1. Introdução
Muito se tem falado ultimamente sobre
o tema "Ciência e Religião" ou "Ciência
e Espiritualidade". Por exemplo, a Boyle Lecture
de 2005, dada por Simon Conway Morris, tratou justamente desses assuntos.
O livro de Richard Dawkins The God Delusion (traduzido impropriamente
como Deus, um Delírio – veja-se minha resenha sobre ele
[SET 2009]) trata de mostrar que o conceito de Deus e as religiões
são um engano, e até mesmo que "a existência
de Deus é uma hipótese científica como qualquer
outra", isto é, propõe que a questão da
existência ou não de Deus seja tratada cientificamente
[DAW b, p. 72]. Em novembro de 2007 assisti
em um congresso de medicina a uma mesa redonda com o título
"Ciência e espiritualidade", e fiquei muito insatisfeito
com o que nela foi exposto. Por outro lado, recebi algumas críticas
sobre meu artigo "Por que sou espiritualista",
e percebi que precisava deixar alguns pontos mais claros. Com isso,
resolvi ordenar e expor minhas ideias a respeito do tópico
do título do presente artigo, fazendo também incursões
na ciência, no materialismo e nas religiões instituídas,
ou confissões, complementando várias ideias expostas
no artigo citado. Vou discorrer sobre o infeliz abismo existente entre
ciência e religião, que poderia ser eliminado com mudanças
em ambas, por meio do que vou caracterizar como "espiritualidade
científica". Para chegar a caracterizar esse tipo de espiritualidade,
que envolve hipóteses de trabalho e não crenças,
caracterizo no item 2 esses dois conceitos, salientando suas diferenças.
No item 3 coloco o que considero uma atitude cognitiva correta, e
que denominei de "atitude científica". No item 4
caracterizo o que entendo por materialismo, mostrando que existem
dois tipos do mesmo; mostro que a partir dessa visão de mundo,
se for coerente, não se podem admitir várias características
humanas, especialmente o livre-arbítrio. No item 5 abordo o
espiritualismo, do qual caracterizo também dois tipos, sendo
um deles o que denominei de "espiritualismo científico",
que usa uma atitude científica na cognição. Adotando-se
uma visão de mundo espiritualista científica, características
humanas que não fazem sentido de um ponto de materialista passam
a poder ser admitidas. O item 6 mostra como há visões
de mundo que são combinações de materialismo
com espiritualismo. A ciência moderna é examinada no
item 7, mostrando que ela é essencialmente materialista. No
item 8 descrevo certas características de religiões
instituídas, caracterizando o tipo de espiritualismo que elas
cultivam, e mostrando que, de certos pontos de vista, elas são
materialistas. O abismo atual entre ciência e religião
é descrito no item 9, onde mostro como ele poderia ser suplantado
por mudanças tanto numa como na outra. Coloco também
que ele é devido tanto a um materialismo preconceituoso como
ao tipo de espiritualismo típico das religiões instituídas.
No item 10 enumero várias razões para uma pessoa sentir-se
inclinada a adotar o materialismo, e no 11 faço o mesmo para
o espiritualismo científico. Finalmente, no item 12 descrevo
um exemplo de uma espiritualidade científica que considero
adequada ao ser humano moderno, mostrando brevemente certas características
da mesma e suas aplicações.
2. Hipótese e crença
No decorrer da história, o
ser humano foi desenvolvendo cada vez mais seu intelecto. Uma das
consequências disso é que hoje ele anseia por compreender
as coisas, e não simplesmente observar fenômenos sem
conseguir entender por que eles se passam. Também não
lhe agrada aceitar leis e regras sociais sem compreender sua razão
de ser, ou admitir teorias sem que elas lhe façam sentido,
sejam logicamente coerentes e correspondam ao que ele pode observar
fora e dentro de si. Parece-me que cada pessoa moderna deveria ter
uma concepção consciente do mundo, uma cosmovisão
(Weltanschauung); a partir dela, deveria
orientar seus pensamentos, sentimentos e ações. Em termos
de concepções de mundo, é importante separar
o que é hipótese de trabalho e o que é crença;
vejamos as características de cada uma, salientando as diferenças
entre elas.
2.1 Uma hipótese é uma afirmação
que é tomada como verdade e serve de base para comprovações
experimentais ou para uma teoria. Esta última pode envolver
várias hipóteses, e consequências das mesmas sendo,
portanto, muito mais ampla. Uma característica fundamental
de uma teoria é a sua coerência lógica, isto é,
não deve haver contradições entre suas várias
hipóteses e entre as afirmações que delas resultam.
Portanto, uma hipótese é a base para alguma compreensão
conceitual de observações experimentais, isto é,
para a associação mental correta entre uma percepção
correta e um conceito correto, ou para a associação
mental correta entre conceitos corretos que se relacionam entre si.
Note-se a presença da palavra "correto" – vou
admitir que existem percepções, conceitos e associações
corretos e incorretos. Por exemplo, se o leitor olhar para a entrada
da sala em que está e se o seu sistema visual for saudável,
certamente terá inicialmente uma percepção correta
de impulsos luminosos; em seguida, fará uma representação
mental do objeto visto e, finalmente, fará, com o pensamento,
uma associação correta com o conceito "porta".
Em geral, diz-se que se "vê" uma porta, mas na verdade
o que se vê são impulsos luminosos; "porta"
é um conceito, uma ideia, e não pode ser visto com os
olhos. Chega-se a ele por meio do pensamento, e não de uma
percepção sensorial. Um contra-exemplo seria ver-se
uma pessoa ao longe, e não se conseguir distinguir se é
um homem ou uma mulher. Nesse caso, provavelmente está havendo
um erro ou imprecisão na percepção, o que pode
ser conscientizado pela dificuldade em associar à representação
não nítida correspondente um dentre os dois conceitos
possíveis. Um outro contra-exemplo seria ver-se o Sol movendo-se
durante o dia no céu, e se fazer a essa percepção
correta uma associação mental com o conceito incorreto
do movimento dele em volta da Terra, em lugar de se associar a essa
percepção o conceito correto de que ele está
parado e a Terra está girando em torno de seu eixo.
Uma crença é uma afirmação tomada como
verdade, sendo a base para uma visão de mundo que pode não
envolver, parcial ou totalmente, uma compreensão conceitual.
Uma crença não deve depender de comprovações
experimentais. Pelo contrário, ela fecha as portas à
compreensão e à investigação.
2.2 Uma hipótese deve ser formulada claramente,
por meio de conceitos, e basear-se em evidências, seja por meio
de observações da realidade, ou de teorias coerentes
e abrangentes delas derivadas. Além disso, deve estar sempre
sujeita a revisões.
Uma crença não precisa ser formulada com clareza, pois
não se dirige ao intelecto; ela é aceita como verdade,
e tem um caráter de permanência, isto é, não
é sujeita a revisões.
2.3 Uma hipótese deve ter um caráter
de objetividade, de universalidade e, portanto, não deve basear-se
em sentimentos pois estes são sempre subjetivos e individuais.
Ao contrário, uma crença pode envolver conceitos (já
que é impossível falar-se sem usar conceitos), mas deve
basear-se fundamentalmente em sentimentos, isto é, deve ser
essencialmente subjetiva: "sente-se" que uma crença
é verdadeira.
2.4 Uma hipótese de trabalho deve sempre fazer
parte de uma pesquisa de fatos e de uma teoria em estabelecimento
ou já estabelecida.
Já uma crença é algo terminal, auto-contido.
Pode fazer parte de uma cosmovisão ampla, mas não deve
necessariamente levar a uma pesquisa, ao contrário, muitas
vezes uma crença impede a pesquisa. Dawkins critica as religiões
dizendo "um dos efeitos realmente negativos da religião
é que ela nos ensina que é uma virtude ficar satisfeito
com uma falta de compreensão." [DAW
b, p. 152; ver também pp. 154, 159-60].
---
Usarei neste texto a expressão "acreditar" como sinônimo
exclusivo de "ter crença", no sentido exposto. Como
exemplo, na doutrina Católica oficial, deve-se acreditar em
Deus e não acreditar na reencarnação do ser humano
(apesar de alguns claros indícios desse ultimo conceito no
Novo Testamento). Note-se que não há uma conceituação
clara de Deus, seja nessa doutrina como na de outras religiões,
de modo que não se deveria falar, no sentido da caracterização
2.2, em uma "hipótese da existência de Deus",
expressão empregada por Dawkins [DAW
b, p. 138].
Um outro exemplo de crença é tomarem-se as imagens da
Gênese como fatos literais, por exemplo considerando-se que
os "dias" da "criação" foram de
24 horas, como querem muitos criacionistas bíblicos. Já
uma hipótese de trabalho poderia ser a de que essas imagens
são símbolos para fatos que realmente ocorreram.
Nota-se por esse exemplo como uma hipótese de trabalho deve
necessariamente levar a uma pesquisa: no caso, quais as realidades
representadas por essas e outras imagens bíblicas. Já
a crença citada não leva a nenhuma investigação
ou busca de compreensão.
Usando ainda esse exemplo, é um fato que muitas pessoas consideram
as imagens bíblicas como invencionices, como "historinhas".
Temos aí duas possibilidades: tomar-se isso como crença
ou como hipótese de trabalho. Na segunda, tenta-se justificar
essa consideração especulando-se com uma teoria, por
exemplo, de que o ser humano antigo tinha medos infantis, e essas
"historinhas" ajudavam-no a enfrentar esse medo. Ou que
o ser humano tinha necessidade de se localizar perante o passado,
de modo que inventou uma cosmogonia fantasmagórica, já
que não tinha naquela época a capacidade de inventar
uma teoria conceitual como a do Big Bang. Aliás, essa
também é uma teoria fantasmagórica; afinal, como
a matéria ou a energia surgiram antes de se condensarem e explodirem?
Mesmo considerando-se uma sequência de contrações
e expansões, ela teve que ter um começo físico.
A esse respeito, Milton Mourão Jr. sugeriu-me um interessante
paradoxo: a matéria condensada no instante do Big Bang, ou
logo depois dele, devia obviamente ter formado um super-buraco negro,
e aí não poderia ter ocorrido nenhuma explosão.
A maneira que os cosmologistas encontraram para contornar esse paradoxo
é supor que nos primeiros instantes a gravitação
da matéria era repulsiva, e não atrativa. Posteriormente,
passa a predominar a matéria atrativa, se bem que a aparente
expansão acelerada do universo visível exige novamente
a presença de misteriosas matéria e energia repulsivas.
Mas tudo isso é, obviamente, teoria.
3. A atitude cientifica
A atitude científica
é uma das maiores conquistas da humanidade, tendo começado
a desenvolver-se efetivamente, como potencialidade para todas as pessoas,
após o início do século XV. Antes disso, ela
aparecia de maneira parcial em um ou outro indivíduo. Ela deve
ser aplicada sempre que se faz uma observação e a descrição
de algo, e quando se formulam conceitos. Nessas atividades cognitivas,
parece-me que essa é a atitude correta para o ser humano moderno,
isto é, uma pessoa que não adota uma atitude científica
na parte cognitiva de seu dia-a-dia está retornando indevidamente
ao passado. No entanto, é preciso reconhecer que essa atitude
não se aplica a toda a vida humana, pois nem tudo nela é
cognição, como descreverei depois de expor aquilo que
considero suas características fundamentais.
Na cognição, adota-se uma atitude científica
se os seguintes requisitos forem satisfeitos:
3.1 Ter hipóteses de trabalho, e não
ter crenças, cf. o item 2 acima.
3.2 Mantém-se uma curiosidade constante, isto
é, procura-se sempre conhecer coisas e ideias novas. Se um
fenômeno é observado e não compreendido, deve-se
observá-lo de todos os ângulos possíveis e estudá-lo
a fim de compreendê-lo. Se uma ideia não é compreendida,
ou parecer estranha, deve-se fazer um esforço para estudá-la
e compreendê-la.
Essa atitude significa que se deve ter um interesse por quaisquer
tipos de fenômenos ou de teorias.
Um contra-exemplo a essa atitude é o fato de muito poucas pessoas
saberem por que os aviões sustentam-se no ar, apesar de os
verem com frequência. A compreensão desse fenômeno,
devido a uma propriedade dos fluidos descoberta em 1738 por Daniel
Bernoulli (1700-1782), é relativamente simples e pode ser demonstrada
com imensa facilidade: basta assoprar por sobre uma folha de papel
fino com a borda superior esticada entre as mãos e encostada
abaixo do lábio inferior, e observar como a folha sobe.
Há muito tenho afirmado que a falta dessa curiosidade constante
pode ter um efeito indesejável: o desenvolvimento de uma paralisia
mental. Segundo Platão, em Menon, Sócrates
vai mais longe, pois diz: "Eu disse algumas coisas sobre as quais
não tenho total confiança. Mas há algo pelo qual
estou pronto a lutar, em palavras e ações, até
o máximo de minha capacidade: Nós seremos melhores,
mais corajosos e menos impotentes se pensarmos que devemos indagar,
do que seríamos se cedêssemos à inútil
fantasia [indulge in the idle fancy] de que não é
possível, e não há utilidade, em saber o que
não sabemos." [PLA, p. 183.]
3.3 Procura-se observar
objetivamente o mundo, isto é, a observação deve
ater-se exclusivamente ao fenômeno; nenhum aspecto observado
deve ser desprezado e a observação não deve depender
de hipóteses anteriores.
Essa ação é caracterizada por uma total
abertura tanto para fenômenos exteriores quanto interiores ao
observador.
3.4 Procura-se compreender objetiva e conceitualmente
o mundo, em especial os seres vivos e o ser humano.
3.5 Não se usam sentimentos
como base de observações e formulação
de conceitos a respeito dos objetos observados ou teorias estudadas.
Este requisito é consequência dos requisitos
3.3 e 3.4, e é devido ao fato de que os sentimentos são
puramente subjetivos. De fato, cada pessoa tem seus sentimentos e
uma outra pessoa não pode sentir os sentimentos da primeira;
o que ela pode fazer é reconhecê-los, por exemplo percebendo
que essa primeira pessoa está alegre ou está triste.
No entanto, é impossível sentir a alegria ou tristeza
que ela está sentindo.
Um exemplo do uso indevido de sentimentos na aquisição
de conhecimentos seria usar a simpatia ou antipatia por uma pessoa
para tirar conclusões sobre ela. É interessante notar
que, quando uma pessoa tem um sentimento sobre algo, esse sentimento
revela muito mais sobre essa própria pessoa do que sobre o
objeto em questão. Por exemplo, uma antipatia por uma pessoa
pode ser o resultado de seu rosto ser parecido com o de uma outra
pessoa que fez uma ação desagradável ao observador.
Um outro exemplo seria observar e estudar algum fenômeno ou
objeto devido a uma simpatia com relação a eles, evitando-se
estudar outros com os quais se antipatiza.
Note-se o uso da palavra "base" na formulação
da presente atitude. Ter uma atitude científica não
significa ignorar os sentimentos, mas eles não devem ser usados
tanto para orientar a curiosidade e a pesquisa, quanto na conceituação
dos fenômenos. Sentimentos devem ser conscientizados e levados
em conta sempre que se fizer um julgamento, pois é impossível
ter-se um conhecimento total sobre algo da realidade (conhecimento
total só existe na Matemática, em áreas bem definidas;
note-se que existem problemas matemáticos bem formulados que
não têm solução). Por exemplo, se há
duas teorias coerentes conflitantes sobre um mesmo assunto, e não
há evidências de qual se adapta melhor à realidade,
pode-se usar um sentimento de simpatia por uma delas para adotá-la
provisoriamente; mas essa razão da adoção deve
ser conscientizada.
Por outro lado, há sentimentos essenciais em uma atividade
científica, como por exemplo o entusiasmo que se deve ter por
descobrir coisas novas e obter mais conhecimento. Certos sentimentos
também deveriam ser usados na escolha da pesquisa e na divulgação
dos resultados. Por exemplo, um certo crivo moral poderia impedir
um veterinário de sacrificar animais em suas pesquisas, ou
um biólogo de usar células-tronco de embriões
humanos, se for necessário matar esses embriões; se
foi feita alguma descoberta que pode representar um perigo ecológico
ou humano, talvez o pesquisador, baseado em seus sentimentos, decida
não divulgá-los (o que lembra a excelente peça
de F. Dürrenmat, Die Physiker, "Os Físicos",
escrita em 1961, considerada sua melhor peça [DÜR;
ver também http://en.wikipedia.org/wiki/Die_Physiker]).
3.6 A descrição
de fenômenos e a formulação de conceitos e teorias
devem ser dirigidas exclusivamente para a compreensão e serem
universais.
Este pré-requisito é
uma consequência do anterior. Um contra-exemplo seria transmitir
conceitos entusiasticamente, tentando influenciar os sentimentos do
receptor para que este se convença da validade dos argumentos.
