que se acentuaria no pós-guerra, vozes se levantaram
para absolver Deus, por sua possível omissão diante das
atrocidades.(Não se acredita muito Nele, mas quando ocorre algo
grave, O acusamos de não se fazer presente, quando Ele na verdade,
nem mesmo fora convidado a participar de nossas vidas, antes das tragédias...)
Estamos nos referindo particularmente
a Hanna Arendt. Filósofa judia, radicada nos
Estados Unidos, ela estudou profundamente as questões do mal
e suas discussões estão presentes no livro Eichmann em
Jerusalém, que trata do julgamento do carrasco nazista, responsável
pela morte de milhares de pessoas.
Partindo do caso Eichmann ela pondera
que o mal pode tornar-se banal e espalhar-se pelo mundo dos homens como
um fungo, porém apenas em sua superfície. As raízes
do mal não estão definitivamente instaladas no coração
do homem e por não conseguirem penetrá-lo profundamente
a ponto de fazer nele morada, podem ser arrancadas.
A sua defesa da Divindade encontra-se
no trecho de uma carta enviada a um amigo, na qual afirma que
“O mundo como Deus o criou parece-me um mundo bom.''
Com Deus absolvido (mesmo que parcialmente)
pela criação do mal e suas conseqüências, vejamos
a visão espírita sobre esta questão.
A visão
espírita do mal
Para a doutrina dos espíritos
o mal é criação do próprio homem e não
tem existência senão temporária, transitória,
pois no arranjo maior da Vida não tem sentido a permanência
do mal. O mal, desta forma, faz parte do aprendizado, porém na
condição de resíduo; por isso, ele deve ser descartado
em algum momento.
Conforme Kardec aponta em Obras Póstumas
“Deus não criou o mal; foi o homem que o produziu pelo
abuso que fez dos dons de Deus, em virtude de seu livre arbítrio.”
Este pequeno trecho compõe um dos mais belos ensaios que Kardec
deixaria, não intencionalmente, para publicação
posterior. Trata-se de O egoísmo e o orgulho: suas causas,
seus efeitos e os meios de destruí-los.
O mestre lionês, ao desenvolver
o tema, parte do pressuposto de que o instinto de conservação,
natural e necessário para a sobrevivência do homem está
na origem do egoísmo e do orgulho. Este e outros instintos têm
a sua razão de ser. No entanto, o homem abusa destes instintos,
por conta do apego às sensações que as impressões
da matéria lhes causam.
Vive então, (e aqui começa
nossa análise), a sua longa epopéia rumo à maturidade,
devendo liberar-se de tudo que signifique retenção a esta
fase infantil, de imaturidade, de apego ao ego, em que tudo deve girar
ao nosso redor.
Na mensagem “A lei de amor”,
de Lázaro, presente em O Evangelho Segundo o Espiritismo, o autor
afirma que
Em sua origem, o homem só tem
instintos; quando mais avançado e corrompido, só tem sensações;
quando instruído e depurado, tem sentimentos. E o ponto delicado
do sentimento é o amor...
Os instintos, as sensações
e os sentimentos estarão presentes na existência humana
em determinadas combinações, durante todo o processo evolutivo,
com a preponderância de alguns sobre os outros.
Na fase inicial de sua jornada –
na condição de simples e ignorante – é possível
que o instinto lhe seja o melhor guia; à medida que desenvolve
as potências da alma – a inteligência, a vontade –
ele tende a apegar-se às sensações, pois não
desenvolveu ainda, na mesma proporção os sentimentos,
que permanecem como presença latente e promessa futura; como
a inteligência desenvolve-se mais rapidamente, na ausência
de sentimentos como a fé, a esperança, a caridade, o homem
tende a prender-se à sensações materiais; por fim,
aliando a inteligência (instruído) e as experiências
de vida (depurado), o sentimentos começam a ocupar maiores espaços
de manifestações anímicas no homem.
Podemos, assim, afirmar que os instintos
e as sensações ainda convivem conosco hoje, pois como
espíritos encarnados, imersos em um corpo físico, estamos
sujeitos às leis e às atrações da matéria,
porém os sentimentos tendem a dominar-nos a alma, aliado à
inteligência, que já temos desenvolvido sob as suas diversas
modalidades.
