O Livro dos Médiuns
é uma dessas obras que merece um estudo acurado, profundo,
o que nos exige, por certo, doses maiores de dedicação
e constância. Não é, definitivamente, um livro
de leitura digestiva, desses para se ler nas horas vagas. É
um livro de estudo e pesquisa. E como tal como deve ser lido, estudado
e meditado.
A sua Introdução guarda preciosas lições,
a começar pela definição do caráter da
obra. Kardec imprime-lhe a feição de "estudo
sério e completo". O sério se contrapõe
à leviandade com que a mediunidade era tratada em seu tempo
(e também no nosso!); o completo refere-se
à busca de se estudar por todos os ângulos este tema
tão complexo, que é a mediunidade, sem que isso signifique
a verdade total ou a última palavra.
Fosse filho de uma cultura utilitarista e mercantilista, como a americana,
e Kardec poderia ter caído na doce tentação de
publicar um "resumido manual prático, que em poucas
palavras desse a indicação dos processos a seguir, a
fim de entrar em comunicação com os espíritos".
Entretanto, fosse por ter a exata noção de sua responsabilidade
com a Doutrina que estava a edificar; fosse pelo espírito filosófico
e cultural francês, que exige profundidade do pensador, decidiu
ele evitar "experiências feitas levianamente"
que poderiam ocorrer, caso um pequeno manual de como comunicar-se
com os mortos fosse publicado.
Publicara ele, antes dessa obra, um pequeno livro chamado Instruções
Práticas Sobre as Manifestações Espíritas,
que fora o embrião, o alicerce da definitiva obra que seria
erguida. Esgotada a edição, ele não a reeditou,
por considerá-la "insuficiente para esclarecer
todas as dificuldades que se podem apresentar" no trato
com as manifestações espirituais. O Livro dos
Médiuns, fruto de "uma longa experiência
e um estudo consciencioso", fora, pois, o sucessor natural
das primeiras instruções. O caráter da obra,
anota Kardec na linha seguinte, é o de seriedade, tendo ela
por fim "desviar toda idéia de preocupação
frívola ou de divertimento" daqueles que lidam
com o Invisível.
Quando Kardec comenta sobre "a má impressão"
causada por "experiências realizadas levianamente
e sem conhecimento de causa", o que permitiria "os
ataques da zombaria e de uma crítica por vezes fundamentada",
ele se referia aos médiuns do seu tempo, que ao se exporem
publicamente, em reuniões sem a devida seriedade, causavam
um duplo mal: os incrédulos não se convenciam dos fatos
e também não se inclinavam "a ver o lado
sério do Espiritismo".
A atualidade do alerta do codificador pode ser percebida em outras
atitudes nossas, no movimento espírita. Trata-se da exposição
dos dons mediúnicos notadamente da pintura mediúnica
e da cura dita espiritual, que longe de convencer os céticos,
desperta-lhes o senso crítico, por tratar-se, lamentavelmente,
mais de um espetáculo do que propriamente da busca da comprovação
da imortalidade da alma, o que aliás, já está
suficientemente demonstrada, dispensando-se efeitos pirotécnicos
para tanto.
Não por acaso, aponta Kardec, o progresso alcançado
pelo Espiritismo nos seus primeiros anos de difusão deveu-se
à sua apreciação "por gente esclarecida",
pelo fato da Doutrina ter adentrado pelo "caminho da
Filosofia". A conquista de "partidários
valiosos" estaria mais no terreno da reflexão
e da busca, próprios da Filosofia, do que na provocação
das manifestações mediúnicas, que como simples
fenômeno pode não suscitar, de imediato, quaisquer reflexões
morais ou filosóficas.
O "número de adeptos feitos só com a leitura
de O Livro dos Espíritos" é um atestado
do que foi exposto anteriormente. E aqui cabe mais um alerta, desta
vez nosso: a sofreguidão de muitos companheiros de conquistar
adeptos através da oferta de livros supostamente espíritas.
Refiro-me aos tantos recentes lançamentos de "romances
mediúnicos" de conteúdo duvidoso, embora
de enredo fácil e adocicado. Não se deveria confundir
a leitura acessível dos romances espíritas de bom
conteúdo e procedência legítima com os
citados romances, os quais podem entreter e sensibilizar, mas não
educam, por não despertar reflexões profundas, além
de trazerem, dissimulados, conceitos errôneos sobre alguns dos
pontos básicos da Doutrina.
Nos parágrafos finais desta Introdução Kardec
tributa aos espíritos a realização da obra. Em
suas palavras: "...como tudo reviram, aprovando ou modificando
à vontade, pode-se dizer que, em grande parte, esta é
uma obra deles, de vez que a sua intervenção não
ficou limitada a alguns artigos assinados."
Podemos afirmar que O Livro dos Médiuns é um
trabalho feito a muitas mãos. Mas o pedreiro, se podemos utilizar
tal analogia, é de fato Allan Kardec. Os engenheiros, os consultores,
estiveram presentes, dando cada qual sua cota de orientação
e trabalho. Os tijolos, assentados e reassentados, custou muito do
seu suor. E se podemos tomar as palavras de Edison, o inventor da
lâmpada elétrica, diríamos que no seu trabalho
a inspiração ocupava apenas uma parte, devendo-se o
restante à sua transpiração... O seu labor intelectual
não conhecia limites, desafiando o cansaço e as doenças
que o acometiam. A sua produção literária e as
outras atividades paralelas desenvolvidas nos quinze anos (1854-1869)
que se dedicou à causa espírita atesta a fenomenal capacidade
de trabalho deste missionário. O seu exemplo nos atesta que
não podemos dispensar o trabalho constante, a pesquisa e o
estudo permanente, a busca da renovação espiritual e
a luta pela própria transformação íntima.
Nota:
Todas as citações entre aspas foram colhidas na Introdução
de O Livro dos Médiuns, de Allan
Kardec, tradução de Júlio Abreu Filho, edição
Círculo do Livro.