Espero que os leitores de meus artigos e livros percebam que neles
procuro dirigir-me exclusivamente à compreensão, e não
aos sentimentos de quem os lê.
3.7 Não ter absolutamente
nenhum preconceito, em qualquer área de conhecimento, isto
é, estar-se sempre disposto a verificar qualquer fato ou fenômeno,
ou estudar qualquer teoria.
Por exemplo, se alguém diz "O prédio Martinelli
[o edifício alto mais antigo da cidade de São Paulo]
ruiu", uma atitude científica seria dizer: "Isso
parece muito estranho, pois ele estava lá desde 1929, mas vou
investigar para confirmar." Uma atitude não-científica,
seria dizer: "Isso é bobagem, ele está lá
desde 1929, nunca ruiu e nem vou me importar com isso." Note-se
como um preconceito encerra a pesquisa.
Um outro exemplo é a teoria das cores de Newton [NEW]. Nela,
ele claramente parte da ideia preconcebida de que a "luz branca"
é composta das cores do arco-íris, e monta suas experiências
para comprovar essa sua teoria. Por isso é que usou uma abertura
particular em sua janela, e uma certa distância do prisma ao
anteparo, criando com isso um feixe de luz cuja dispersão produzisse
as cores do arco-iris: "[...] at a round hole, about one third
Part of an Inch broad made in the Shut of a Window. (sic)" [NEW,
p. 26 (Prop. II, Theor. II, Exper. 3).] Se o feixe tivesse
sido muito fino, ou o anteparo muito distante do prisma, apareceriam
apenas três cores (vermelho, verde e violeta), e se fosse de
diâmetro muito grande ou o anteparo colocado mais próximo
apareceria uma parte branca em lugar do verde. Este, como se pode
observar claramente afastando-se gradualmente o anteparo do prisma,
resulta da superposição do amarelo com o azul. Recomendo
ao leitor observar pessoalmente tudo isso: basta tomar dois papéis
pretos e colocá-los sobre um papel branco, olhando a faixa
branca assim formada através de um prisma cujo eixo deve ser
paralelo a essa faixa. Para alterar a largura da faixa branca, pode-se
mover um dos papéis pretos. Aproveite-se para repetir a experiência
com dois papéis brancos sobre um dos pretos, formando uma fenda
preta; ver-se-á o "espectro complementar", segundo
a teoria das cores de Goethe. Nessa teoria, ele faz questão
de não partir dessa ideia preconcebida de Newton
[GOE, Vol. 3, p. 48: Der Newtonsche Optik – Erstes Buch, Erster
Teil (A Óptica de Newton – vol. 1, parte 1), Props. 86-93;
ver também ZAJ, p. 209; SEP, p. 142]. É interessante
citar o físico Tolger Holtsmark: "Newton pensou ter explicado
a existência do espectro por meio de um modelo físico
da luz, ao passo que ele de fato usou a imagem do espectro para explicar
um possível modelo físico da luz" [HOL
T, p. 1235].
Este requisito complementa o 3.3
3.8 A visão conceitual de mundo adotada é
coerente; se pontos logicamente conflitantes são conhecidos,
procura-se investigá-los para resolver os conflitos.
3.9 Há interesse permanente por opiniões
contrárias às próprias, especialmente se elas
são bem fundamentadas.
Opiniões contrárias podem servir para se mudarem hipóteses
de trabalho (cf. 3.1); elas devem servir pelo menos para se testar
as próprias hipóteses e teorias e, eventualmente, colher
mais argumentos em favor destas últimas.
3.10 A observação de fenômenos
e a descrição conceitual dos mesmos deve sempre ser
feita em plena consciência de vigília; o observador deve
manter permanentemente a sua auto-consciência e a sua individualidade.
Contra-exemplos a essa característica são o uso de imagens
obtidas em sonhos como se fossem conceitos, e de transmissões
mediúnicas. No primeiro caso, as imagens dos sonhos, em lugar
de serem tomadas literalmente, podem inspirar uma conceituação,
como foi a conhecida vivência de F.A. Kekulé, que em
1865 sonhou com uma cobra mordendo seu rabo, inspirando-o a descobrir
a forma do anel de átomos de carbono do benzeno. No segundo
caso, há duas possibilidades a considerar: o médium
está inconsciente ou está consciente durante suas observações
ou transmissões. A primeira situação choca-se
diretamente com o requisito em questão. Um caso da segunda
situação é a psicografia: claramente, o médium
que a faz não está expressando sua individualidade,
pois transmite conhecimentos que não possui e usa um estilo
de redação que não é o seu; sua individualidade
é como que substituída nessa atividade.
Somente com a preservação deste pré-requisito
é que se pode garantir que não há erro nas observações
e na descrição de fenômenos e de conceitos. Uma
das mais conhecidas máximas de Goethe, que infelizmente não
é geralmente reconhecido como um grande cientista, apesar de
suas contribuições científicas e de ter introduzido
um método científico efetivo, é: "Nossos
sentidos não enganam, o julgamento engana ("Die
Sinne trügen nicht, das Urteil trügt" [in Maximen und
Reflexionen, No. 527]). Quando o observador está consciente
ao fazer suas observações, ele pode reconhecer que seus
sentidos não estão sendo suficientemente acurados, ou
o aparelho usado em medições tem limitações,
ou reconhecer que, eventualmente, há diferentes julgamentos
que podem ser feitos a partir de uma mesma observação.
---
Quando uma atitude é contrária a algum desses requisitos,
denominá-la-ei de "atitude anti-científica".
É fundamental reconhecer que a atitude científica como
caracterizada aqui não engloba toda a atividade humana, pois
nem toda ela é cognitiva. De fato, existem pelo menos outras
duas: as atitudes artística e social. Vou discorrer muito brevemente
sobre ambas, pois o assunto foge ao escopo deste artigo.
Nessas duas atitudes, os sentimentos adquirem fundamental importância,
contrariamente ao requisito 3.5. Além disso, o aspecto individual,
subjetivo, é absolutamente essencial nas duas. De fato, o artista
deve obrigatoriamente colocar em sua obra sua particular maneira de
expressar algo objetivo ou subjetivo, contrariamente à atitude
científica, que deve levar a algo universal e ser expressa
universalmente. Em outras palavras, um objeto de arte é algo
objetivo e universal, e o que ele expressa também pode ser
universal, mas a maneira como essa expressão é manifestada
deve ter algum elemento subjetivo da individualidade do artista e
depender da individualidade do observador (para mais detalhes, veja-se
meu artigo "O computador como instrumento de anti-arte").
Por exemplo, um pintor pode representar a fome ou o medo de uma maneira,
um outro de outra maneira distinta, o que é bem nítido
na pintura expressionista. É interessante notar que qualquer
obra de arte deve necessariamente tocar os sentimentos do observador,
isto é, a subjetividade dele é parte essencial; o contrário
se passa com uma obra científica. Uma obra que é fruto
apenas de conceituação objetiva, e o meio de expressão
é universal, independendo da interpretação do
observador, não é uma obra de arte, e sim de ciência.
A ciência tem como objetivo primário a produção
de conceitos para a compreensão do mundo; por outro lado, o
objetivo primário da arte é a produção
de objetos que devem ser captados com os sentidos, provocando alguma
sensação ou sentimento. Nessa linha, é interessante
notar que a arquitetura é a arte mais objetiva, e a poesia
a mais subjetiva.
A atitude social também difere da atitude científica
pois a primeira envolve necessariamente ações sobre
indivíduos e sua subjetividade. Se estes pudessem ser tratados
objetivamente, os economistas sempre teriam sucesso em suas teorias
e práticas. Uma das atitudes sociais mais importantes é
a compaixão, isto é, sofrer com o sofrimento de outrem.
Ela não é derivada de modo algum de uma atitude científica.
A "inteligência emocional" de Daniel Goleman
[GOL], de importância social fundamental, inclusive profissionalmente,
também não é fruto de uma atitude científica,
e sim de uma atitude social.
4. Materialismo
Vou caracterizar materialismo
como a visão de mundo que admite apenas a existência
de fenômenos físicos no universo. Segundo ela, o mundo
é constituído apenas de matéria e energia físicas,
e os fenômenos que se passam com elas têm causas exclusivamente
físicas.
Apesar de não se saber cientificamente o que é matéria,
temos uma noção intuitiva da mesma, pois defrontamo-nos
com ela por meio de nossos sentidos. Temos também uma noção
intuitiva de energia, pois qualquer ação física
que fazemos exige um certo esforço, denominado comumente de
"trabalho" na Física.
Há dois tipos de materialismo. Denominarei o primeiro de materialismo
científico, caracterizado por adotar aquela visão
de mundo dentro de uma atitude estritamente científica, como
caracterizada no item 3. Chamarei o segundo de materialismo-crença,
que é a crença naquela visão de mundo e, portanto,
não segue uma atitude científica, especialmente as características
3.1 (já que envolve alguma crença), 3.2 (no sentido
de não se ter curiosidade sobre a possibilidade de existência
de fenômenos não-físicos) e 3.7 (no sentido de
que há uma ideia preconcebida de que só existem fenômenos
físicos no universo).
A diferença mais típica entre os dois consiste em que
um materialista científico deve estar aberto e se interessar
por visões de mundo não-materialistas, estando disposto
a rever sua posição se for convencido de que existem
fenômenos não-físicos. Por outro lado, um materialista-crente
toma sua visão de mundo como dogma, e não está
aberto a visões de mundo que admitem a existência de
fenômenos não-físicos: tipicamente, ele não
só não procura saber como são essas outras visões,
como evita entrar em contato com qualquer visão que não
seja materialista.
Por exemplo, um materialista-crente diz: "É óbvio
que nosso pensamento é gerado pelo nosso cérebro, como
poderia ser diferente?" ou "É óbvio que a
evolução darwinista é uma realidade, como poderia
ser diferente?" Por outro lado, um materialista científico
diria: "Segundo minha concepção de mundo, o pensamento
é gerado pelo cérebro, mas como não sabemos exatamente
como é esse processo, estou aberto a outras explicações,
independentemente de que conceitos e experiências elas usam.
Quem sabe elas podem apresentar um edifício teórico
coerente e abrangente, e aí mudarei minhas hipóteses
fundamentais." O mesmo para a evolução darwinista.
Isto é, o materialista científico toma essas duas concepções
como teorias (o que realmente são), e não como realidades
ou dogmas, como muitas vezes é o caso com materialistas-crentes.
Denominei o primeiro tipo de "científico" por uma
simples razão: um cientista, por necessariamente adotar a atitude
científica descrita no item 3, não deveria ter preconceitos
e deveria ter uma abertura total a tudo. Uma das atitudes mais frequentes
dos materialistas-crentes é terem um total preconceito contra
qualquer explicação que não seja baseada em fenômenos
puramente físicos, que eles também chamam de "naturais".
É muito comum eles negarem-se a estudar qualquer teoria que
envolva processos não-físicos, e a examinar evidências
desses processos. É também muito típico eles
ridicularizarem qualquer teoria ou visão de mundo que use fenômenos
não-físicos em suas explicações, como
foram os casos de Freud e de Bertrand Russel e, mais recentemente,
Richard Dawkins.
Obviamente, existem variações do materialismo-crença:
um materialista pode adotar uma atitude científica em relação
a certos fenômenos, e uma atitude de crente frente a outros.
Por outro lado, existe um único tipo de materialismo científico,
pois se uma pessoa o adota, não pode ter nenhuma crença.
É muito importante considerar o seguinte: o que caracteriza
uma pessoa como materialista, de qualquer matiz, é a maneira
como ela pensa. Uma pessoa pode falar frequentemente de Deus (independente
do que compreende ou não compreende com essa palavra), mas
se sua maneira de pensar é materialista, isto é, procura
e usa somente causas físicas para os fenômenos, aplicados
exclusivamente a objetos e forças físicas, é
dessa maneira que deveria ser classificada.
Muitas pessoas – ou talvez todas – que se dizem "ateus"
são na realidade materialistas, em geral do tipo crente. Essa
denominação de "ateu" tem muitos problemas.
O Aurélio Eletrônico Séc. XXI define-a
como "Diz-se daquele que não crê em Deus ou nos
deuses; ...", isto é, ela parte de Deus ou de deuses.
Portanto, um ateu terá que explicar inicialmente o que é
Deus ou o que são os deuses, para depois dizer que não
acredita neles. Se ele disser que acredita que amanhã não
vai chover, parte do princípio de que se entende o que é
"amanhã" e o que é "chover". Mas
o que ele próprio entende por Deus ou por deuses? O ateu teria
que caracterizar precisamente essas entidades, e sua atuação,
para que se possa discutir a sua existência ou não. Note-se
que é possível descrever claramente algo fisicamente
impossível, como por exemplo um castelo que flutue no ar. Além
disso, claramente aquelas entidades não são físicas.
No entanto, qualquer materialista não admite a existência
de algo ou de processos não-físicos; nesse caso, como
é que vai caracterizar algo não-físico, para
que se possa discutir esse algo com ele? Voltarei ao problema do conceito
de Deus no item 8, em relação ao monoteísmo de
várias religiões.
Dawkins denomina-se ateu, algo que prevalece em todo seu livro [DAW
b]. Mas ele é claramente alguém com mais do que
com uma simples falta de crença em Deus, seja lá o que
essa entidade for: ele não pode assumir a existência
de nenhum processo não-físico, isto é, ele é
na realidade um materialista.
Várias pessoas dizem-se "céticas" quando,
na realidade, são materialistas. O mesmo Aurélio traz,
para cé(p)tico: "Que duvida de tudo; descrente."
Ora, pois! Se o cético duvida de tudo, ele necessariamente
duvida da própria existência (que é admitida de
maneira ingênua por todos que o conhecem). Nesse caso, ele seria
pelo menos um esquizóide, senão tiver problemas psicológicos
muito mais graves. Tenho a impressão de que uma pessoa declara-se
cética para indicar que não acredita em nada que seja
não-físico; nesse caso, a minha denominação
de "materialista" caracteriza muito melhor essa pessoa.
Aliás, esse "acredita" classifica-a como materialista-crente,
segundo minha caracterização no fim do item 2.
Muitos céticos são materialistas-crentes. Um exemplo
desses parece ser Michael Shermer, que escreve a coluna permanente
Skeptic da revista Scientific American, e é editor
de Skeptic – ver em
http://www.skeptic.com. Nesse site, na seção
Discover Skepticism afirma-se (minha tradução): "O
ceticismo moderno está incorporado no método científico,
que envolve coletar dados para formular e testar explicações
naturalistas para fenômenos naturais." Assim, excluem-se
todos os fenômenos não-naturais, isto é, não-físicos,
e se recusa examiná-los com seriedade. Portanto, para Shermer
a ciência é materialista-crente, pois só admite
explicações materiais e fecha-se às não-materiais.
O positivismo de Auguste Comte (1798–1857), baseava-se na experiência
física (herança dos empiristas como Hume e Berkeley)
e refutava qualquer metafísica (além da Lógica
e da Matemática, classificadas como "ciências formais
puras"). Assim, ele também foi um materialista que, por
sinal, teve grandes influências no pensamento de muitos intelectuais
brasileiros.
Parece-me que a minha denominação de "materialista"
caracteriza melhor uma pessoa do que classificá-la como ateu,
cético, ou positivista.
Para o restante deste artigo, é fundamental reconhecer-se que
um materialismo coerente deve: a) limitar a individualidade humana
somente à hereditariedade e à influência passada
do meio ambiente; b) negar o livre arbítrio; c) negar a responsabilidade
individual e coletiva; d) negar a existência de moral; e) negar
a possibilidade de uma ação ser devida a um amor altruísta;
f) negar um sentido para o universo e a vida humana. Vou justificar
essas minhas afirmações.
a) A questão da individualidade é trivial: se o ser
humano é só matéria, não pode haver outro
componente na individualidade que não seja devida à
hereditariedade e ao meio ambiente.
b) Considero como livre arbítrio, ou a liberdade de se fazer
conscientemente ações interiores (como pensar) ou exteriores
(executar alguma ação para fora, como atuar com as mãos
e pés, movimentar-se ou falar), a possibilidade de um ser humano
executar uma ação sem que haja nenhuma imposição
interior ou exterior para isso. A imposição exterior
é clara: forçar-se, tanto física como emocionalmente,
alguma pessoa a executar algo. Um exemplo do segundo caso é
forçar-se alguém a uma ação pondo-se-lhe
medo de que algo ocorra consigo se não a executar; um outro
exemplo é forçar, por meio de condicionamento com propaganda,
uma pessoa a executar uma certa ação, como comer ou
comprar algo. Um exemplo de uma imposição interior é
agir-se segundo um sentimento, como não falar com uma pessoa
que, à primeira vista, parece ser antipática.