Retomando o ensaio de Kardec, este vai
insistir no debate em torno do egoísmo e do orgulho, situando-os
como causa de todos os males.
Um outro conceito precisamos analisar,
porém, neste momento, antes de prosseguirmos e aprofundarmos
esta questão. Trata-se do conceito de paixão.
O conceito de paixão
A definição de paixão
encontrada nos dicionários pode nos ajudar a compreender, antecipadamente,
o que desejam expressar os espíritos e Kardec quando se utilizam
deste termo. Segundo o Aurélio paixão é um: “Sentimento
ou emoção levados a um alto grau de intensidade, sobrepondo-se
à lucidez e à razão; Amor ardente; Inclinação
afetiva e sensual intensa; Entusiasmo muito vivo por alguma coisa; Atividade,
hábito ou vício dominador”.
Lendo um pequeno trecho das páginas
iniciais de O Livro dos Espíritos (Introdução ao
Estudo da Doutrina Espírita), encontramos Kardec a expressar-se
nestes termos (p. 25):
O Espírito encarnado se acha
sob a influência da matéria; o homem que vence esta influência,
pela elevação e depuração de sua alma, se
aproxima dos bons Espíritos, em cuja companhia um dia estará.
Aquele que se deixa dominar pelas más paixões, e põe
todas as suas alegrias na satisfação dos apetites grosseiros,
se aproxima dos Espíritos impuros, dando preponderância
à sua natureza animal.
Na mesma Introdução, quando
trata da escala, das classes em que podemos situar os espíritos
em sua trajetória evolutiva, o codificador afirma (p. 24):
Os [espíritos] das outras classes
se acham cada vez mais distanciados dessa perfeição, mostrando-se
os das categorias inferiores, na sua maioria eivados das nossas paixões:
o ódio, a inveja, o ciúme, o orgulho, etc. Comprazem-se
no mal. (grifo nosso)
Cabe-nos agora, destacar que o
egoísmo e o orgulho compõem o que Kardec designa como
sendo as paixões. O que podemos confirmar quando lemos
mais adiante, ainda na Introdução (p. 27):
Ensinam-nos que o egoísmo, o
orgulho, a sensualidade são paixões que nos aproximam
da natureza animal, prendendo-nos à matéria; que o homem
que, já neste mundo, se desliga da matéria, desprezando
as futilidades mundanas e amando o próximo, se avizinha da natureza
espiritual.
No capítulo em que trata da escala
espírita, Kardec ao situar os Espíritos imperfeitos na
terceira ordem, traça como seus caracteres gerais (p. 89): “Predominância
da matéria sobre o Espírito. Propensão para o mal.
Ignorância, orgulho, egoísmo e todas as paixões
que lhes são conseqüentes.” (grifo nosso)
Será necessário darmos
agora um salto e nos localizarmos na parte terceira de O Livro dos Espíritos
(Das Leis Morais), no capítulo XII, Da perfeição
moral, no item denominado justamente Paixões. Abrangendo seis
questões (907 a 912), Kardec faz um estudo breve, porém
aprofundado deste tema, no diálogo que trava com os espíritos
superiores que colaboram com a Codificação.
Em resumo eis o que apreendemos:
> As paixões são constitutivas,
fazendo parte do que podemos denominar de natureza humana. O seu princípio
não é originariamente mau, pois “o princípio
que lhe dá origem foi posto no homem para o bem”.
São os acréscimos nossos, da vontade humana, os excessos,
pois o “abuso que delas se faz é que causa o mal”.
(questão 907)
Como já comentado por Kardec
em linhas atrás, certas paixões “nos aproximam
da natureza animal”; desligando-se, porém, o homem
da matéria e suas atrações, por meio da ação
de amor ao próximo, ele se aproxima “já neste
mundo” de sua natureza espiritual.
