Dentre as várias expressões
da sexualidade humana, a homossexualidade tem sido historicamente
e incomparavelmente a que mais ataques tem sofrido dos fundamentalistas
em religião, em moral, em ciência, em direito. Variando
a intensidade de acordo com as épocas e com as sociedades,
o preconceito em torno da homossexualidade sempre esteve presente
com maior ou menor importância na vida de diversas sociedades
conhecidas, registrando-se poucas exceções históricas
e etnográficas.
De tudo que se disse de falso ou verdadeiro
sobre a sexualidade até aqui, sobressaiu uma doutrina naturalista,
segundo a qual a heterossexualidade é a forma da sexualidade
humana produzida pela natureza e, acrescentam os religiosos, a única
aceita por Deus, Javé, Allah, os termos variam conforme as
crenças... O efeito imediato dessa doutrina naturalista conservadora
foi banir a homossexualidade e a bissexualidade do campo das expressões
legítimas da sexualidade humana, tornando-as “desvios”,
“anomalias”, “vícios”, “doenças”
e, pretendem os religiosos, uma forma do “pecado”.
Recentemente, vimos a Igreja Católica
publicar seu Lexicon – que se pretende um dicionário
dos termos ambíguos (sic.): poderíamos chamá-lo
de dicionário do preconceito e do ódio –, em que
se pode ler a homossexualidade definida como “conflito psíquico
- não resolvido - que a sociedade não pode institucionalizar”.
Mas é também importante lembrar que, há mais
de dez anos, a Organização Mundial da Saúde retirou
a homossexualidade da Classificação Internacional de
Doenças, com o aval de médicos e psicólogos.
É verdadeiro que, no campo
da psicologia, da psiquiatria e mesmo da psicanálise, ainda
muito está por ser feito, pois o preconceito em torno da homossexualidade
– disfarçado em diversas teorizações –
revela-se também como uma extensão do fundamentalismo
heterossexista nesses campos. Basta saber que, até 1975, as
sociedades de psicanálise não aceitavam homossexuais
como psicanalistas. Atualmente, nas escolas de psicologia, muitos
homossexuais ainda são cercados de desconfiança.
Fruto da supremacia desse fundamentalismo
heterossexista, nasceram diversas pesquisas e teses sobre as causas
da homossexualidade. Assim, da medicina à psicologia, passando
pelas próprias religiões e pelo direito, procurou-se
falar das razões que levariam homens e mulheres a “se
tornarem homossexuais”. Pergunta-se de genes, traumas, contextos,
influências etc, que produziriam a “virada” para
a homossexualidade. Até aqui, o que não se disse é
que as pesquisas e as explicações sobre as causas da
homossexualidade são FRAUDES nos campos científico e
moral. Trata-se de preconceito disfarçado em ciência.
Desde Freud e sua teoria do inconsciente,
seguido por Lacan, sabemos, se há alguma razão para
se falar de causa, que se aceite que todo desejo é causado
e, mais ainda, que todo desejo é uma causa: a causa do sujeito
do desejo, isto é, aquilo pelo que cada um se empenha, embora
sem saber. Deve-se saber, portanto, que a causa da homossexualidade
é a mesma da heterossexualidade e da bissexualidade: a escolha
inconsciente do objeto do desejo.
A importância da teorização
de Freud está em desnaturalizar a sexualidade humana, demonstrando
que todas as escolhas sexuais, como produções de desejo,
seguem igualmente determinações inconscientes. Freud
consegue isso demonstrando – a partir de material clínico
observado – que a sexualidade humana, buscando o prazer, afasta-se
do modelo da vida sexual animal, “perverte” (altera, imprime
novo modo de ser) à função da procriação
animal. Ensina-nos Freud, a sexualidade dos seres humanos é
múltipla, variegada, desordenada, caótica. Nessa esfera,
nenhuma escolha é mais natural ou normal do que outra, melhor,
pior, superior, inferior. Tratando-se de que não inflija sofrimento
a ninguém, não constitua violência sobre o outro,
agressão à dignidade humana, não se pode acusar
a homossexualidade de nenhuma dessas coisas.
Convergindo para a mesma compreensão
da sexualidade humana que se elaborou na psicanálise, a antropologia
– pelo amplo conhecimento que produziu na pesquisa etnográfica
sobre as diversas sociedades e culturas existentes – instruiu-nos
com a demonstração de que a sexualidade humana é
uma construção social e histórica que segue os
padrões culturais de cada sistema de sociedade, com os evidentes
efeitos de sujeição e dominação que isso
implica. No tocante ao gênero, por exemplo, não se é
homem ou mulher porque se nasce com um pênis ou uma vagina,
mas porque cada cultura – e diferentemente – torna cada
um homem e mulher e, em cada cultura e época histórica,
variando os conceitos que instituem o que cada sociedade chamará
de homem e mulher, entenderá por masculino e feminino.
Uma das mais importantes contribuições
da antropologia ao estudo da humanidade foi conseguir demonstrar que
a sexualidade também se inscreve no rol de todas as criações
humanas, constituindo mais um objeto social da ordem da linguagem,
da cultura, do simbólico, não sendo a anatomia dos sexos
nenhuma causa do destino sexual dos seres humanos. A idéia
de um destino biológico como definidor do gênero sexual
não se sustenta à menor prova do confronto com as descobertas
da pesquisa etnológica. Depois de Marx, Durkheim, Freud, Claude
Lévi-Strauss, Jacques Lacan, Simone de Beauvoir, Michel Foucault,
Pierre Bourdieu, Françoise Héritier, Elisabeth Badinter,
entre outros, falar de destino biológico do desejo sexual é
ignorância, é cair no ridículo e atestar incompetência
em conhecimento teórico.
Relacionar a homossexualidade a causas
biológicas (disfunção hormonal), psicológico
(traumas infantis), social (isolamento, ausência feminina) ou
a outras causas é dar status científico ao preconceito
moralista – fundamentalista – que quer fazer crer a todos
que a única expressão normal da sexualidade humana seria
a heterossexualidade, porque seria sua forma natural. Hoje, não
se pode mais aceitar a continuidade da aberração dessas
explicações como fundamento para “teses científicas”
ou como fundamento para a instituição do direito, sabendo-se
que até aqui, em muitas sociedades, os homossexuais continuam
excluídos da cidadania plena.