Uma ação é executada em liberdade se existem
outra ações possíveis, e a escolha da primeira
é feita em plena consciência, examinando-se mentalmente
quais seriam as consequências da execução de cada
ação. Isso não exclui a execução
de uma ação baseada em um sentimento, como seria o caso
de uma pessoa que está fazendo um regime para emagrecer mas,
em um dia de calor, resolve conscientemente quebrar o regime para
saborear um bom sorvete.
O materialismo tem que forçosamente negar o livre arbítrio
pois da matéria não pode advir liberdade: ela está
sempre sujeita às "leis" e condições
físicas. Aqui há duas possibilidades. Pode haver um
determinismo, isto é, dado o estado de um corpo e certas condições
em seu meio ambiente, ele sempre sofrerá a mesma transformação.
Um exemplo famoso de pessoa que era 100% determinista, isto é,
totalmente contra o acaso, foi Einstein, seguindo a filosofia de Baruch
Spinoza, (ver, por exemplo, o excelente [ISA,
pp. 102, 335] e também [JAM, pp.
37, 69-71]).
A outra possibilidade é a existência da aleatoriedade
ou acaso, isto é, dadas certas condições iniciais,
a matéria pode comportar-se de várias maneiras possíveis,
sem que haja uma causa para a tomada de alguma dessas variantes. O
acaso é a base da Mecânica Quântica, que tem um
enorme sucesso experimental, mas que transformou o mundo atômico
em algo incompreensível. Se um ser humano executa uma ação
aleatoriamente, não age em liberdade, pois essa ação
não se deveu a um ato consciente.
Um velho raciocínio pode ajudar a esclarecer melhor essa questão
da liberdade não poder resultar da matéria. Um átomo
obviamente não tem liberdade. Portanto, uma molécula,
formada por um grupo de átomos, também não pode
ter liberdade. Uma célula, formada por um grupo de moléculas,
idem. Um grupo de células, formando um órgão,
ibidem. Finalmente, um grupo de órgãos formando um ser
humano também não pode ter liberdade. Essa é
uma das razões para cientistas e materialistas coerentes negarem
a possibilidade do livre arbítrio, que consideram uma ilusão.
Einstein foi absolutamente categórico a esse respeito; em suas
palavras, "Sou determinista. Não acredito no livre-arbítrio."
[ISA, p. 397]; "Não acredito, em absoluto, no livre-arbítrio
no sentido filosófico. Cada pessoa age não só
sob pressão das compulsões externas, mas também
de acordo com as necessidades internas." [p.
401]; "Os seres humanos, em seus pensamentos, sentimentos
e atos, não são livres, mas estão presos pela
causalidade do mesmo modo que as estrelas em seus movimentos."
[p. 401.] Quanto à ilusão do livre-arbítrio,
ele disse: "Sou compelido a agir como se existisse o livre-arbítrio
já que, se desejo viver numa sociedade civilizada devo agir
de modo responsável." [p. 403.]
c) É óbvio que, sem liberdade, não há
responsabilidade pessoal ou coletiva. Einstein negava-a, por achar
que cada ação de um ser humano é consequência
do seu estado e do estado do meio ambiente: "Sei que, filosoficamente,
um assassino não é responsável por seu crime,
mas prefiro não tomar chá com ele." [p.
403.] A propósito, ele não era coerente nesse
e em outros aspectos filosóficos pois, depois que soube, em
1941, das atrocidades perpetradas pelos nazistas nos campos de concentração
e extermínio, jogou a responsabilidade disso não só
sobre eles, mas sobre todo o povo alemão: "Os alemães,
como nação inteira, são responsáveis por
esses assassinatos em massa e devem ser punidos como um povo."
[ISA, p. 514, JAM, p. 71.] Aliás,
é raro encontrar um materialista realmente coerente pois, por
exemplo, muitos admitem a liberdade humana, já que prezam pelo
menos a liberdade intelectual; além disso, o conceito de liberdade
arraigou-se na humanidade profundamente desde o século XIX.
É possível que o inconsciente dessas pessoas seja mais
sábio do que seu consciente; devido ao primeiro, elas têm
uma intuição de que o ser humano pode ter livre-arbítrio,
e não percebem que isso contraria sua visão materialista.
d) Sem responsabilidade, não há moral. Nesse sentido,
é necessário distinguir claramente "moral"
de "ética". Esta última refere-se a normas
estabelecidas por um grupo, em geral profissional. Por exemplo, é
ético um advogado defender e tentar convencer outras pessoas
(um júri, por exemplo) da inocência de uma pessoa a qual
ele está plenamente convencido de ter cometido um assassinato;
mas não considero essa uma ação moral. Nesse
caso, uma ação moral seria esse advogado reconhecer
publicamente a culpabilidade do réu, mas mostrar objetivamente
ao júri eventuais atenuantes do caso.
e) Um ato é fruto de um amor altruísta se ele beneficia
algo ou alguém, é executado em plena consciência
e liberdade, e não traz nenhum benefício para a pessoa
que o executa. Portanto, também o amor altruísta não
faz sentido do ponto de vista materialista. Desse ponto de vista,
só fazem sentido ações egoístas ou movidas
pela ambição. A esse respeito, vale a pena notar que
a teoria darwinista da evolução é baseada no
egoísmo: a luta pela sobrevivência do indivíduo
e da espécie, não importando o que acontece com outros
indivíduos ou espécies. Estou ciente de que Darwin formulou
uma teoria especulativa tentando explicar o altruísmo: uma
pessoa altruísta é melhor aceita pela comunidade e assim
tem mais chance de sobreviver e deixar uma prole. É realmente
estranho que o altruísmo derive de um egoísmo! Mas Richard
Dawkins expressou muito bem o ponto de vista materialista: em sua
especulação, o egoísmo é inerente ao ser
humano, e está em seus próprios genes, como se estes
pudessem ter consciência [DAW a].
Da ciência materialista moderna não se chega ao altruísmo.
É interessante notar que muitos cientistas são idealistas,
e têm grande satisfação em suas atividades pois
sentem que assim ajudam altruisticamente a humanidade. Apesar de isso
ser muito positivo, trata-se no fundo de uma incoerência da
parte deles quando são materialistas (o que acontece com a
maioria deles, senão com a quase totalidade), pois esse sentimento
choca-se com a falta de sentido do altruísmo do ponto de vista
material.
f) Da matéria não pode resultar algum sentido para o
universo e a para a vida humana, pois eles são frutos do acaso.
Por exemplo, na seleção natural darwinista predomina
o mais apto, mas ele tem essa característica por acaso, devido
a mutações genéticas aleatórias (segundo
o neo-darwinismo), devido a combinações aleatórias
de genes dos pais e encontros casuais com outros indivíduos,
onde ele pode predominar. Curiosamente, Dawkins repetidamente escreve
que a seleção natural elimina o acaso [DAW
b, pp. 141, 145]. No caso do ser humano, uma visão materialista
deve necessariamente admitir que o nascimento (ou melhor, a concepção)
e a morte são acasos. Portando, desse ponto de vista a vida
humana não tem sentido: ela simplesmente existe; daí,
por exemplo, o existencialismo de Sartre. O desenvolvimento do universo,
do sistema solar, e da Terra, o aparecimento da vida e a evolução
dos seres vivos também são basicamente devidos a acasos.
Assim, o universo inteiro não tem sentido.
Muitos materialistas convictos têm dificuldade em compreender
o que poderia significar um sentido para a vida, o que é perfeitamente
compreensível, pois da matéria e das forças físicas
não se pode chegar a ele.
---
Estamos na era do materialismo. Uma pessoa que é materialista
está totalmente de acordo com a maneira atual de ser da humanidade.
De fato, pode-se tratar a história da humanidade como a "queda"
na matéria e no materialismo. A maravilhosa imagem bíblica
do Paraíso [Gen 2:8] representa
um período inicial em que o ser humano não tinha conhecimento
e auto-consciência: ainda não havia "comido"
da "arvore do conhecimento do bem e do mal" [2:17],
ainda não reconhecia que estava "nu"
[3:7]. Sua "expulsão" dele pode ser considerada
como um símbolo para aquela queda. (A propósito, nesse
sentido as expressões "Tentação" e
"Pecado Original" não fazem sentido, pois só
se pode cometer um erro se for possível fazer uma escolha,
o que exige consciência e conhecimento.) Foi necessário
à humanidade passar por essa "queda", pois é
somente graças à nossa imersão e atuação
na matéria que podemos cometer erros e portanto sermos livres:
se fôssemos inconscientes, ou se só houvesse o bem, não
poderíamos escolher e portanto não seríamos livres.
A nossa auto-consciência e individualidade superior (conforme
vou caracterizá-la no próximo item) também foram
desenvolvidas devido a essa "queda" na matéria. No
entanto, estamos na época em que essa fase do materialismo
deve ser ultrapassada, porém sem perder tudo o que foi conquistado
em termos de atitude científica, consciência, conhecimento,
liberdade e individualidade. Vejamos o caminho que penso deve ser
seguido.
5. Espiritualismo
Vou caracterizar como espiritualismo a visão de mundo
que admite, além da matéria e energia físicas,
e dos fenômenos físicos, tanto uma "substancialidade"
não-física como fenômenos não-físicos
que envolvem essa "substancialidade". Além disso,
é parte essencial do espiritualismo a hipótese de que
fenômenos não-físicos podem influenciar a matéria
física. Neste item exporei minha teoria de como isso poderia
ocorrer em certos fenômenos nos seres vivos e no ser humano.
Estou ciente dos problemas usar uma caracterização por
negação, mas quero partir de algo conhecido, no caso,
o mundo físico. Por "não-físico" refiro-me
a algo que existe em um plano que não é o físico,
não podendo ser observado fisicamente. Não se deveria
estranhar a existência de fenômenos fisicamente ocultos
pois, por exemplo, não se pode observar fisicamente os sentimentos,
os pensamentos e os impulsos de vontade de outra pessoa.
Há dois fatos que não fazem sentido físico, e
que poderiam ser tomados como uma forte indicação de
que o espiritualismo pode ter algum fundamento: a origem da matéria
e da energia físicas, e os limites do universo.
Analogamente ao materialismo, há dois tipos de espiritualismo.
Denominarei o primeiro de espiritualismo científico,
caracterizado por adotar aquela visão de mundo dentro de uma
atitude estritamente científica, como caracterizada no item
3. Chamarei o segundo de espiritualismo-crença, que
é a crença naquela visão de mundo e, portanto,
não segue uma atitude científica.
Pode parecer estranho que um espiritualista possa ter uma atitude
estritamente científica, como caracterizada no item 3. No entanto,
se se examinar o que foi exposto nesse item, ver-se-á que de
modo algum ele restringe os fenômenos do universo apenas aos
fenômenos físicos.
Analogamente ao materialismo, há apenas um tipo de espiritualismo
científico, mas há vários tipos de espiritualismo-crença.
Nesse último caso, adota-se uma atitude científica em
relação a certos fenômenos, e uma crença
em relação a outros.
É muito importante reconhecer que a visão de mundo espiritualista
científica, como caracterizada, é um superconjunto próprio
da visão materialista, isto é, um espiritualista científico
admite todos os fatos científicos físicos,
mas admite algo mais, de natureza não-física. Assim,
esse espiritualismo é uma ampliação do materialismo
científico. É importante salientar a expressão
que empreguei: "fatos científicos". De fato, um espiritualista
não é obrigado a aceitar julgamentos materialistas,
como por exemplo as presunções de o pensamento originar-se
no cérebro e da evolução darwinista, pois esses
não são fatos científicos: são especulações
científicas. Um outro exemplo é a presunção
de que a Terra tem cerca de 6 bilhões de anos; esse dado não
é um fato científico: é o resultado de um cálculo
que representa uma extrapolação extremamente grosseira
(de medidas de decaimento radioativo). O cálculo pode estar
correto, mas deveria ser simplesmente chamado de "extrapolação
do decaimento radioativo" e não de "idade da Terra",
pois isso é um julgamento. Essa extrapolação,
bem como outras baseadas em outros fenômenos, parte do pressuposto
que as constantes físicas foram sempre as mesmas, e não
dependem, por exemplo, de condições totalmente diferentes
das nossas em termos físicos. A propósito, para evitar
mal-entendidos, vou colocar aqui que não sou adepto do que
se denomina de Young Earth Criationism, que diz que a Terra
tem cerca de 6.000 anos.
Um espiritualista-crente pode chegar a negar fatos científicos,
pois pode ter o preconceito de não estudá-los ou verificá-los.
Alguns fatos científicos podem inclusive contrariar suas crenças
pois, como tais, não estão sujeitas a revisão,
caso contrário estariam no caminho de serem hipóteses
de trabalho.
O espiritualismo-crença pode também ser denominado de
"misticismo". Em geral, os místicos não procuram
compreender os fenômenos não-físicos; para eles,
bastam os sentimentos inspirados pelos últimos, e a intuição
de que existem.
No item 8 vou mostrar que muitos adeptos das religiões instituídas
são na verdade materialistas.
É fundamental separarem-se fenômenos físicos de
não-físicos. Qualquer explicação desses
últimos em termos físicos, como por exemplo fenômenos
paranormais (como a pretensa telepatia) como sendo causados por "ondas"
de alguma energia física desconhecida, é um materialismo
e não um espiritualismo. Note-se que "ondas" são
fenômenos mecânicos (como por exemplo as causadas em um
lago quando se lança nele uma pedra, ou as causadas por sons
propagando-se no ar); a sua aplicação em fenômenos
não-mecânicos é problemática mesmo do ponto
de vista físico. Por exemplo, qualquer onda tem que se propagar
em um meio físico. Qual é o meio em que se propagam
as ondas eletromagnéticas? Pior ainda, qual o meio de propagação
das ondas de probabilidade da Mecânica Quântica, já
que probabilidade é um conceito puramente matemático,
não tendo consistência física?
Dawkins argumenta que o Deus das religiões instituídas
não pode ser o projetista (o intelligent designer)
de todo o universo, como elas supõem, por que também
teria que haver um projetista que o projetou; por outro lado, como
projetista, teria que ser mais complexo e improvável que seres
vivos complexos e improváveis [DAW b,
188]. Aqui vemos um exemplo claro da mistura de conceitos físicos
com não-físicos. Claramente, essas religiões
tomam Deus como uma entidade não-física. Mas projetar
e construir entidades físicas, tais como os seres vivos, significa
agir sobre o mundo físico, conformando-se às suas leis
e condições; falar sobre a improbabilidade de um ser
vivo atingir uma alta complexidade é também um raciocínio
que se aplica ao mundo físico. Mas especular sobre a necessidade
de um ente não-físico como Deus ter sido projetado é
aplicar um raciocínio baseado no mundo físico para uma
entidade não-física. Especular que um ente não-físico
deve necessariamente ser mais improvável e complexo do que
seres vivos improváveis e complexos é novamente aplicar
sobre um ente não-físico um raciocínio baseado
no mundo físico. Curiosamente, Dawkins relata que, em um recente
congresso sobre ciência e religião, nenhum representante
das religiões instituídas foi capaz de rebater razoavelmente
essas suas duas objeções [p. 187].
De meu ponto de vista, isso é absolutamente claro: as religiões
instituídas também misturam conceitos físicos
com não-físicos (além de não terem um
conceito claro do que Deus é).
Voltando a grandes problemas da Física, eles podem ser uma
indicação de que, no nível atômico e no
cósmico de estrelas, galáxias e nébulas se está
na fronteira do nível físico com o não-físico.
Por exemplo, não são compreensíveis à
razão baseada na nossa experiência da matéria,
isto é, em nossos sentidos, no âmbito da Mecânica
Quântica, a não-localidade, em que existe aparente influência
instantânea entre "partículas" atômicas
ou sub-atômicas "acopladas" (entangled),
independentemente da distância entre elas
[GRE, p. 83], e o spin das "partículas",
que não corresponde à nossa noção de rotação
[p. 104]. Por outro lado, a noção
relativística de tempo e espaço, em que estes dependem
da velocidade, não corresponde à nossa percepção
de que o tempo é absoluto, como na Mecânica Newtoniana.
Além disso, o tempo dos modelos da Física é reversível
[p. 145], isto é, para os seus
modelos não há distinção entre passado
e futuro [p. 156], o que se choca com
a nossa experiência: nunca ninguém viu um leite derramado
voltar espontaneamente para a garrafa. Além disso, temos uma
noção precisa do "agora", que também
não faz sentido na Física [p.
141]. Outros grandes problemas da ciência são
a "energia escura", que produziria a repulsão que
resulta na expansão do universo, formando ¾ do conteúdo
do mesmo [CON, p. 25] (mas não
afeta "pequenas" distâncias como as de nossa galáxia)
e a "matéria escura", que consistiria em 85% de toda
a matéria no universo [p. 27],
mas que não se sabe o que são.