Podemos inferir, pois, que as paixões,
este “entusiasmo muito vivo por alguma coisa” ou este “sentimento
ou emoção levados a um alto grau de intensidade”
na definição do Aurélio, transita na visão
espírita da natureza animal à natureza espiritual. Do
instinto de conservação que nos impele a buscar tudo para
nós mesmos, no desejo de preservarmos nossa vida a qualquer custo,
em detrimento da vida alheia (quando próximos da natureza animal,
nos primórdios das experiências humanas) transitamos para
um outro extremo, que é a abnegação, que também
na definição do Aurélio significa “renunciar
a; sacrificar-se, mortificar-se, em benefício de Deus, do próximo,
de si mesmo”. Não à toa, o próprio sacrifício
de Jesus, mormente na tradição católica (a morte
na cruz) é denominado de Paixão (o próprio Aurélio
indica o uso da maiúscula para assim o designar).
> O governo da paixão é
o que determina o limite em que se situa a fronteira entre o bem e o
mal. A paixão se torna um perigo quando perdemos o domínio
sobre ela e causamos males aos outros ou a nós mesmos. Como alavanca
que pode decuplicar nossas forças, se mal acionada e direcionada
pode voltar-se contra nós e nos esmagar. (questão 908)
Na resposta dos espíritos a Kardec
é ainda dito que as paixões se assemelham a um corcel
, um cavalo veloz, “que só tem utilidade quando governado
e que se torna perigoso desde que passe a governar”. A própria
sabedoria popular nos ensina que a vaidade, ou o egoísmo ou o
orgulho não causam mal desde que em doses adequadas. Frases como
“um pouco de vaidade faz bem à pessoa” e outras do
gênero (quando ditas com sinceridade) correspondem exatamente
ao que os espíritos em outras palavras referem-se ao domínio
das paixões.
É dito também que as paixões,
além de ampliar as forças humanas, “auxiliam na
execução dos desígnios da Providência”.
A paixão, como define o Aurélio,
é também um ”entusiasmo muito vivo” e o termo
entusiasmo corresponde a “exaltação ou arrebatamento
extraordinário daqueles que estavam sob inspiração
divina”, também significando “dedicação
ardente, ardor”. Logo, o homem quando se torna entusiasmado, no
sentido mais elevado do termo, pode auxiliar nas tarefas que a Providência
Divina lhe designa e de que o homem é instrumento.
> O princípio das paixões
tem por fundamento um “sentimento” ou uma “necessidade
natural”; logo, as paixões não podem ser concebidas
como um mal em si, pois elas são “uma das condições
providenciais da nossa existência”; o excesso na utilização
desta ferramenta é que causa o mal; as paixões que o aproximam
da natureza animal o afastam da natureza espiritual; haverá,
por outro lado, “predominância do espírito sobre
a matéria” quando os homens utilizarem as paixões
como instrumento a serviço dos bons sentimentos, o que os conduzirá
mais rapidamente à perfeição que nos cabe atingir.
(questão 908)
> Os esforços, as tentativas
para se atingir uma meta, podem conduzir o homem a “vencer as
suas más inclinações”. Porém, o homem
não costuma exercitar-se neste sentido, o que lhe exigiria, em
verdade, “esforços muito insignificantes”. (questão
909)
Kardec e os espíritos relacionam
nesta questão a má utilização das paixões
e as más inclinações, tendências, tornando-as
sinônimas. Os espíritos então nos afirmaria, de
outra forma, que o governo, o domínio que pode se pode ter sobre
as paixões não exige, comumente, grandes esforços,
mas apenas dedicação, persistência.
> O homem pode contar com os bons
espíritos, cuja missão é auxiliá-los, caso
deseje vencer suas más paixões ou inclinações.
(questão 910)
Há uma inscrição
no pórtico de Delfos, na Grécia, dizendo que “invocado
ou não ele estará sempre presente”; a divindade
ou Deus sempre está presente em nossas vidas, mesmo que não
solicitemos... O mesmo ocorre com os bons espíritos, que nos
assiste, nos auxiliando sempre. A despeito de nossa rebeldia e, às
vezes, do nosso mergulho deliberado no mal, eles esperam pacientemente
uma oportunidade para nos reerguer, colocando-nos em condições
de retomar a caminhada no rumo do Bem. Se invocados (e invocar é
solicitar ajuda ou intercessão de alguém) ou se evocados
(evocar é chamar a si, reclamar a presença de alguém)
os espíritos amigos haverão de nos auxiliar a vencer nossas
más paixões ou más tendências, inclinações.
> A vontade pode sempre triunfar
sobre as más paixões, dominando-as. Os homens, no entanto,
que se comprazem com o mal, que lhes proporciona prazer, pela afinidade
com tudo o que se aproxima dessa sua transitória, mas obstinada
natureza animal, são aqueles cuja “vontade só lhes
está nos lábios”. Aqueles que compreendem “a
sua natureza espiritual” lutam por reprimir as próprias
más tendências. “Vencê-las é, para eles,
uma vitória do Espírito sobre a matéria.”
(questão 911)
É mais fácil, cômodo
enganar-se, iludir-se do que se enfrentar nas lutas sem quartel que
se tem que travar para a vitória sobre si mesmo, contra o mal
existente dentro de nós mesmos. A alavanca férrea da vontade,
que nos pode ajudar a remover todos os obstáculos do caminho,
precisa ser forjada todos os dias, retemperada pela oração
e pela vigilância.
É necessário, portanto,
estarmos atentos e em comunhão com o Alto, para não nos
amolentarmos, pois é comum nos deixarmos arrastar pelos cantos
de sereia da preguiça, da acomodação e dos prazeres
que a isto conduz ou implica.
> Por fim, o antídoto recomendado
pelos espíritos no combate que se deve travar para vencer-se
o “predomínio da natureza corpórea” é
a prática da abnegação. (questão 912)
A própria definição
do que é abnegação indica o que nos cabe fazer:
“renunciar a; sacrificar-se, mortificar-se, em benefício
de Deus, do próximo, de si mesmo”. Os verbos de que o dicionarista
se utiliza para definir abnegação nos sugere dois tipos
de atitude: a ativa e a passiva. Renunciar a alguma coisa é,
aparentemente, uma atitude passiva, de deixar-se, abandonar-se, apagar-se
ou até de fugir de alguma situação. No entanto,
ninguém pode renunciar às coisas do mundo em favor de
algo ou alguém sem que mobilize as forças do pensamento
e do coração, com “dedicação ardente,
ardor” próprio de quem mobiliza o entusiasmo naquilo em
que se empenha. A abnegação é, enfim, um sentimento
de renúncia, de sacrifício, de anulação
do ego para a vivência ativa do amor ao próximo.
Bem, depois de termos examinado as questões
907 a 912, sobre as paixões, cabe-nos indicar que as questões
que se seguirão trata do egoísmo. Da questão 913
a 917 Kardec e os espíritos dialogam sobre esta “verdadeira
chaga da sociedade”. Às más paixões ou más
inclinações Kardec designará agora como vícios
como se vê na questão 913: “Dentre os vícios,
qual o que se pode considerar radical?”
A resposta é naturalmente o egoísmo,
que está na raiz de todos os males (daí o adjetivo radical
utilizado na pergunta). E continuam os espíritos “Por mais
que lhes deis combate, não chegareis a extirpá-los, enquanto
não atacardes o mal pela raiz, enquanto não lhe houverdes
destruído a causa. Tendam, pois, todos os esforços para
esse efeito...”
E ao final da resposta os espíritos
são claros:
Quem quiser, desde esta vida, ir aproximando-se
da perfeição moral, deve expurgar o seu coração
de todo sentimento de egoísmo, visto ser o egoísmo
incompatível com a justiça, o amor e a caridade. Ele neutraliza
todas as outras qualidades.
A idéia de que o egoísmo
e o orgulho possam ser situados como causa de todos os males humanos
pode causar mal estar a muitos que se propõe a examinar estas
questões. Os espíritos e Kardec, de modo simples e coerente,
são muito felizes em situar no campo das causas últimas,
o papel das paixões ou dos sentimentos do egoísmo, do
orgulho e outros assemelhados. Tudo o mais estaria no campo dos efeitos
(que podem se tornar causa de outros efeitos). A miséria sócio-econômica,
por exemplo, pode ter sua origem na extrema concentração
de renda em determinado país ou região. Na visão
espírita, sem desprezar as análises sociológicas,
econômicas ou quaisquer outras, a causa deste fenômeno está
no egoísmo e no orgulho dos homens, em última instância.
A extrema concentração de renda, alegada como causa, na
verdade seria um efeito da causa primordial que são as más
paixões.