Como mostrei no item 4, o livre-arbítrio não faz sentido
do ponto de vista materialista. Mas faz todo o sentido do ponto de
vista espiritualista científico. Vou justificar isso colocando
uma aqui uma teoria minha de como o não-físico pode
atuar sobre o físico, levando à liberdade do ser humano.
Vou ser breve, pois já discorri sobre isso extensamente no
meu artigo "Por
que sou espiritualista". Suponha que exista em cada ser
vivo um "membro" não-físico associado a ele.
Suponha-se ainda que nos seres vivos existam vários fenômenos
fisicamente não-deterministas. Um exemplo disso é que,
a partir de um mesmo gene do DNA podem ser formadas várias
proteínas diferentes [HOL C, p. 78].
Em seu excelente livro, Jeffrey Smith diz: "Havia uma velha teoria
genética de que cada gene era codificado para produzir uma
única proteína, o que levou biólogos à
estimativa de que deveria haver 100.000 genes no DNA humano para abranger
todas as proteínas. Quando em junho de 2000 esse número
de genes foi estimado em 30.000, isso explodiu o mito ‘um gene,
uma proteína’. Na verdade, a grande maioria dos genes
pode codificar mais de uma proteína; alguns podem produzir
várias." [SMI J, p. 117.]
Minha teoria é de que a escolha de qual proteína
deve ser formada a partir de um certo gene não requer energia.
Portanto, uma das maneiras de um "membro" não-físico
de um ser vivo poder atuar sobre a matéria física é
justamente nessa escolha. No meu artigo citado, mostro que há
um aparente não-determinismo de uma célula manter seu
estado atual, começar a subdividir-se (mitose ou meiose) ou
começar a morrer (apoptose). A escolha de um desses
caminhos não requer energia, portanto aqui pode-se ter novamente
a ação de um membro não-físico atuando
como um modelo (mental!) para o crescimento ou regeneração
de tecidos vivos. Essa é uma possibilidade para explicar certos
fenômenos morfológicos dos seres vivos, que são
um mistério do ponto de vista puramente físico, como
por exemplo a simetria das orelhas de uma pessoa, as simetrias de
alguns desenhos coloridos extraordinários das asas das borboletas
(ver no artigo citado fotos minhas mostrando exemplos dessas simetrias),
etc. Além de um gene poder dar origem a proteínas diferentes,
e células mudarem de estado, há muitas outras transições
possivelmente não-deterministas em qualquer ser vivo, onde
a escolha de qual transição será tomada, não
requerendo energia, pode sofrer uma influência de algo não-físico
associado unicamente àquele ser. Talvez um exemplo disso seria
qual combinação de genes é feita na formação
de um ovo, a partir dos genes dos pais. Um outro é o fato de
que, se um neurônio estar em um certo estado, com os mesmos
impulsos de entrada às vezes ele dispara, outras vezes não;
isso pode significar que seu disparo é não-determinista.
Nesse caso, nosso pensamento não-físico pode agir sobre
os neurônios, produzindo sua atividade (vejam-se mais detalhes
sobre isso em meu artigo citado). Note-se aqui possíveis consequências
físicas de se assumir a existência de membros não-físicos
em seres vivos; compare-se essa hipótese com o conceito totalmente
abstrato do Deus das religiões instituídas, as quais
não podem explicar como essa entidade age.
Nesse esquema, a liberdade do ser humano advém da atuação
consciente de um membro não-físico individual, que faz
parte de cada pessoa, e que denominarei de "individualidade superior",
escolhendo uma dentre várias ações não-deterministas.
Por exemplo, suponha que uma pessoa está numa esquina de um
quarteirão retangular e necessita ir a pé até
a esquina diagonalmente oposta do mesmo quarteirão. Ela pode
seguir um dos dois possíveis caminhos: iniciar pela calçada
da esquerda, ou pela da direita. Suponhamos que não haja nada
que lhe dê preferência por um caminho ou por outro (como
seriam os casos de um deles ter menos tráfego, ou ter um visual
mais agradável). Se nessas condições ela fizer
uma escolha consciente, isto é, pensar sobre os dois caminhos
e decidir qual vai tomar (em lugar de fazê-lo instintivamente),
e seguir essa escolha, ela terá agido em liberdade. Uma ação
instintiva poderia ser nesse caso tomar um caminho de costume: essa
não seria uma ação livre. Note-se que pode haver
condições de preferência para cada um dos caminhos
(por exemplo, um tem menos tráfego, o outro é mais bonito):
ainda assim, a escolha consciente pode ser um ato de liberdade pois,
por exemplo, pode-se tomar um dos caminhos, justamente por se reconhecer
uma preferência pelo outro. No entanto, se a escolha seguir
simplesmente a preferência por um dos dois caminhos, como citado,
não terá sido feita em liberdade. Sempre que se segue
um sentimento ou um impulso inconsciente de vontade, não se
age em liberdade.
Obviamente, um materialista vai dizer que a pessoa que está
na esquina tem a ilusão de poder escolher um dentre os dois
caminhos. É importante saber-se que ele não pode provar
isso, de modo que se pode perfeitamente fazer a hipótese de
que a escolha foi livre. No artigo citado dou exercícios puramente
mentais de controle do pensamento, permitindo a qualquer pessoa observar
mentalmente que tem possibilidade de escolher o próximo pensamento
em liberdade, dando-lhe assim evidências pessoais de que existe
o livre arbítrio.
Nas decisões conscientes o "membro" não-físico,
que chamei de "individualidade superior", pode tomar uma
decisão mental em liberdade, e fazer com que a pessoa acabe
agindo em liberdade. Uma observação acurada mostra que
os animais agem sempre por instinto ou por condicionamento: no sentido
exposto, eles não podem ser livres. Portanto, pode-se concluir
que eles não possuem esse membro não-físico "individualidade
superior" (obviamente, também plantas e minerais não
o possuem). Uma consequência disso é que, desse ponto
de vista espiritualista, o ser humano não é um animal.
O materialismo não pode chegar a essa conclusão, e não
é à toa que denomina o ser humano de "animal racional"
(curioso: por que, analogamente, não se denomina um animal
de "planta móvel"?). A propósito, uma criança
também não tem liberdade: a sua "individualidade
superior" ainda não impregnou suficientemente o seu corpo
físico, que obviamente ainda não foi suficientemente
desenvolvido, ao ponto de ela conseguir manifestar-se conscientemente
por meio do pensamento.
Uma hipótese interessante é que essa individualidade
superior não tem sexo (que é uma característica
do corpo físico e das funções vitais, bem como
da alma, como por exemplo a caracterizada por Jung), nem raça
(isto é, independe da hereditariedade) e nem nacionalidade.
O seu desenvolvimento e manifestação cada vez mais intensa
no decorrer da história, é que teria levado à
igualdade de direitos entre os sexos, ao anti-racismo e ao universalismo
(anti-nacionalismo). Esses impulsos, que conjeturo não poderem
ser explicados por seleção natural, são claramente
modernos e estão ficando cada vez mais intensos. Uma das suas
lindas manifestações é o respeito à essência
do ser humano, independente do que ele é exteriormente; daí
todo o movimento relativamente recente de proteção e
de se dar certas vantagens para os deficientes físicos e para
os idosos: em ambos, a individualidade superior é da mesma
natureza de que a de todos os seres humanos; no entanto, essa individualidade
não consegue manifestar-se plenamente, mas não deixa
de existir. Em outras palavras, o que importa realmente em um ser
humano é essa sua essência não-física.
Numa criança pequena, já existe também essa individualidade,
mas ela ainda não consegue manifestar-se, pois depende do desenvolvimento
do corpo físico, das funções vitais e também
da maturação da percepção, dos sentimentos,
da consciência, etc. Note-se como apareceu modernamente um respeito
também pelas crianças – a ponto de se terem instituído
leis proibindo que sejam castigadas fisicamente, o que era algo considerado
natural no passado. Há hoje em dia uma forte intuição
de que cada criança traz consigo certas características
e certos dons, que devem ser respeitados. De acordo com os conceitos
aqui apresentados, eles são devidos a essa individualidade
superior única em cada ser humano.
As religiões costumam falar em Deus – como vimos, sem
caracterizar essa divindade e mostrar claramente como ela atua. Pois
bem, o que denominei de "individualidade superior", por
ser um membro não-físico único em cada ser humano,
pode ser considerado o que cada um tem de divino dentro dela. Tenho
a impressão de que muitas pessoas, quando dizem "Meu Deus!"
estão inconscientemente referindo-se a essa divindade única
que existe dentro de si. Afinal, Deus é universal, como ele
pode ser de alguém? Dawkins formula a pergunta de como Deus
"é um ser capaz de [...] falar com um milhão de
pessoas simultaneamente [...]" [DAW b,
p. 185] – novamente, uma mistura de conceitos físicos
com não-físicos, mas que mostra bem como o Deus das
religiões instituídas é universal (apesar de
atuar em cada indivíduo). Por outro lado, a individualidade
superior é individual, isto é, é realmente de
cada um. Admitindo-se por hipótese de trabalho a existência
dessa individualidade superior, o espírito passa a ser algo
atuante, e não uma mera abstração como se tornou
a noção de Deus. Ele pode ser percebido quando, em um
estado meditativo, o pensamento concentra-se em si próprio.
A propósito, Rudolf Steiner chamou a atenção
para o fato de que o pensamento é a única atividade
em que o objeto de uma ação coincide com ela própria
[STE a, p. 39]; para pensar, nada mais
é preciso do que o pensar [p. 36].
Como em uma cosmovisão espiritualista faz sentido considerar-se
que existe a liberdade humana, também dentro dessa visão
há sentido em se falar em responsabilidade, em moral e em amor
altruísta que, como vimos, não fazem sentido de um ponto
de vista estritamente materialista. Assim, somente o espiritualismo
pode levar à suplantação consciente e coerente
do egoísmo e da ambição. De fato, considero o
amor altruísta um requisito essencial para a prática
de um espiritualismo científico: o verdadeiro espiritualista
deve dedicar um amor altruísta à natureza e aos outros
seres humanos.
No fim do item 4 mencionei que o materialismo foi uma necessidade
da humanidade. Desde o fim do século XIX ele deveria ser ultrapassado
por um espiritualismo especial: trata-se justamente do espiritualismo
científico. Não há saída para a humanidade:
o materialismo e o espiritualismo-crença só podem continuar
levando à destruição do mundo e da humanidade,
que pode ser constatada pelos desastres provocados pela tecnologia
e pelas crenças religiosas. Ambas estão a serviço
do egoísmo e da ambição; só o espiritualismo
científico pode levar a humanidade a assumir a atitude altruísta
necessária para mudar o rumo das destruições
atuais. É interessante notar que as religiões vão
contra o livre arbítrio, pois impõem maneiras de pensar
e de agir; por outro lado, o livre arbítrio não faz
sentido de um ponto de vista materialista.
Infelizmente, não tenho nenhuma esperança na humanidade
como um todo. Parece-me que não há possibilidade de
reverter, em geral, a decadência crescente dos valores humanos,
tanto devido ao materialismo quanto às religiões. Ela
manifesta-se pelo império crescente do egoísmo e da
ambição monetária e de poder, e por uma enorme
influência exercida sobre os indivíduos, de um lado limitando
sua liberdade, por exemplo condicionando-os a consumir e a ter certos
pontos de vista (incluindo a indução de uma profunda
veneração pela tecnologia), e do outro lado forçando-os
a seguir cegamente interpretações literais de imagens
religiosas transmitidas por várias escrituras e mitos. Mas
tenho certeza de que essas tendências destrutivas podem, e devem,
sim, ser revertidas individualmente. E é a indivíduos
que estou escrevendo neste momento.
Não sou totalmente negativo ou pessimista: reconheço
progressos altamente positivos na humanidade, como os movimentos dos
direitos humanos, da paz universal e o ecológico. Mas o balanço
final global parece-me ser altamente negativo. Não consigo
ter, realmente, uma esperança na massa – basta considerar
que cerca de metade da humanidade é condicionada e bestificada
diariamente pela TV (ver meus artigos a respeito dos meios eletrônicos
em meu site).
6. Combinações de materialismo
e espiritualismo
Muitas pessoas adotam uma visão de mundo que é uma combinação
das duas abordadas, isto é, para alguns fenômenos adotam
a visão materialista, e para outros a espiritualista. É
o caso de muitos cientistas, ao admitirem que a criação
da matéria e da energia tem uma origem não-física,
não tendo quanto a esse fato o preconceito de existirem apenas
processos físicos; no entanto, adotam como hipótese
de trabalho ou como crença que daí para diante o mundo
foi deixado a si próprio, e não há mais atuação
de fenômenos não-físicos, isto é, são
deístas. Assim, são espiritualistas quanto à
origem do universo, e são materialistas daí para a frente.
Um caso desses foi Einstein, que admitia que Deus tinha criado as
"leis" da natureza; no entanto, depois dessa criação
ele/ela não mais atua, em particular no ser humano, o que ele
expressava dizendo ser contra a ideia de um Deus pessoal que pune
ou recompensa cada indivíduo: "Qualquer pessoa que se
envolve seriamente no trabalho científico acaba convencida
de que existe um espírito que se manifesta nas leis do universo
..." [ISA, p. 398]; "Acredito
no Deus de Espinosa, que se revela na harmonia bem-ordenada de tudo
o que existe; mas não acredito num Deus que se ocupe com o
destino e as ações da humanidade." [p.
399.] Um outro caso são os cientistas que adotam fervorosamente
alguma religião: em sua pesquisa científica são
100% materialistas, mas ao professarem sua religião são
espiritualistas (nos dois casos, em geral do tipo crente).
Uma vez participei no Instituto de Física da USP de uma mesa-redonda
com um conhecido geneticista brasileiro, que se considera profundamente
católico. Ele declarou publicamente algo como o seguinte: "Durante
a semana, eu ponho meu avental e vou para a o laboratório;
no fim de semana ponho meu terno e vou para a igreja, que mal há
nisso?" Para mim, isso é uma tragédia, pois os
tipos de pensamento que ele exerce nos dois casos e a maneira de encarar
o mundo são totalmente incompatíveis. No entanto, trata-se
de uma só pessoa; aparentemente, é como se ele tivesse
dupla personalidade. Ele encara o mundo do laboratório materialisticamente,
e o resto do mundo, talvez humano e social, espiritualmente. Mas onde
termina o mundo do laboratório e começa esse outro mundo?
O quanto do pensamento do laboratório influencia a vida comum,
e vice-versa? Para começar, os cientistas são pessoas
humanas, e vivem em sociedade. Em segundo lugar, a escolha da pesquisa
a ser feita não é uma ação científica,
pois depende do gosto ou impulso do cientista e da moda científica.
Esta última refere-se, por exemplo, aos modismos (preferências
por certas áreas consideradas muito importantes) na aceitação
de artigos, como também nas facilidades no financiamento da
pesquisa. Durante a "guerra fria", para garantir nos EUA
o financiamento de alguma pesquisa em Ciência da Computação
bastava dourar a pílula com algo de tradução
automática. Entre nós, um caso típico foi o do
Projeto Genoma da Xilella fastidiosa, promovido em 1997 pela
Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São
Paulo, fazendo com que muitos laboratórios de pesquisa em biologia
voltassem-se para essa área. Aliás, não há
hoje nenhum laboratório de biologia que se preze que não
tenha um sequenciador de DNA; já em 2000 um pesquisador de
um desses laboratórios disse-me que esse sequenciadores tornaram-se
tão populares e necessários como os voltímetros.
Por outro lado, muitas pessoas que se dizem religiosas ou espiritualistas
pensam materialisticamente, como os que querem provar fisicamente
a existência de fenômenos não-físicos. Conheci
razoavelmente bem um espírita que se tornou um renomado biólogo.
Ele contou-me que, quando jovem, media o peso das pessoas antes de
uma sessão mediúnica e logo depois dela, para ver se
parte da massa delas tinha sido consumida na energia (física,
obviamente) usada na manifestação dos "espíritos"
durante a sessão.
Como afirmei no item 5, considero absolutamente essencial fazer-se
uma separação entre o que é físico do
que é não-físico. O que é não-físico
não pode de maneira alguma ser detectado fisicamente, especialmente
por meio de aparelhos. Isso não significa que ele não
pode influenciar o mundo físico, principalmente nos seres vivos,
como em minha teoria indicada brevemente naquele item.
7. A ciência moderna
Vou aqui me referir à ciência como é feita e divulgada
pela quase totalidade dos cientistas.
A ciência moderna é essencialmente materialista-crente.
Basta ler revistas científicas e ver-se-á que as explicações
e teorias são baseadas exclusivamente em processos físicos;
por exemplo, nenhuma formula a hipótese de que o pensamento
pode ter origem não-física, e a atividade neuronal pode
ser uma consequência e não a causa dos pensamentos. Estou
certo de que um artigo que coloca expliciatamente essa hipótese
jamais seria aceito por uma revista científica de renome. Por
outro lado, quando são revistas de divulgação
científica, em geral abominam ou ridicularizam qualquer tipo
de espiritualismo.
É um fato que os sucessos
da ciência e da tecnologia (no sentido em inglês, isto
é, instrumentos e máquinas) fazem com que as pessoas
tornem-se cada vez mais crentes em ambas; já em 1976 eu chamei
a atenção para o que significa a crença na ciência
em meu artigo "O computador como instrumento do cientificismo".
Com essa crença, parece-me que as pessoas perdem, por exemplo,
o respeito pela natureza (a propósito, "respeito"
não pode fazer sentido de um ponto de vista materialista coerente,
pois da matéria ele não pode advir). Assim, perde-se
a intuição do lugar correto em que a ciência e
a tecnologia devem ser aplicadas, caindo-se em toda sorte de exageros.
A esse respeito, ver meu artigo "A
missão da tecnologia".
É muito importante reconhecer que a ciência e sua dileta
filha, a tecnologia, estão destruindo o mundo. O aquecimento
global é o caso atualmente mais difundido dessa destruição,
mas há inúmeros outros, como a poluição
dos alimentos, do ar e das águas, o condicionamento feito pela
TV e pelos jogos eletrônicos, etc. Jeffrey Smith, o autor do
excelente e bem documentado livro Genetic Roulette [SMI
J], afirmou em uma palestra que assisti em outubro de 2007
que considerava organismos geneticamente modificados (GM) uma ameaça
ao meio ambiente e à humanidade muito maior do que o aquecimento
global e os resíduos atômicos. Em seu livro, ele mostra
e documenta com citações de artigos científicos,
por exemplo, que a inserção de genes perturba o DNA
[p. 63], e o uso de bactérias
na transposição dos genes faz com que genes de plantas
GM passem para outras plantas, animais e seres humanos, quebrando
assim a barreira genética [p. 127].
Traduzo o seguinte trecho, que mostra o desastre resultante da fé
em declarações científicas e técnicas:
"Quando plantas GM resistentes a herbicidas apareceram no mercado
em 1996, a indústria de biotecnologia proclamou que elas iriam
necessitar de menos herbicida [curioso, elas não produzem herbicida,
são resistentes a ele, isto é, permitem que se o use
mais do que elas iriam aguentar se não fossem GM!]. Isso foi
verdade durante os primeiros três anos. O uso repetido do [herbicida]
Roundup [especificamente ao qual aquelas plantas GM tinham maior resistência],
entretanto, fez com que ervas daninhas desenvolvessem resistência
ao ingrediente ativo do herbicida, o Glifosato. [...] De acordo com
dados do USDA [ministério da agricultura americano], o efeito
na soja, algodão e milho nos Estados Unidos foi um aumento
de 138 milhões de libras (5%) em herbicidas de 1996 a 2004.
Isso está acelerando. Em 2004, a soja Roundup Ready recebeu
86% mais herbicidas que grãos convencionais." [p.
147.] Tenho uma forte impressão de que a mentalidade
imposta pela ciência, de crença na mesma, é que
levou à adoção de organismos GM. Os terríveis
efeitos colaterais do uso de organismos GM, que estão começando
a se manifestar, como por exemplo a citada transposição
dos genes modificados para outras espécies, são frutos
do reducionismo do método científico atual; com ele,
não se investigam e atingem aspectos globais, que podem mostrar
resultados imprevistos. Por exemplo, J. Smith cita que havia uma teoria,
abraçada pela indústria de biotecnologia, de que os
genes eram independentes; ele cita pesquisas científicas que
mostraram o contrário, havendo agrupamentos de genes funcionando
em conjunto, e que a expressão dos genes dependem do fator
"epigenético", isto é, influências fora
de genes específicos. "Toda essa nova informação
sobre genes não foi considerada quando a tecnologia de inserção
de genes foi desenvolvida. Uma inserção aleatória,
com suas mutações e eliminações associadas,
pode causar uma devastação em uma rede de genes finamente
afinados e coordenados." [p. 121.]
Em outras palavras, a expressão genética é extremamente
complexa: "A biologia é muito mais complexa que a tecnologia",
segundo Robert Mann, bioquímico da Universidade de Auckland
[p. 120]. Além disso, as plantas
GM comerciais não foram de modo algum introduzidas pensando-se
no bem da humanidade, mas sim para satisfazer a ganância monetária.
Vou caracterizar aqui a ciência que levou aos organismos GM
que estão produzindo desastres ecológicos como "má
ciência". Um exemplo clássico de má ciência
foram as pesquisas que mostravam que o fumo não tinha efeito
nocivo à saúde dos fumantes. Um outro, pouco mas antigo,
não previa as consequências da radiação
provocada pela explosão de bombas atômicas, o que acabou
levando ao banimento dos testes com elas somente muito tempo depois
de iniciados. Tenho a impressão de que, se houvesse mais respeito
pela natureza, muitos dos desastres provocados pelas descobertas científicas
teriam sido evitados. Infelizmente, como já afirmei no começo
deste item, respeito tem que ser estranho ao materialismo, pois da
matéria ele não pode advir.
É esse reducionismo do método científico corrente,
perdendo a noção do global em todos os níveis,
e a falta de respeito para com a natureza proveniente do materialismo
e da ambição, que nos levam ao seguinte paradoxo: na
era do materialismo, estamos destruindo a matéria do mundo.
É preciso algo que transcenda a matéria para respeitá-la
e para que se tenha e se exerça um amor altruísta, oposto
às ações ditadas pelo egoísmo.
Em minha opinião, uma das consequências mais funestas
do materialismo, especialmente da ciência materialista, é
a consideração de que o ser humano é uma máquina,
ideia publicada em um livro por La Méttrie já em 1748
(L’Homme-Machine). Isso está errado já
do ponto de vista linguístico, pois "máquina"
aplica-se a um artefato projetado e construído; mas os seres
humanos não foram nem projetados nem construídos. O
correto seria dizer que o ser humano é um ser puramente físico.
No entanto, tenho sido bem radical nos últimos tempos a esse
respeito: parece-me que não há nada, absolutamente nada
puramente físico nos seres vivos, desde as células até
os organismos completos, isto é, neles sempre se manifesta
algo não-físico.
A imagem passada pelos cientistas, de que o ser humano é uma
máquina, já impregnou a mentalidade de boa parte da
humanidade. O terrível desse erro crasso é que não
há moral intrínseca às máquinas, como
não a há nos animais, plantas ou minerais. Pode haver
ética ou moral no emprego de uma máquina, mas não
intrinsecamente nela própria, no sentido de que uma máquina
pode ter responsabilidade pelas suas ações: quem é
responsável pelo seu funcionamento é o seu usuário,
ou mesmo quem a produziu. Assim, a imagem de que o ser humano é
uma máquina retira dele a sua moral intrínseca. Os resultados
dessa mentalidade serão cada vez mais terríveis. Por
exemplo, do mesmo modo que não é um ato imoral deixar
de colocar combustível em um automóvel estacionado em
uma garagem, quem sabe também não será considerado
imoral deixar um ser humano sem comida. A propósito, quantas
pessoas importam-se conscientemente que centenas de milhões
de pessoas, incluindo crianças, estão passando fome
neste momento, apesar de o mundo produzir comida suficiente? (Um artigo de Susan
Sheperd no N.Y.Times de 30/1/08 cita que a cada
ano morrem 5 milhões de crianças de menos de 5 anos
por falta de alimentação.) Um outro exemplo é
a total falta de sensibilidade que criminosos e terroristas em todo
o mundo estão mostrando frente ao sofrimento de suas vítimas:
se elas são máquinas, seu sofrimento não faz
sentido. O quanto isso é devido à mentalidade materialista?
Para mais detalhes sobre o ser humano não ser uma máquina,
e em particular sobre o fato de que máquinas jamais vão
ter sentimentos e pensamentos no sentido humano, ver meu artigo
sobre Inteligência Artificial.
Uma das características essenciais da ciência moderna
é a sua extrema especialização. Existe inclusive
uma crença de que só os especialistas podem emitir opiniões,
esquecendo-se que ao se fazer um julgamento sempre entram fatores
imponderáveis, pois o conhecimento do mundo real não
pode ser total. O máximo que os especialistas deveriam fazer
é apresentar seus dados e teorias; a decisão de usá-los
de uma ou outra forma não é um ato científico,
isto é, a decisão final não deveria ser tomada
por eles ou baseada exclusivamente em seus dados. Essa extrema especialização
faz com que não-especialistas tenham muita dificuldade em compreender
a linguagem e os conceitos dos especialistas. Há uma tendência
a se achar popularmente que a ciência e a técnica são
complicadas demais e não é possível, ou é
extremamente difícil, compreender os seus conceitos. Isso contribui
decisivamente para a paralisia mental citada no requisito 3.2. Com
isso, fica-se à mercê dos especialistas, isto é,
do materialismo que, em geral, impera neles.
Uma outra característica essencial da ciência moderna
é a obsessão em usar modelos matemáticos, a ponto
de se considerar que, se não houver expressão matemática,
uma teoria não é científica, como às vezes
é infelizmente considerada a Teoria das Cores de Goethe [SEP,
pp. 8, 176]. Tenho a impressão de que o uso desses modelos
deve-se à objetividade que eles introduzem. De fato, eles são
absolutamente universais: qualquer pessoa adequadamente preparada
pode compreender a Matemática por detrás deles, e empregá-los
universalmente na previsão ou confirmação de
resultados experimentais. No entanto, é necessário reconhecer
que os modelos matemáticos envolvem unicamente previsão
ou confirmação de resultados de medidas. Por exemplo,
a "Lei" da Atração Gravitacional de Newton
expressa uma relação numérica entre as medidas
das massas de corpos que se atraem, da distância entre eles,
de uma constante (no caso da gravitação, a aceleração
da gravidade), e da força de atração. Como todos
os modelos matemáticos, essas medidas devem ser expressas quantitativamente.
Com isso, os modelos matemáticos eliminam o aspecto qualitativo
das coisas – além de não expressarem a essência
delas: a fórmula de Newton não diz nada sobre a origem
da atração gravitacional (um mistério científico
até hoje).
É essa obsessão pela quantificação que,
parece-me, levou à descoberta do DNA que, no fundo, é
um modelo matemático, com todas as limitações
desse modelo. Por exemplo, na realidade o DNA não é
aquela hélice estática, como dá a impressão
de ser. Uma sequência de bases do DNA, formando um gene, não
é algo isolado, pois interage com outros genes. O DNA sem o
ambiente celular não produz absolutamente nada, como mostrei
no ensaio "Desmistificação
da onda do DNA", e onde cito exageros, típicos
de crença na ciência, que se atribui a ele.
A ciência pode ser ampliada por meio da adoção
de uma visão espiritualista científica. Uma das consequências
disso seria passar-se a fazer ciência qualitativa, além
da quantitativa (única feita hoje em dia). Outra consequência
seria ter-se novamente uma ciência mais humana. A ciência
moderna é intrinsecamente desumana, por exemplo na exigência
da reprodutibilidade dos experimentos: muitas experiências humanas
não são reprodutíveis. Por exemplo, o leitor
deste artigo não será exatamente o mesmo depois de tê-lo
lido: os seres humanos incorporam todas suas vivências (principalmente
em seu sub- ou inconsciente). Além disso, a objetividade da
ciência elimina os aspectos subjetivos do ser humano, como seus
sentimentos e impulsos de vontade.
Um pequeno passo, de grande impacto, levaria a uma ampliação
da teoria da evolução: considerar-se que nem todas as
mutações e nem todas as seleções naturais
foram aleatórias, mas dirigidas pelos membros não-físicos
constituintes dos indivíduos e das espécies. Isso abriria
um enorme campo de pesquisa, pois se poderia, por exemplo, considerar
que a evolução teve um objetivo: o aparecimento do ser
humano que, claramente, é o coroamento da mesma. Um exemplo
de um raciocínio diferente proveniente de uma ciência
ampliada levando-se em consideração processos não-físicos,
é a razão para que seres humanos sejam eretos: sem essa
posição, eles não poderiam ter desenvolvido a
liberdade (que os animais não têm).
8. As religiões instituídas
As religiões instituídas são praticamente todas
espiritualistas-crentes, pois são baseadas na fé e em
dogmas. Uma das consequências das suas crenças é
a intolerância existente entre as várias religiões.
Ela é fruto da falta de compreensão de cada uma pelas
outras. Mas para haver compreensão, é preciso conceituar
o que está por detrás de cada religião, começando-se
obviamente por separar claramente o que seria uma religião
original, do que se tornou essa religião devido a tradições
e interpretações que foram acumulando-se com os tempos,
modificando-a.
Um caso típico desses, que menciono pois é muito pouco
conhecido e mal compreendido, é a questão do monoteísmo
universal. A religião judaica, de onde esse conceito espalhou-se
para o ocidente, não era absolutamente monoteísta em
sua origem. Por exemplo, o primeiro mandamento diz: "Eu sou I’hová
[minha transliteração da grafia do texto masorético
vocalizado, correspondente ao que se denomina de Jeová], teu
Deus [no original, Elohim, que é um plural; ver o
próximo parágrafo], que te fez sair da terra do Egito,
da casa da escravidão. Não terás outros deuses
diante de mim. Não farás para ti imagem esculpida de
nada que se assemelhe ao que existe lá em cima nos céus,
ou embaixo na terra, ou nas águas que estão debaixo
da terra. Não te prostrarás diante desses deuses e não
os servirás, porque eu, I’hová teu Deus, sou um
Deus ciumento, que puno a iniquidade dos pais sobre os filhos até
a terceira e a quarta geração dos que me odeiam, mas
que também ajo com amor até a milésima geração
para com aqueles que me amam e guardam meus mandamentos." [Bíblia
de Jerusalém, Ex. 20:2-6.] Uma leitura isenta de
preconceitos mostra claramente que não está dito que
não existem outros deuses, e sim que há um só,
I’hová, atribuído ao povo hebreu, a quem este
deveria obedecer. As "imagens esculpidas" podem ser representações
de coisas físicas, mas também de seres não-físicos,
o que seria o caso de seres divinos (no plural; "céus"
pode significar o mundo espiritual, e "terra" o mundo material).
É também interessante notar a referência ao fato
de I’hová ser ciumento e vingativo. É só
ler a invasão dos hebreus na Terra Prometida e ver os casos
sanguinários de terra arrasada ordenados por ele, por exemplo
no caso da cidade de Jericó [Jos. 6:21].
De fato, a doutrina do amor altruísta, da bondade irrestrita,
só aparece com o Cristo, substituindo o vingativo "olho
por olho, dente por dente" [Deut. 19:21],
e com a introdução do perdão individual –
antes, considerava-se que só I’hová e os Elohim
podiam perdoar. Aliás, é interessante notar que o Cristo
não quis fundar uma nova religião, e sim apenas renovar
o judaísmo, pois o ser humano havia mudado desde a origem dessa
religião. Objetivamente, os Evangelhos não são
códigos de conduta nem dão prescrição
de cultos: são o relato da atuação dessa entidade,
o relato de uma vida, dando-se um exemplo de atitude e ação
que se julgava dever ser seguido para o bem da humanidade.
Voltando à questão do monoteísmo, já a
primeira denominação do que hoje se chama de Deus é
um plural, "Elohim" [Gen.
1:1], e só posteriormente é que aparece I’hová
[Gen. 2:4]; já aí temos
várias entidades diferentes, que a tradição aos
poucos interpretou como uma só, conhecida por "Deus".
Em lugar de pronunciar "o nome inefável" I’hová,
a tradição judaica introduziu a palavra "Adonai",
que significa literalmente "meus senhores", novamente um
plural. Eu já tinha grande desconfiança com relação
ao pretenso monoteísmo judaico, quando li o magnífico
livro de Paul Johnson, História dos Judeus. Ele conclui
que o monoteísmo universal só aparece com Isaías
[JOH, p. 86]. Portanto, antes de Isaías
havia o que eu denomino de um "monoteísmo local"
ao povo hebreu, significando que havia apenas uma divindade, I’hová,
associada a ele, e não outras, cuja existência não
é negada. A compreensão do que significa monoteísmo
é fundamental para se compreender as religiões ditas
monoteístas.