Sentir é causar
Pesquisando na Internet sobre este tema
que estamos tratando, encontramos uma interessante dissertação
de mestrado, na área da Psicologia Social, que em resumo trata
da relação entre maturidade, estabilidade emocional e
altruísmo. A autora deste trabalho investigou o perfil daqueles
que adotam crianças, tendo comparado o grupo que adota crianças
ainda bebês e aqueles que o fazem com crianças maiores.
Ao final conclui-se que “os adotantes tardios realmente mostraram-se
mais maduros, estáveis emocionalmente e mais altruístas
do que os adotantes convencionais”.
Buscando a equivalência do conceito
de abnegação e altruísmo, podemos inferir que aqueles
que se devotam ao próximo, esquecidos de si mesmos, têm
por resposta, em decorrência direta, uma maior maturidade e estabilidade
emocional (enfim, os sentimentos de plenitude, de paz, tão almejados
por todos). Abnegar-se, no caso específico das adoções
tardias, isto é, de crianças maiores, com 2 ou mais anos,
é romper com as convenções, assumir o sacrifício
da adaptação, dar-se em maior cota de amor para integrar
a criança à nova família.
Podemos parafrasear Martin Claret
e afirmar que sentir é causar. Isto é,
aqueles que experimentam, exercitam sentimentos elevados, aqueles voltados
ao bem-estar do próximo, modificam suas próprias vidas.
Causam transformações no campo de manifestações
das emoções, adquirindo o que se denomina freqüentemente
de equilíbrio ou centramento psicológico (fulano é
uma pessoa centrada, equilibrada).
Por outro lado, sentimentos pouco elevados,
carregados de apego ao ego, causam também, ou seja, promovem
também modificações em nossas vidas – pessoais
e coletivas. A discriminação étnica, racial que
tem causado tantos problemas no mundo, é exemplo disto. Os resultados,
no mais das vezes, são tragédias, quer pessoais, grupais
ou coletivas (o extermínio dos judeus, já citado; a perseguição
aos ciganos no leste europeu; as sutis discriminações
aos negros brasileiros e outros lamentáveis exemplos).
O combate ao mal
Por não sabermos ainda produzir,
em nossos pensamentos, atitudes e ações o bem em toda
a plenitude, estamos às voltas com as sobras, com os resíduos
das nossas paixões, de que devemos nos livrar, conforme propomos
no início deste texto. Não é simples, porém,
nos livrarmos do mal que produzimos. Mal que nasce em nós, nos
impregna e temporariamente passa a fazer parte de nossa personalidade.
Para atingir tal intento é preciso
vigiar, como sentinelas atentos, as fontes do próprio coração,
de onde afinal provém todo o mal, como nos ensinou Jesus, quando
lançou uma pergunta que continua atual: “...como podeis
vós dizer boas coisas, sendo maus? Pois do que há em abundância
no coração, disso fala a boca.” (Mateus
12:34)
Paulo de Tarso na sua
carta aos romanos (7:19) tece comentários
sobre as lutas que se deve travar para combater o mal em nós
mesmos, em frase já célebre: “Porque não
faço o bem que quero, mas o mal que não quero esse faço”.
Prosseguindo nesta linha de argumentação
podemos levar a pensar que o mal de que estamos falando é algo
medonho, terrível, execrável – e poderíamos
citar aqui certas manifestações do mal que tenham realmente
uma tal face. Alguém poderia dizer a si mesmo: “Bem, deste
tipo de mal felizmente eu estou livre...”
Pois bem, o mal porém, de que
estamos a tratar não se restringe às suas manifestações
mais grotescas, trágicas. E por isso está tão presente
em nós... O mal de que fala o Paulo em suas epístolas
é o mal corriqueiro que vive em nós e é alimentado
por nós mesmos. E que, em certa medida, nos proporciona prazer.
Daí a nossa dificuldade de nos desembaraçarmos dele...