Falando de Deus, é importante reconhecer que, independentemente
de como se encara essa entidade, se ela fosse onipotente, como querem
várias religiões, o ser humano não poderia ser
livre. Por outro lado, ela não pode ser onisciente pois, por
exemplo, não tem nossos olhos para conhecer o mundo físico
como o conhecemos, e jamais passou pelo sofrimento que os seres humanos
podem passar (como por exemplo a dor), e muito menos vivenciar a morte
(não confundir Cristo com Deus; nos evangelhos, o primeiro
refere-se ao segundo como "pai"). Note-se que, em meus livros
e artigos, eu jamais apelo para Deus para explicar ou justificar seja
lá o que for pois, para abordar os assuntos pertinentes ao
mundo não-físico, não necessito da noção
de uma entidade abstrata dessas; basta referir-me ao fato de que cada
ser humano, cada animal e cada planta contêm algo de não-físico
individual (e também coletivo no caso de plantas e animais,
daí sua falta de "individualidade superior" e suas
manifestações), ligado ao seu corpo físico; a
sua manifestação é algo palpável, como
por exemplo a diferença fundamental entre minerais, plantas,
animais e seres humanos. Pode-se admitir que a suas diferentes formas
exteriores são simplesmente expressão de seus constituintes
não-físicos.
A compreensão das religiões só pode advir de
um espiritualismo científico. Obviamente, assuntos religiosos
escapam totalmente a uma cosmovisão materialista do mundo.
Por outro lado, uma religião é dificilmente compreendida
por outra pois esta é garantidamente espiritualista-crente.
Note-se que tolerância é diferente de compreensão;
no entanto, esta pode levar à primeira.
Da mesma maneira que o materialismo-crença leva a fanatismos
pela ciência e pela tecnologia, o espiritualismo-crença
de todas as religiões leva facilmente ao fanatismo, ou fundamentalismo,
religioso. Vemos ainda nos dias de hoje esse tipo de fanatismo, que
faz os adeptos serem levados pelos sentimentos, especialmente pelo
ódio, a ponto de chegarem a cometer homicídios, tanto
no judaísmo, quanto no cristianismo, no islamismo, no hinduísmo,
etc., numa total volta indevida a um passado que a humanidade há
muito ultrapassou. É óbvio que existem círculos
mais humanos dentro dessas religiões, mas isso ocorre quando
elas se modernizam. Infelizmente, elas não chegam à
total modernização que, em minha opinião, seria
a sua evolução para o espiritualismo científico.
Parece-me que as religiões tornaram-se, em geral, uma forma
de materialismo. Max Weber já apontou para a ligação
da ética protestante com o anseio por um enriquecimento monetário,
tipicamente egoísta e materialista. Aqui no Brasil, temos os
exemplos vivos de várias seitas evangélicas que, claramente,
são religiosas apenas nas aparências ou para os ingênuos.
É muito comum adeptos fundamentalistas de várias religiões
não respeitarem a vida humana – exatamente o contrário
do que se esperaria se as religiões fossem realmente espiritualistas;
lembremos que da matéria não pode advir respeito. Por
seu lado, o espiritismo mediúnico, muito popular no Brasil,
procura forçar a manifestação material do não-físico,
em lugar de elevar cada ser humano ao nível da observação
consciente do mundo não-físico. Uma outra manifestação
do materialismo das religiões é a maneira como teólogos
interpretam narrações da Bíblia, como se fossem
puramente físicos, o que inclui o criacionismo bíblico
citado no item 2 e sobre o qual me estenderei em mais detalhes no
próximo item.
Em seu recente livro, Richard Dawkins argumenta contra as religiões
instituídas e sua crença em Deus [DAW
b]; eu concordo com muitos de seus interessantes argumentos,
e aprendi muito com seu livro, apesar de ter muitas objeções
a ele. Mas se vê claramente que, sendo um materialista, ele
não pode compreendê-las. É muito importante reconhecer
que seus argumentos contra Deus e certas práticas das religiões
não se aplicam ao espiritualismo científico.
9. O abismo entre ciência e religião
Hoje em dia é muito comum considerar-se que
há um abismo intransponível entre ciência e religião,
a ponto de se declarar que as áreas abrangidas por cada uma
são totalmente distintas, isto é, a ciência não
teria nada a dizer sobre religião e esta nada a dizer sobre
fatos científicos (não confundir esses fatos com a ética
da pesquisa científica). Há mesmo vários cientistas
que separam tanto as duas, que se permitem considerarem-se religiosos,
como citei no item 6.
Há duas razões para o abismo em questão. A primeira
é um profundo preconceito do materialismo-crença, que
ignora e muitas vezes ridiculariza qualquer espiritualismo, recusando-se
a tomá-lo em consideração. A segunda é
o dogmatismo do espiritualismo-crença, especialmente das religiões
instituídas, devido à sua falta de busca por compreensão
de fenômenos em uma atitude anti-científica; isso produz,
com razão, uma reação negativa por parte dos
materialistas. É interessante notar que ambos sentem-se ameaçados
um pelo outro. Assim, uma de minhas teses é que esse abismo
é culpa tanto da ciência como das religiões, e
não deveria existir.
Exemplo típico desse abismo é o provocado, do lado do
materialismo, pelos adeptos da evolução darwinista,
e do lado de muitos espiritualimos-crença, incluindo várias
religiões, pelos criacionistas bíblicos. Ambos não
se entendem pois seus defensores não adotam uma atitude científica.
Se esse fosse o caso, os evolucionistas seriam mais humildes e se
interessariam por possíveis explicações espiritualistas
para muitos dos problemas apresentados pela teoria da evolução,
como por exemplo o fato de os seres humanos terem a coluna vertebral
com um duplo S (inexistente nos animais), não terem pelo ou
penas, e terem desenvolvido a fala e o pensamento. A respeito desses
dois últimos pontos, veja-se o interessante artigo de Ian Tattersal,
onde ele diz: "[...] não podemos atribuir o advento das
capacidades cognitivas modernas simplesmente como a culminação
de uma tendência de desenvolvimento do cérebro ao longo
do tempo. Alguma coisa ocorreu além de um polimento [buffing-up]
do mecanismo cognitivo." [TAT, p. 44.]
"[...] temos que concluir que o aparecimento da linguagem e os
seus correlatos anatômicos não foi impulsionado por seleção
natural, por mais que essas inovações benéficas
possam parecer significantes a posteriori [in hindsight]." [p.
49.] Veja-se ainda o excepcional artigo do biólogo Craig Holdrege,
"The
giraffe’s short neck", que mostra alguns problemas
da teoria darwinista, especialmente referente à crença
popular (e científica) de que o pescoço da girafa cresceu
para que ela pudesse alcançar folhas mais altas (para começar,
Holdrege mostra que as fêmeas são mais baixas que os
machos; eu ainda acrescento: se fosse para atingir folhas mais altas,
as girafas deveriam ter-se mutado em macacos...). Aliás, Holdrege
aparentemente encaixa-se perfeitamente no meu conceito de "espiritualista
científico".
Uma observação pessoal quanto a uma classe de problemas
da evolução darwinista: aqui em Campos do Jordão,
onde estou escrevendo estas linhas, já observei e classifiquei
uma dúzia de espécies de beija-flores. Como é
que uma delas não teve vantagens evolucionistas e sobrepujou
as outras, se há diferenças entre todas elas? Mais especificamente,
há duas espécies bem distintas: um beija-flor cinzento
de bico bem curvo e rabo comprido branco, Phaethornis eurynome,
e outro, menor, todo verde, com pescoço branco, com uma mancha
branca no olho, de bico reto e rabo curto, Leucochloris albicollis.
(Já observei que ambas as espécies "beijam"
as mesmas flores.) Como é que uma dessas espécies não
se adaptou melhor do que a outra, e esta não desapareceu? Obviamente,
os evolucionistas virão com especulações do tipo:
"deve ter havido uma migração recente de pelo menos
uma das duas, e não houve tempo para ela sofrer as mutações
para chegar na outra", ou qualquer outra abstração
semelhante, que considero insatisfatória.
E por falar em mutações, evidentemente não é
uma só mutação que dá origem a uma outra
espécie; deve ser um número enorme delas, encadeadas
direitinho para que as mudanças sejam gradativas e harmônicas;
imagine-se uma espécie de cabra simplesmente esticando paulatinamente
o pescoço para ir alcançando folhas mais altas; as pernas,
o tronco, as vértebras, etc. teriam que acompanhar com suas
próprias mutações. Realmente, é preciso
ter uma mente muito simplista para acreditar numa explicação
dessas... Dawkins escreve que muitos seres vivos são altamente
improváveis (ocorrem-me os desenhos e cores dos rabos dos pavões
machos), mas a seleção natural explica que cada pequeno
passo em sua evolução tem uma probabilidade muito maior
[DAW b, p. 147]. Mas ele não menciona
que muitas mutações têm que ocorrer simultaneamente
para que alguma transformação vingue, e isso novamente
é altamente improvável.
Por outro lado, os criacionistas bíblicos insistem em atribuir
dogmaticamente a uma divindade, que denominam de Deus mas não
o caracterizam com clareza, a criação praticamente simultânea,
ex-nihilo, de todos os seres vivos, sem mostrarem como a
atuação de algo não-físico pode influenciar
o mundo físico – e mesmo se o mostrassem, teriam que
indicar como as plantas, animais e seres humanos puderam adaptar-se
ao seu aparecimento e a mudanças tão drásticas
no ambiente em tão pouco tempo! Isso obviamente não
pode ser aceito por alguém que adota uma atitude científica.
A partir desse abismo apareceram, principalmente nos EUA, conflitos
em relação à educação, com obrigações
e impedimentos de ensino de uma ou outra visão.
Um enfoque espiritualista-científico poderia resolver ambas
as querelas. Em termos de evolução, bastaria supor que
nem todas as mutações foram casuais, e nem toda seleção
é natural. Em outras palavras, existiram processos não-físicos
influenciando algumas delas. Eles não precisam ser devidos
a uma única entidade não-física (que é
a denominada por Deus). Pode-se supor que cada ser vivo tem algo de
não-físico interagindo com o seu corpo físico,
como por exemplo, o modelo que lhes dá e preserva a forma orgânica
e é responsável pela regeneração dos tecidos
e órgãos conservando sua forma semelhante à original.
(Sobre a questão da forma, veja-se o interessante artigo de
Steve Tallbot "Can the new science of evo-devo explain the form of organisms?";
veja-se também meu artigo "Por que sou espiritualista,
onde dou ênfase à questão das formas simétricas,
mostrando que membros não-físicos de seres vivos podem
estar atuando para moldar e preservar essas formas). Espécies
de animais também teriam algo não-físico que
influencia todos os membros da espécie, daí os animais
não terem o mesmo grau de individualidade que os seres humanos,
que atualmente não estão sujeitos a esse algo coletivo.
No item 5 eu esbocei brevemente minha teoria de como, nos seres vivos,
usando transições não-determinísticas
algo não-físico pode atuar sobre o físico.
Quanto à educação, a solução é
de uma tal simplicidade que é de se admirar como não
se a percebe. Acontece que o criacionismo bíblico é
baseado em imagens, em parábolas, como já foi exposto
no item 2. Ora, imagens cheias de fantasia são justamente o
que crianças pequenas (pelo menos até os 9 anos de idade)
precisam e gostam – daí apreciarem tanto os contos de
fadas e histórias. Crianças não procuram explicações
conceituais, que não entendem. Assim, o criacionismo bíblico
é o que deveria ser dado até aquela idade. Por outro
lado, jovens na idade do ensino médio (15 anos ou mais) já
desenvolveram sua capacidade de abstração ao ponto de
procurarem explicações conceituais, e não se
interessam mais por historinhas com imagens para explicar fenômenos,
não se satisfazendo com elas. Seria um absurdo ensinar as imagens
da Gênese no ensino médio; aí a teoria darwinista
deveria ser introduzida, mas como teoria, e não como verdade,
mostrando-se seus vários problemas, como por exemplo os citados
acima. A seleção natural ou artificial (por exemplo,
na seleção de plantas e animais com algumas características
desejáveis) é obviamente uma força atuante na
evolução, tendo consequências sérias, como
o caso do aparecimento de bactérias resistentes a antibióticos,
um grande problema em hospitais. Os estudantes deveriam aprender algo
sobre essas questões.
Não se deve ignorar a importância das ideias da evolução
darwinista para o desenvolvimento da humanidade, o que também
deve ser ensinado no ensino médio: ela contribuiu decisivamente
para eliminar o poder da crença religiosa, que vai contra a
tendência do ser humano moderno de buscar compreensão
e formulação de conceitos claros. No entanto, uma das
suas consequências fundamentais foi espalhar e praticamente
impor o materialismo. Mas já é mais do que tempo de
torná-la independente dele, de maneira a ampliar nossa compreensão
do mundo.
Uma das mais famosas frases de Einstein, de 1941, é a seguinte:
"A ciência sem a religião é manca, a religião
sem a ciência é cega" ("Science without
religion is lame, religion without science is blind.") [ISA,
p. 401, JAM, pp. 14, 76, 116]. Só que, do jeito que
são a ciência e as religiões hoje em dia, é
impossível haver a mescla que ele desejava. No entanto, se
ambas mudassem seus paradigmas, a seguinte frase teria sentido: "A
ciência sem o espiritualismo científico é manca,
a religião sem o espiritualismo científico é
cega." Sendo manca, a primeira não consegue chegar aonde
devia, isto é, conceituar muito do que deixa obscuro; sendo
cega, a segunda simplesmente não vê a realidade da natureza
e do ser humano, e como hoje em dia ele anseia por explicações
e rejeita dogmas. Se ambas evoluíssem para adotar o espiritualismo
científico, não haveria mais o abismo existente hoje
entre elas.
10. Por que adotar o materialismo?
10.1 As conquistas
da ciência e da tecnologia. No item 7 abordei o sucesso da ciência,
que trouxe muitas contribuições para a melhoria das
condições da humanidade. Na área da saúde,
são exemplos medidas de higiene, recomendações
de uma alimentação mais saudável e de que as
pessoas devem praticar exercícios físicos (os três
grandes fatores para o aumento da longevidade), bem como os admiráveis
avanços nas técnicas de diagnóstico e cirúrgicas
(a eletrônica e a mecânica dentro da Medicina). O advento
das telecomunicações produziu mudanças sociais
profundas, que infelizmente alimentaram um comodismo muito apreciado.
Por outro lado, as complexidades cada vez maiores das máquinas
fizeram com que as pessoas deixassem de entendê-las e mistificaram-nas
(cf. item 3.2). Por exemplo, todo o funcionamento
de um automóvel era compreensível, até que a
injeção eletrônica e os computadores foram neles
introduzidos; agora, seu funcionamento é em muitos aspectos
um grande mistério – até para os mecânicos
e eletricistas, que trocam os componentes sem saberem como eles funcionam.
Todos esses avanços e todo esse mistério fez com que
as pessoas passassem a admirar e acreditar profundamente na ciência
e na tecnologia – a ponto de a maioria da humanidade achar que
qualquer nova máquina é um bem. Com isso, há
cada vez menos consciência dos problemas causados pela tecnologia.
É por isso que apareceram livros criticando-a. A propósito,
os leitores que não estão conscientes dos problemas
causados pela Internet quando usada por crianças e adolescentes
deveriam ler o excelente livro de Gregory S. Smith, How to Protect
your children on the Internet; dei um parecer a uma editora muito
favorável à sua tradução [SMI G]; ver
também a
resenha que fiz desse livro.
A consequência de tudo isso é que as pessoas são
levadas (ou convencidas pelos cientistas) a adotar a mesma cosmovisão
da ciência atual; como vimos no item 7, essa cosmovisão
é o materialismo.
10.2 Coerência e abrangência da ciência.
Apesar de suas contradições (como por exemplo a dualidade
partícula-onda no nível atômico e até molecular),
a ciência dá uma visão razoavelmente coerente
do mundo físico. Leigos não estão em geral conscientes
dos problemas enfrentados pela ciência, como os descritos na
seção 5.
A abrangência e aparente coerência da ciência e
seus sucessos convencem as pessoas de que a visão de mundo
subjacente a ela é a correta. Uma pessoa que confia plenamente
na ciência e na tecnologia deveria adotar o materialismo.
10.3 A potência da percepção sensorial.
Nossos sentidos, especialmente a visão, tornaram-se tão
agudos, que as pessoas tendem a "acreditar apenas no que veem".
Como os sentidos só percebem o mundo físico, este é
o único que aparentemente existe.
10.4 A capacidade de abstração. Desde
o início do século XV, a capacidade de abstração
intelectual da humanidade aumentou enormemente. Um exemplo histórico
é o da adoção do sistema heliocêntrico:
Copérnico (1473-1543) estabeleceu esse sistema de uma maneira
absurda (conservando os epiciclos de Ptolomeu, isto é, os planetas
girando em torno de nada), só para poder calcular os eclipses
e conjunções com mais facilidade – uma razão
puramente abstrata! Galileu (1564-1642) foi silenciado em 1633 pela
Inquisição pois não tinha uma teoria heliocêntrica
satisfatória – simplesmente achou que, já que
os satélites de Júpiter aparentemente giravam em torno
dele, nem tudo girava em torno na Terra. Só com Newton (1642-1727)
aparece em 1687 a teoria da gravitação, que iria explicar
o porquê das órbitas elípticas em torno do Sol
descobertas por Kepler (1571-1630), que inicialmente não quis
aceitar sua própria teoria. Daí para diante não
houve mais dúvidas – veja-se a capacidade de abstração
que significou a adoção popular de uma teoria sem comprovação
experimental. Essa comprovação apareceu apenas em 1851
com o pêndulo de Foucault (1819-1868), praticamente 300 anos
depois da publicação do tratado seminal de Copérnico,
De Revolutionibus Orbium Coelestium Libri VI, cujas provas
ele reviu em seu leito de morte.
As explicações científicas são hoje em
dia todas abstratas, em geral envolvendo modelos matemáticos.
A capacidade de abstração faz com que as pessoas desvinculem-se
da realidade e adotem a visão científica do mundo que,
como já expus no item 7, é materialista.
10.5 Medo. Muitos cientistas e materialistas têm
receio de tornarem-se místicos ou de voltarem a pensar como
em tempos antigos, se adotarem uma visão espiritualista. Talvez
o medo mais profundo dos materialistas seja perder seu racionalismo
e cair em um obscurantismo. Esses medos são plenamente justificados,
devido ao misticismo envolvido nas atividades e pensamentos religiosos
e em várias formas de espiritualismo-crença, bem como
a irracionalidade, falta de lógica e de bom senso muito comuns
neles.
10.6 Mentalidade simplista. As explicações
mecanicistas da ciência para muitos fenômenos tendem a
ser simplistas, e com isso serem muito atraentes. Esse claramente
é o caso da teoria da evolução neo-darwinista,
remontando toda a evolução somente a duas pretensas
causas: mutação genética e seleção
natural. Muitas vezes, sistemas altamente complexos são apresentados
ao público leigo como muito simples. Exemplos disso são
a noção de que o coração é uma
bomba que faz com que o sangue circule no corpo, o
modelo atômico planetário de Rutherford (que
quase toda a humanidade adota como verdadeiro), a origem dos relâmpagos
como descargas provocadas pela diferença de tensão elétrica
entre as nuvens ou entre estas e o solo, e as marés serem causadas
simplesmente pela atração gravitacional da Lua e do
Sol sobre os mares (ver 11.6 para detalhes).
10.7 A hipótese ou crença no acaso.
A existência de processos aleatórios, casuais, é
um dos pilares da ciência. Quem se satisfaz com isso, deve sentir-se
atraído para o materialismo.
10.8 O caráter das religiões instituídas.
Como já citei, em geral as religiões instituídas
não correspondem à constituição atual
do ser humano; hoje em dia, este procura compreensão e não
crença. Além disso, elas cerceiam a liberdade impondo
a seus adeptos regras dogmáticas de pensamento e de conduta,
quando hoje em dia essas regras deveriam ser estabelecidas por cada
um, baseadas na compreensão da natureza e do ser humano. Exemplos
dessas imposições são: o celibato dos padres
católicos e o fato de só homens poderem ser padres e
ter seus privilégios; roupas padronizadas, impessoais e muitas
vezes inadequadas para o clima, como as dos ortodoxos judeus (aliás,
por que muitos destes adotam o cáftan, sobretudo preto que
era usado no leste europeu, e muito útil no frio, em lugar
de usarem em nossos climas equatoriais e tropicais uma bata e turbante
como provavelmente era o caso no judaísmo original de Canaã?);
a aparente eliminação da individualidade de certas seitas
orientalistas, etc. Recentemente, o papa conclamou os fiéis
católicos a continuarem com a evangelização,
que obviamente não respeita culturas ditas "pagãs".
Muitas pessoas entram em um culto religioso e não compreendem
nada do que lá se passa (aliás, a impressão que
se tem é que os oficiantes estão repetindo práticas
que tinham na Antiguidade um sentido profundo, mas cujo conteúdo
hoje também não compreendem). O autoritarismo prevalente
em quase todas as religiões também se choca contra um
espírito científico. A sua organização
hierárquica não mais corresponde à mentalidade
moderna, em que todos gostariam de ser tratados como adultos responsáveis
e de participar nas decisões. A influência que as religiões
têm em educação (ver item
9 acima), na ciência, na política e na religião
não é considerada por muitas pessoas com cultura como
saudável para a sociedade. Dawkins discorre extensivamente
contra muitas ideias e práticas não-razoáveis
por parte de religiões que acreditam em Deus; eu concordo com
muitas de suas observações a esse respeito
[DAW b].
Tudo isso faz com que muitas pessoas criem uma verdadeira ojeriza
por tudo o que é religioso, caindo-se assim no extremo oposto,
o materialismo. Em outras palavras, estou pondo parcialmente a culpa
pelo crescente materialismo atual na maneira como as religiões
são hoje em dia.
10.9 A trágica história de diversas
religiões. O anseio pela liberdade individual e o reconhecimento
dos direitos humanos é uma das características da humanidade
moderna. A história trágica de várias religiões,
agindo contra essas características, pode levar pessoas de
hoje a refutarem qualquer espiritualismo, achando que ele pode levar
a essas barbaridades do passado e que ainda ocorrem localmente no
presente. Exemplos de barbaridades são, no caso da Igreja Católica,
os massacres verdadeiramente anti-cristãos que ela produziu,
como contra as seitas heréticas (maniqueístas, cátaros,
bogomilos), as cruzadas (aliás, baseadas numa visão
tipicamente materialista, buscando-se o sagrado, isto é, o
não-físico, em algo material, uma certa região
da Terra), a Inquisição (a perseguição
às "bruxas", aos judeus e cristãos novos,
a destruição dos Templários, etc.); no caso do
Islamismo, os horrores humanos que o seu fundamentalismo tem produzido,
aparentando uma total irracionalidade e falta de compaixão;
conflitos religiosos na Irlanda e na Ásia, etc.
10.10 Desrespeito pela natureza. Quem não
tem a sensibilidade para admirar a natureza e para respeitá-la,
deveria adotar o materialismo. Aliás, parece-me que a adoção
de organismos geneticamente modificados, uma vitória da ciência
materialista, é justamente fruto desse desrespeito, como citei
no item 7.
10.11 A vida não tem sentido. Quem acha isso,
e deseja ser uma pessoa coerente, deveria adotar a o materialismo,
pois da matéria não pode advir nenhum sentido para a
vida (ver 11.9 para mais detalhes).
10.12 Desconhecimento. Muitas pessoas adotam o materialismo
por desconhecerem que existem outras alternativas satisfatórias.
Nos próximos itens darei algumas indicações que,
espero, trarão a algumas pessoas alguma luz sobre essa questão.
11. Por que adotar o espiritualismo científico?
Neste item, vou abreviar "cosmovisão materialista"
por CM e "cosmovisão espiritualista científica"
por CEC. Vejamos por que alguém poderia estar propenso a adotar
esta última.
11.1 A CM é insatisfatória. No item
2 citei o problema da origem da matéria e da energia. No item
9 expus mais alguns problemas da ciência. Ora, a ciência
é a base da CM; só por isso teríamos esta última
também insatisfatória. Mas há outros problemas,
não abordados pela ciência.
A noção de liberdade é uma das grandes conquistas
da humanidade, de modo que, por exemplo, hoje a escravidão
parece uma aberração – o que não era na
Antiguidade: a República de Platão baseava-se em escravos;
o Brasil foi o último país na América a abolir
a escravatura, em 1888 (Darwin ficou revoltadíssimo ao vê-la
nesse país em 1832); até a abolição, poucas
pessoas daqui achavam que ela era desumana. Além disso, é
um fato que qualquer pessoa pode observar seu próprio pensamento
e constatar que é capaz de determinar livremente o próximo
pensamento, pelo menos por alguns instantes. Essa auto-determinação
leva à observação pessoal de que existe o livre-arbítrio
no pensamento, sendo portanto uma forte indicação de
que existem processos não-físicos no ser humano, já
que, como citei na afirmação (b) do item 4, da matéria
não pode advir liberdade. Como eu já citei no item 5,
para maiores detalhes, ver meu artigo "Por
que sou espiritualista", onde dou exercícios mentais
para qualquer pessoa fazer pessoalmente aquela observação.
Nesse artigo abordo ainda várias outras razões para
adotar-se a CEC, como por exemplo uma questão fundamental,
a da formas dos seres vivos; essas formas aparentemente seguem um
modelo mental, não-físico, influenciando o crescimento
do organismo e a regeneração dos tecidos.
Uma outra fonte de insatisfação com a ciência
corrente e o materialismo em que ela se baseia é a hipótese
ou crença na existência do acaso, como citei em 10.7.
Para citar um exemplo local, o desastre entre o avião comercial
da empresa Gol e o avião do tipo Legacy fabricado pela Embraer,
ocorrido em novembro de 2006, teve uma sequência fantástica
de coincidências, desde todo o histórico de vôo
errado do segundo (incluindo o engano na aerovia e o desligamento
do transponder), como o fato de a ponta vertical da asa dele
ter cortado a asa do avião comercial como se fosse uma navalha:
com algumas dezenas de centímetros de diferença de altura,
ou alguns metros de diferença na distância horizontal,
o acidente não teria ocorrido – imagine-se o que isso
significa dentro da relativamente enorme aerovia que estava sendo
seguida por ambos os aviões.
Pondo-se a culpa de algo no acaso encerra-se a pesquisa. Certamente
isso deve satisfazer àqueles que têm uma mentalidade
simplista, mas não aos que querem compreender as coisas com
mais profundidade. No caso de ações humanas, qual é
a atuação do inconsciente das pessoas, principalmente
em relação ao de outras, levando-as a situações
de terem encontros importantes, "pegarem" doenças
ou sofrerem acidentes, o que é comumente expresso pela expressão
"destino"? Onde entra a liberdade humana, se existir um
tal "destino"? Obviamente, essas questões escapam
totalmente a uma CM, mas podem ser investigadas dentro de uma CEC,
em que se pode de início duvidar do acaso físico (algumas
causas podem não ser físicas) e partir da hipótese
de que o ser humano pode ser livre.
A propósito, pondo-se a culpa de algo em Deus também
encerra-se a pesquisa, como muito bem aponta Dawkins [DAW
b, pp. 152, 154, 159, 160 já citadas no item 2.4].
11.2 Insatisfação com a desumanidade.
Como vimos no item 7, a CM é desumana.
11.3 A preservação do ser humano e
da natureza. A destruição atual do ser humano e da natureza
é provavelmente devida em grande parte à mentalidade
imposta pela CM pois, como mostrei no item 7, da matéria não
podem advir responsabilidade e moral, que só fazem sentido
dentro de uma visão espiritualista. Em particular, a responsabilidade
para com a natureza só pode ser consequência de uma tal
visão. Aquilo que aparentemente é inofensivo do ponto
de vista material pode não sê-lo de um ponto de vista
mais amplo, abrangendo aspectos qualitativos e não-físicos.
Por exemplo, considerando-se que a liberdade deve ser desenvolvida
e preservada em cada ser humano, um meio de comunicação
como a TV, que produz um efeito de condicionamento (ver
[SET] e vários artigos em meu site), deveria
ser evitado. Só para citar um caso que comprova isso, a rede
MacDonald’s gastou nos EUA 510,5 milhões de dólares
em 2002 só em propaganda pela TV [LIN,
p. 132]. Uma empresa dessas não iria jogar essa fortuna
no lixo; gastou-a obviamente por que ela funciona, isto é,
condiciona as pessoas a comerem nas lojas da rede e redunda em polpudos
lucros.
Não estou propondo proibições, como seria a de
se banir a TV. O que estou propondo é a conscientização
das pessoas para uma possibilidade de se adotar uma CEC; estou seguro
que se uma pessoa o fizesse, iria por conta própria eliminar
ou restringir drasticamente o uso de TV e outros aparelhos que não
são necessários e são destrutivos, como por exemplo
os jogos eletrônicos de ação.
11.4 Respeito e veneração pela natureza
e pelo ser humano. A CEC pode levar a um respeito e uma veneração
pela natureza e pela vida humana e a uma moral baseada na compreensão.
Do ponto de vista da CEC, pode-se afirmar, por exemplo, que cada ser
humano existe para desenvolver-se. Isso significa que não temos
o direito de matar um ser humano; se ele for perigoso para a sociedade,
pode-se confiná-lo, mas deve-se dar-lhe a oportunidade de reconhecer
seus erros e regenerar-se. Do ponto de vista materialista, não
deveria haver nenhum problema em se matar um ser humano – afinal,
ele é só matéria!
É o desrespeito pelo ser humano e para com a natureza, inerente
à CM (ver 10.10) que leva muitas
pessoas a ficarem insatisfeitas com ela. Note-se que muitos cientistas
materialistas não têm esse desrespeito, muito pelo contrário.
Só que também aí eles não são coerentes;
e a maior incoerência nesse sentido ocorre quando eles chegam
a ter veneração pela natureza, pois a matéria
não pode venerar coisa alguma e, em si, não pode suscitar
veneração.
Sobre esse ponto, vale a pena notar que certos movimentos ecológicos
claramente não partem de uma CM, e sim de sentimentos de admiração
pela beleza e sabedoria da natureza, bem como de uma intuição
de que ela deve ser respeitada. Esse é caso, por exemplo, do
movimento de proteção às baleias. Duvido que
se possa provar a utilidade delas (exceto economicamente, para baleeiros
japoneses...), pois estão no fim da cadeia alimentar. A CEC
pode justamente dar uma compreensão do que existe de não-físico
nas plantas e animais e como isso é essencial para a humanidade.
Um aspecto muito importante neste item é o reconhecimento de
que há uma sabedoria muito grande na natureza – e a maior
sabedoria física é encontrada no corpo humano. Do ponto
de vista da CM, essa sabedoria é fruto do acaso (ou, para Dawkins,
apenas devida à seleção natural [DAW
b]). Se uma pessoa acha isso muito simplista, e gostaria de
investigar as causas profundas dessa sabedoria, deveria adotar a CEC.
Reconhecendo-se a sabedoria no corpo humano, pode-se fazer, por exemplo,
a seguinte pergunta: "Como devem ser encaradas as doenças?"
Do ponto de vista da CM, as doenças, como vimos em 11.1, são
fruto do acaso e, obviamente, não fazem sentido e devem ser
eliminadas fazendo-se o possível para que deixem de existir.
Já do ponto de vista da CEC, pode-se fazer a hipótese
de que uma doença faz parte daquela sabedoria e, portanto,
não é fruto do acaso, sendo uma necessidade decorrente
da constituição humana. Uma das possibilidades é
que a doença faz parte do caminho de desenvolvimento individual
e coletivo. Nesse sentido, o papel do médico deveria mudar
radicalmente: em lugar de simplesmente eliminar uma doença
que um paciente tem, ele deveria ajudá-lo a suplantá-la
adequadamente, desenvolvendo-se por meio dela; obviamente, isso não
deve colocar a vida do paciente em risco.
Falando de doenças, aqui no Brasil temos um caso típico
de resultado de mentalidade materialista: a adição de
iodo ao sal, para prevenir o bócio. É impossível
encontrar-se sal sem iodo, pois isso é proibido por lei. Em
primeiro lugar, isso significa uma medicação forçada,
o que vai contra a liberdade individual. Em segundo lugar, parece
que já há indícios de que esse iodo está
provocando problemas, como por exemplo de hipertiroidismo, como publicado
na revista Pesquisa FAPESP em 2/2005 [http://www.revistapesquisa.fapesp.br/?art=2671&bd=1&pg=1&lg=].
Em terceiro lugar, obviamente se há falta de ingestão
de iodo em algumas populações, estas deveriam ser orientadas
a ingeri-lo, sem forçarem-se todos no país a fazê-lo.
Nos EUA há um caso semelhante: a fluoretação
da água. Lá, onde é uma tradição
tomar-se água da torneira, 67% da população com
fornecimento público de água recebem-na fluoretada [FAG,
p. 60]. Já há estudos recentes mostrando que
essa fluoretação pode estar significando excesso de
ingestão de flúor, principalmente quando a alimentação
é balanceada, acrescida de uso de pastas de dentes com essa
substância: em 2006 o National Research Council produziu
um relatório que chegou à conclusão de que "o
limite atual de flúor na água – 4 mg/l –
deveria ser diminuído devido a perigos para a saúde
de adultos e crianças. [...] Em adultos, esse nível
de flúor parece aumentar o risco de fratura dos ossos e, possivelmente,
de fluorose moderada do esqueleto, um endurecimento doloroso das juntas."