Retomando a questão do abuso
dos instintos, temos um mal tão comum hoje, que a ninguém
repugna em princípio: o comer em excesso. Nele está presente
o instinto de conservação. A natureza estabeleceu para
algumas das funções deste instinto a sensação
de prazer, reconforto, saciedade, como forma de regulá-lo. E
ao extrapolarmos os instintos, abusando deles, nos apegamos às
sensações e nos viciamos literalmente no hábito
de comer em demasia, não mais para nos alimentarmos, mas para
extrairmos prazer – bruto ou sofisticado deste ato. É preciso
ainda acrescentar que podemos nos dar aos excessos apoiados confortavelmente
em mil dissimulações, disfarces, desculpas, prontamente
aceitas pelos outros, condescendentes que somos com os desvios alheios,
tanto quanto como os nossos...
Os maus hábitos de cada dia por
vezes tendem a se perpetuar em nossas vidas por diversos motivos, entre
outros, a própria aprovação social dos mesmos.
Vivendo em uma sociedade ainda marcadamente materialista e hedonista,
não é de surpreender que nos vejamos impelidos a aceitar
como natural todas as atrações da matéria e todos
os prazeres que isto proporciona.
A luta sem tréguas e sem quartel
contra o mal que existe ainda em nós, exige não tão
somente conhecimento, mas sobretudo um grande esforço de vontade
deliberada e consciente, pois estagiamos ainda próximos das nossas
experiências no reino da animalidade; daí nos sentirmos
atraídos, arrastados por certas facetas das más paixões.
Por isso, não raro, apesar de toda a consciência do bem
e do mal, nossos atos de rebeldia ou de invigilância nos embaraça
nas tramas de experiências totalmente dispensáveis que
trazem por conseqüência direta ou indireta, dores e responsabilidades...
Muitos de nós sucumbimos a estas
experiências dispensáveis por estarmos desatentos ao cumprimento
dos deveres que nos cabe realizar, às vezes penosos. Para fugirmos
à rotina, que nos constrange mas também nos livra de muitos
problemas, nos lançamos em certas aventuras que nos causam problemas
sem fim.
Outros, desejando testar inconseqüentemente
suas próprias resistências, findam por abrir a caixa de
Pandora (que segundo a mitologia grega continha todos os males), despertando
sentimentos, sensações que deveriam permanecer soterrados,
a espera de melhor oportunidade para serem trabalhados, lapidados. Portanto,
não tenhamos nunca a mórbida curiosidade de conhecer em
toda a extensão a "maldade humana" (a nossa própria
e a alheia), cabendo-nos, antes, mantermo-nos em alerta, para evitar
que o mal que brota de nós mesmos se alastre e por contágio
encontre afinidade com o mal que nasce em outros corações.
Conhecer-se para transformar-se
Para todos que desejem sustentar-se
na luta sem tréguas, encontramos em Santo Agostinho uma das estratégias
mais eficazes de autotransformação (e por conseqüência
de vitória sobre nós mesmos). Trata-se da meditação
diária sobre os próprios atos, fundamental se desejamos
combater o mal em nós mesmos sistematicamente. A lição
agostiniana está inserida na última questão (919
e 919-a) da Parte Terceira Das leis morais, no capítulo XII,
Da perfeição moral de O Livro dos Espíritos.
Na primeira parte da questão
(919) Kardec indaga dos espíritos: “Qual o meio prático
mais eficaz que tem o homem de se melhorar nesta vida e de resistir
à atração do mal?” A resposta, muito
direta e clara é também concisa: “Um sábio
da antigüidade vo-lo disse: Conhece-te a ti mesmo.”
Muito arguto, Kardec desdobra a questão
buscando solucionar a questão prática que envolve o tema:
o como fazê-lo: ”Conhecemos toda a
sabedoria desta máxima, porém a dificuldade está
precisamente em cada um conhecer-se a si mesmo. Qual o meio de consegui-lo?”
Santo Agostinho, como
resposta, tece muitas considerações, que resumiremos a
seguir:
Devemos interrogar a própria
consciência, passando em revista os atos cotidianos, para a identificação
dos desvios do deveres que deveriam ter sido cumpridos e dos motivos
alheios de queixa por conta dos nossos atos. Por este meio chegou ele,
Santo Agostinho, a se conhecer “e a ver o que [nele] precisava
de reforma”.
Quem se disponha a examinar os atos
cotidianos para identificação do bem ou do mal que se
possa ter feito “grande força adquiriria para se aperfeiçoar”.
Acresce ele que se deve rogar a Deus e aos espíritos protetores
esclarecimento, pois “Deus o assistiria” neste sentido.
Propõe para o exame dos atos
cotidianos o dirigir a si mesmo perguntas, o interrogar-se sobre o que
se faz e com que propósito para identificarmos se fizemos algo
que censuraríamos se praticado por outra pessoa, e também
se fizemos algo que não ousaríamos confessar.
Propõe ainda mais, fazendo-nos
situar diante da vida na condição daquele que pode retornar
ao mundo dos Espíritos a qualquer instante, onde deveremos fazer
o balanço dos próprios atos praticados durante a experiência
carnal: ao desembarcar no outro lado da vida onde nada pode ser ocultado
teríamos “que temer o olhar de alguém”?
A prova de que podemos descansar a consciência
está em examinar se nada fizemos contra a Divindade, ao próximo
e a nós mesmos.
Porque seja difícil a auto-avaliação,
o auto-julgamento por conta das ilusões do amor-próprio,
é proposto como meio de verificação isento de ilusão
perguntar a si mesmo como classificaríamos nossas próprias
ações, se praticadas por outras pessoas. Se tivermos motivos
para censurar tais ações, torna-se claro que não
devemos agir do mesmo modo.
Na mesma linha de raciocínio,
propõe ele que procuremos verificar o que pensam os outros sobre
os nossos atos. E mais: a opinião dos inimigos, por não
terem nenhum interesse em mascarar a verdade, não deve ser desprezada,
pois eles são um bom meio de advertência, utilizando-se
com mais freqüência da franqueza do que faria um amigo.
Aconselha ainda àqueles que se
sintam possuído do desejo sério de melhorar-se a investigar
minuciosamente a própria consciência a fim de extirpar
de si os maus pendores. E tal como ele próprio o fazia, que busquemos
dar um balanço diário de nossas ações morais,
para avaliarmos perdas e lucros; os lucros serão maiores que
as perdas se assim agirmos.
Em seguida Santo Agostinho afirma textualmente:
“Se puder dizer que foi bom o seu dia, poderá dormir em
paz e aguardar sem receio o despertar na outra vida.” O seu dia,
cremos nós, deve ser entendido com a culminância de uma
sucessão de dias. De qualquer forma, indica-nos a necessidade
de aproveitarmos bem todos os dias, dando atenção ao tempo
que costuma fugir-nos das mãos, caso não o administremos
bem.
Como meio de auto-exame da consciência,
recomenda que formulemos “questões nítidas e precisas”,
não temendo multiplicá-las, de modo a nos interrogarmos
acerca de nossos próprios atos. Este diálogo íntimo,
que não toma mais que alguns minutos e “alguns esforços”,
é meio de conquista da “felicidade eterna”.
Posto que muitos têm o futuro
como incerto, é que os espíritos vêm dissipar as
nossas incertezas “por meio de fenômenos” capazes
de nos ferir os sentidos e de “instruções”
(que nos cabe, por nossa vez, também disseminar).
O comentário breve de Kardec
a esta resposta é digno também de exame. E para tanto
tomamos a liberdade de transcrevê-lo literalmente:
Muitas faltas que cometemos nos passam
despercebidas. Se, efetivamente, seguindo o conselho de Santo Agostinho,
interrogássemos mais amiúde a nossa consciência,
veríamos quantas vezes falimos sem que o suspeitemos, unicamente
por não perscrutarmos a natureza e o móvel dos nossos
atos. A forma interrogativa tem alguma coisa de mais preciso do que
qualquer máxima, que muitas vezes deixamos de aplicar a nós
mesmos. Aquela exige respostas categóricas, por um sim ou não,
que não abrem lugar para qualquer alternativa e que são
outros tantos argumentos pessoais. E, pela soma que derem as respostas,
poderemos computar a soma de bem ou de mal que existe em nós.
A título de conclusão
Diante da banalização
do mal que se espalha pelo mundo dos homens, resta-nos individual
e coletivamente nos lançarmos ao bom combate, que é constante,
exigindo-nos disciplina e perseverança. A guerra do bem contra
o mal, tema de incontáveis livros e filmes, deve ser travada
nos domínios dos nossos próprios corações,
acima de tudo.
Lembrando-nos da alegoria dos ovos da
serpente, devemos quebrá-los todos ainda no ninho, antes que
libertemos o mal que ainda teima em fazer morada em nós. Se já
desencadeamos o mal, somente nos resta sofrer-lhe as conseqüências,
com serenidade e resistência.
Se nos embaraçamos nas tramas
do mal, não basta arrependermo-nos de nossos atos e nos comprometermos
à mudança por desencargo de consciência (ou por
quaisquer formas de promessas); é necessário meditarmos
profundamente no móvel de nossas ações; é
preciso, enfim, mergulharmos a sonda da investigação em
nosso espírito para o exame de nossos mais profundos sentimentos
e pensamentos.
Se a nossa má ação
decorreu, por exemplo, do exercício da violência, devemos
buscar em nosso coração as raízes desta violência,
esteja ela onde esteja; e somente há um meio de extirparmos definitivamente
as raízes de todos os males: estarmos de permanente prontidão
para domar, controlar-lhes as expressões... Aprende-se nas reuniões
dos Anônimos (alcoólicos, em particular) que nossos vícios
(as más paixões) não tem propriamente cura, mas
tão somente controle. As lutas sem fim e sem quartel contra o
mal exige-nos, desta forma, uma plena disponibilidade de vigilância
e oração.
Caso nossa "meditação"
acerca das raízes e frutos do mal seja superficial; caso não
examinemos com rigor as causas de nossas ações, fatalmente
incorreremos nos mesmos erros, quando as circunstâncias mudarem,
quando forem outros os cenários. O motivo da reincidência
está em que nós não exercitamos nosso "raciocínio
moral", que também se desenvolve como o raciocínio
lógico, matemático, etc.
Por outro lado, mesmo que não
estejamos às voltas com as expressões mais visíveis
do mal, como as paixões humanas tornaram-se mais “violentas
e devastadoras, no homem que prossegue inquieto”, segundo Joanna
de Ângelis, é possível que as conseqüências
destas paixões nos atinjam, diretamente ou indiretamente. A tendência
de nos refugiarmos no nosso mundo ainda preservado do contágio
de tantos males pode nos tornar alheios a este mundo de provas e expiações.
Mantermo-nos sensíveis à dor do próximo, por mais
que isto nos possa incomodar ou constranger é atitude genuinamente
cristã... Refugiar-se na indiferença, como fuga aos incômodos
que as dores, as paixões e erros alheios nos causam, não
é medida salutar.
Necessário se torna que aprendamos
com nossas vivências práticas e com os exercícios
do “raciocínio moral” e com um farto material de
aprendizagem: os erros próprios e os alheios. O aprimoramento
ético-moral exige, enfim, reflexão e mergulho em si mesmo.
E se necessário for, que revisemos periodicamente nossas quedas
e deslizes no campo moral, ativando a memória para nos lembrarmos
dos tantos espinhos que já trazemos cravados na "carne do
espírito", tal como ensina Paulo de Tarso. Estes espinhos
nos lembrarão a nossa condição de enfermos em estágio
de longa recuperação, necessitados de cautela...
E no mais, que acreditemos, como em
Juízo Final, canção de Nelson Cavaquinho, que “do
mal será queimada a semente / o amor será eterno novamente”,
tendo a certeza de que todo o império do mal ruirá quando
rompermos os elos que mantemos com as porções inferiores
de nossa própria individualidade!
Referências Bibliográficas
EBRAHIM, Surama Gusmão. Adoção
tardia: um estudo em termos de altruísmo, maturidade e estabilidade
emocional. João Pessoa, 1999. 200p. Dissertação
(Mestrado em Psicologia) - Universidade Federal da Paraíba.
FRANCO, Divaldo Pereira. Sol de Esperança (diversos espíritos).
2ª ed. Salvador: Livraria Espírita Alvorada, 1978.
KARDEC, Allan. Livro dos Espíritos. Federação Espírita
Brasileira: Rio de Janeiro, 1995. 76ª edição.
MACEDO, Joel. O mal nosso de cada dia - Filósofa parte do terremoto
de Lisboa para mostrar como o mal deixou de ser divino para se tornar
criação do homem.
Fonte: http://www.espirito.org.br/portal/artigos

topo