[p. 59.] Obviamente, o flúor não
influencia apenas os dentes, mas todos os ossos: aquele relatório
concluiu que "Se bem que o flúor pode aumentar o volume
dos ossos, a sua resistência aparentemente diminui. [...] 9
dos 12 membros do grupo [que produziu o relatório] concluíram
que uma exposição à água fluoretada a
4 mg/l ou mais durante toda a vida realmente aumenta o risco de fraturas.
[...] A questão ainda maior pairando sobre [looming over]
o debate sobre o flúor é se esses efeitos celulares
nos ossos e dentes são indicações de que o flúor
está afetando outros órgãos e levando a outras
doenças além da fluorose. O maior debate atual é
sobre osteosarcoma – a forma de câncer dos ossos mais
comum e o câncer mais frequente em crianças" [p.63.]
Tenho certeza que outros fatores não estão sendo investigados,
como por exemplo um possível endurecimento dos sentimentos
Em 1983, 145 municípios do Estado de São Paulo já
faziam fluoretação da água - (link).
11.5 Pesquisa. A CEC alarga os campos de pesquisa.
Obviamente, o materialismo restringe toda a pesquisa somente a fenômenos
físicos, como por exemplo procurar-se a origem dos pensamentos
apenas nos neurônios. A CEC pode fornecer uma compreensão
muito mais abrangente sobre a constituição humana, o
que amplia enormemente o campo de pesquisa. Sobre esse assunto, veja-se
meu
artigo sobre a constituição humana do ponto
de vista de uma CEC, apresentada no item 12.
Vou dar aqui um exemplo simples de ampliação da pesquisa.
Muitos caipiras dizem que se deve cortar sapé no quarto minguante
(ou na Lua nova?), pois assim ele dura mais, pega menos bichos, etc.
Ora, isso não faz nenhum sentido do ponto de vista da CM, de
modo que esse fato simplesmente não é investigado. Já
do ponto de vista da CEC, pode haver uma influência não-física
dos planetas, do Sol e da Lua nas plantas. Essa influência,
quando atuava sobre os seres humanos, é a origem da antiga
astrologia – hoje em geral um simples passa-tempo, sem o sentido
que tinha em sua origem, quando as pessoas ainda tinham alguma percepção
do mundo não-físico. A propósito, essa influênca
sobre os seres humanos tinha que diminuir, pois senão eles
não poderiam ter desenvolvido a liberdade. Assim, partindo-se
de uma CEC, uma investigação sobre a validade da tradição
popular do sapé, e muitas outras, poderiam muito bem ser feitas.
11.6 Falta de dogmas e crenças. A CEC não
leva a dogmas ou crenças e preserva a individualidade humana.
Em particular, ela elimina o dogmatismo atual da ciência quanto
ao materialismo e das religiões quanto às crenças.
11.7 O qualitativo. A CEC pode resgatar o caráter
qualitativo da natureza, que não faz sentido na ciência
materialista como é feita hoje.
11.8 Edifício conceitual. A CEC pode levar
a um edifício conceitual muito mais abrangente e com aplicações
práticas, como exemplificarei no item 12. Com isso, pode-se
ter uma coerência entre os conceitos da cosmovisão e
a prática do dia-a-dia, eliminando a dicotomia mencionada no
item 9.
11.9 Sentido para a vida. As pessoas que buscam um
sentido para o universo, para a Terra, para os seres vivos, para a
história e para sua própria vida não podem satisfazer-se
com a CM pois, como expus na consequência f do item 4, da matéria
não se pode chegar a um tal sentido. Ao contrário, a
CEC pode perfeitamente mostrar um sentido para tudo isso. No item
12 vou mencionar brevemente qual poderia ser um sentido geral para
a vida humana.
11.10 A complexidade do universo e da natureza. Quem
reconhece que o mundo é extremamente complexo, partindo do
cosmos, passando por um simples cristal, que tem uma história
de milhões de anos, até todas as manifestações
de vida, culminando com a complexidade física máxima
que é o corpo humano, e não se satisfaz com as explicações
simplistas da natureza dadas pelo reducionismo da ciência materialista,
deveria pender para um espiritualismo científico. No item 10.6
citei vários modelos e explicações simplistas,
nas quais acredita grande parte da humanidade. A primeira referia-se
à evolução, que deve ter sido de uma complexidade
inimaginável; a sua redução apenas a mutações
casuais e à seleção natural simplifica indevidamente
essa complexidade. As outras citadas contém erros. De fato,
o coração não é uma bomba que empurra
o sangue pelo corpo. Se assim fosse, deveria ter uma potência
fantástica para ser capaz de bombear um líquido muito
viscoso como é o sangue, através de milhares de quilômetros
de vasos, a maioria deles capilares. Se me lembro bem, um biólogo
disse uma vez que, se assim fosse, o coração teria que
ter mais ou menos a potência de uma bomba que empurrasse água
de New York a San Francisco, e ainda irrigasse os campos pelo caminho...
Uma das teorias (parciais) é que o coração produz
um pulso de pressão, detectado pelas artérias, que se
contraem, isto é o, corpo inteiro pulsa como uma orquestra
que tem o coração como maestro. O modelo atômico planetário de Rutherford
está completamente errado (e isso foi notado logo depois de
sua formulação): os elétrons não circulam
em torno do núcleo, pois senão emitiriam energia eletromagnética,
como numa antena irradiante de rádio, e cairiam nele, como
mostra a última figura da página do citado vínculo,
e nem ao menos o elétron é uma bolinha. Quanto aos relâmpagos,
não se sabe como eles começam: a diferença de
potencial entre nuvens e entre estas e o solo não é
suficiente para iniciar a descarga – depois que essa começa,
aí sim, a ionização do ar torna-o suficientemente
condutor para que a descarga se complete. Existem teorias que tentam
explicar o fenômeno, como a da ionização inicial do ar por meio de raios cósmicos
de muito alta energia; ver também http://en.wikipedia.org/wiki/Lightning.
Finalmente, as marés são apenas parcialmente devidas
às ações gravitacionais do Sol e da Lua, sendo
formadas por um complexo efeito de ressonância produzido também
pela influência de vários outros fatores, incluindo correntes
marítimas, a forma da base do oceano, etc. Aliás, nos
oceanos há os chamados pontos Amfidrômicos,
que praticamente não têm marés, e que funcionam
como centros em torno dos quais ondas de maré radiais giram
duas vezes ao dia (correspondendo às duas marés diárias).
Esses são apenas alguns grandes exemplos da extrema complexidade
da natureza. De fato, recomendo que se desconfie de qualquer teoria
reducionista simplista para quaisquer fenômenos da natureza.
Parece-me que explicações pseudo-científicas
sobre esses fenômenos procuram dar a impressão de que
modelos mecanicistas explicam tudo no mundo, quando é justamente
o contrário: eles explicam muito pouco. O objetivo desse simplismo
deve ser o de induzir o materialismo. No entanto, reconheço
perfeitamente que simplificações são necessárias
para se preverem resultados de experimentos, e para estabelecer teorias.
Porém, é necessário estar-se consciente de que
simplificações não podem abarcar totalmente a
realidade. Em particular, qualquer máquina é o resultado
de várias simplificações. Nesse sentido, pode-se
considerar que instrumentos e máquinas são subnaturais.
---
Por que existe uma hostilidade em
relação à CEC? Em minha opinião, isso
se deve principalmente aos pontos 10.5 e 10.12, medo e desconhecimento,
mencionados acima. No próximo item dou um exemplo que permitirá
ao leitor eliminar o seu eventual desconhecimento, se tiver coragem
de se aprofundar no estudo do caso a ser citado. Tenho a certeza que,
com esse estudo, o medo também desaparecerá.
12. Uma espiritualidade moderna
Em minha opinião, uma cosmovisão adequada
à constituição humana de hoje deve ser um espiritualismo
científico. Assim, deve basear-se na compreensão, na
pesquisa, e na adoção de hipóteses de trabalho,
e não na crença. Por outro lado, deve preservar irrestritamente
a liberdade individual, a individualidade, a consciência e a
auto-consciência, encarar os adultos como responsáveis,
ter respeito e compaixão pela natureza e pelo ser humano, tudo
isso baseado na compreensão do que são este último
e o universo e não em dogmas moralistas. Deve também
apresentar um edifício teórico coerente e abrangente
(por exemplo, levando à compreensão de antigas tradições
religiosas e míticas, bem como de fatos históricos).
Esse edifício teórico, a sua cosmovisão, deve
levar a realizações práticas que são a
aplicação dos conceitos a toda a vida humana, de modo
que o dia-a-dia de cada pessoa possa ser o mais possível coerente
com sua cosmovisão.
Conheço um único espiritualismo científico que
preenche esses requisitos e todos os citados no item 11: é
a Antroposofia,
introduzida por Rudolf Steiner
durante o primeiro quarto do século XX. Justamente por encaixar-se
na atitude científica que descrevi no item 3, ela foi denominada
por Steiner e é muitas vezes chamada de "Ciência
Espiritual", mas eu prefiro minha denominação de
"espiritualismo científico", para não confundir
com o que se entende por ciência hoje em dia, e que não
tem sentido ser "espiritual", pois é inerentemente
materialista. É interessante notar que Steiner teve uma formação
tecnológica, na Escola Politécnica de Viena, e fez um
doutorado em filosofia. Sua obra fundamental, evolução
de sua tese de doutorado, A Filosofia da Liberdade (segundo
ele próprio, aquilo que iria permanecer da Antroposofia no
futuro distante), uma profunda análise da cognição,
mostra como ele é capaz de ter um raciocínio claro,
adequado ao nosso tempo, e como é capaz de expressar conceitos
visando o intelecto dos leitores [STE].
Seus 28 livros, e as centenas de volumes publicados com mais de 6.000
de suas palestras, são de uma abrangência e profundidade
inigualáveis. Aprofundando-se no estudo de suas obras, tem-se
realmente a impressão de que ele foi o último sábio.
As aplicações práticas da Antroposofia incluem
a ainda revolucionária e bem sucedida Pedagogia Waldorf
(empregada em mais de 1000 escolas no mundo inteiro, inclusive no Brasil),
a Medicina e Terapias Antroposóficas,
a Agricultura Biodinâmica
(em 1970 o então presidente da associação americana
de agricultores orgânicos disse-me que considerava-a como o
"máximo" em matéria de agricultura orgânica),
uma organização social (denominada Trimembração
do Organismo Social), artes novas (incluindo a Euritmia),
etc.
Seria muito interessante o leitor dirigir-se a alguma faculdade de
educação em sua cidade e fazer a pergunta: "Vocês
abordam a Pedagogia Waldorf como parte do currículo em algum
de seus cursos?" Afinal, ela existe desde 1919, há dezenas
de livros publicados sobre ela, inclusive um excelente, no vernáculo
[LAN], há revistas internacionais
especializadas nela, ela está presente em todos os continentes,
em particular em quase todos os países da AméricadoSul,
e seus resultados são excelentes (ver um artigo com estatísticas feitas com formados
da Escola Waldorf Rudolf Steiner de São Paulo e que desmistifica
certos mitos negativos sobre essa pedagogia). É interessante
notar que a educação continuada foi adotada no Brasil
por uma recomendação da UNESCO, que se baseou no sucesso
mundial da Pedagogia Waldorf: as escolas Waldorf não usam e
nunca usaram notas e não há repetições
de séries, desde o início do ensino fundamental até
o fim do ensino médio. A resposta que será encontrada
invariavelmente à pergunta proposta no início deste
parágrafo é simplesmente "não": essa
pedagogia não é abordada nas faculdades de educação
e, se o for, é por iniciativa pessoal de algum professor que
já teve contato com ela. Ora, faculdades de educação
deveriam abordar todos os métodos de ensino, ainda mais um
que é um dos mais estabelecidos e difundidos e que é
baseado em uma extensa conceituação (por exemplo, do
desenvolvimento global, isto é, físico, emocional e
intelectual da criança e do jovem) e prática. Em minha
opinião, as faculdades de educação ignoram a
Pedagogia Waldorf por uma razão muito simples: ela é
baseada em uma cosmovisão espiritualista, a Antroposofia. Além
disso, visite-se uma escola Waldorf para sentir a atmosfera de intenso
amor pelas crianças e jovens; ter amor pelos alunos é
justamente o que não se ensina nas faculdades de educação.
O preconceito do materialismo-crença, prevalente em todos os
meios acadêmicos, contra qualquer espiritualismo, impede que
os estudantes tomem conhecimento dessa realidade educacional.
O edifício conceitual introduzido por Steiner é de uma
abrangência excepcional, é coerente, e leva à
compreensão de vários fenômenos, como por exemplo
o sono, o sonho, a vida e a morte (conjeturo que, se não sair
do paradigma materialista, a ciência jamais irá compreender
profundamente esses quatro fenômenos). Por exemplo, ele explica
por que os sonhos se apresentam em imagens e a causa de elas não
seguirem, em geral, a lógica do mundo físico. Em sua
conceituação, passa-se a compreender o que denominei
no item 5 de "individualidade superior". Baseado nela, ele
apresenta um conceito totalmente novo de reencarnação,
o que não faz obviamente nenhum sentido do ponto de vista materialista,
mas que pode ser tomado como uma consequência lógica
de haver um sentido para a vida humana: o desenvolvimento da "individualidade
superior", feito em vidas sebsequentes - sem essa possibilidade,
não se teria chance de compensar os erros feitos durante uma
vida. A propósito, sem uma noção sobre reencarnação
é impossível compreender o budismo (um materialista
diria que não há nada a compreender nele...). Steiner
conceitua de maneira original a questão do bem e do mal, e
muitas outras questões humanas e sociais. Como o próprio
nome o diz, a Antroposofia parte do conhecimento do ser humano, sendo
portanto humanista por natureza.
Uma das características mais fascinantes da Antroposofia é
a visão que ela dá sobre o desenvolvimento pré-histórico
e histórico do ser humano, passando-se a compreender figuras
absolutamente incompreensíveis do ponto de vista materialista,
como Zaratrustra, Buda, Moisés, Elias, Platão, Cristo,
etc. Os mitos dos vários povos e as imagens bíblicas
deixam de ser "historinhas", como o materialismo deve considerá-las.
Para quem procura compreensão, ela dá uma imensa satisfação
em se ver que é possível entender, por exemplo, muitas
imagens da Gênese e do Velho Testamento, a grande contribuição
do antigo povo hebreu para a humanidade, os desenvolvimentos que levaram
ao aparecimento do Cristo, bem como resolver muitas das aparentes
contradições dos Evangelhos. Por exemplo, por que os
Evangelhos de Marcos e João começam apenas no batismo
do Jordão, ao contrário dos outros dois, que começam
com o nascimento de Jesus? Por que os Evangelhos de Mateus e Lucas
são totalmente diferentes até esse batismo? Por que
o de João é tão diferente dos outros três,
os sinópticos? O que significa aquilo que deveria ser o aspecto
central do Cristianismo, denominado de "ressurreição"
do Cristo? Como compreender as mensagens do Apocalipse? Por que o
cristianismo tornou-se durante muito tempo algo tão importante
para a humanidade ocidental?
Segundo Steiner, a missão do ser humano na Terra é o
desenvolvimento do amor altruísta. Como eu já mencionei
no item 4, esse amor não faz sentido para um materialismo coerente.
Um ato de amor altruísta só pode ser feito em liberdade,
e esta requer consciência. Para isso, é necessário
adquirir conhecimento, mas ele não pode ser encarado como a
meta do desenvolvimento humano: de fato, é com conhecimento
que se fazem, por exemplo, bombas para destruir seres humanos. Segundo
Steiner, para cada passo dado na aquisição de conhecimento,
principalmente do mundo não-físico, devem ser dados
três passos no desenvolvimento moral ("aperfeiçoamento
[do] caráter rumo ao bem") [STE
b, p. 48]. Só que, para ele, a moral é uma consequência
do conhecimento da constituição humana e da evolução
da humanidade, e não uma questão de moralismo ou de
dogmatismo. Nessa obra citada, Steiner dá exercícios
meditativos no sentido de se desenvolverem órgãos de
percepção supra-sensorial. A propósito, ele afirmou
uma vez que não se consegue fazer alguma ação
física em completa liberdade. Tomando-se o exemplo que dei
no item 5, da pessoa que está numa esquina e pode escolher
em liberdade um entre dois caminhos, é um fato que, provavelmente,
ela não chegou àquele lugar por ações
totalmente conscientes e em liberdade; portanto, há uma restrição
à liberdade devido ao histórico das circunstâncias
que fazem uma pessoa encontrar-se numa certa situação
em um dado instante. No entanto, ao praticar uma meditação
antroposófica, que usa um pensamento ativo (ver meu ensaio a respeito),
uma pessoa está exercendo uma liberdade total: não há
nada que a impele a essa prática, e nem a escolha do conteúdo
mental da meditação, se este é escolhido adequadamente.
A Antroposofia mostrou que se pode lidar com o espiritual com um enfoque
espiritualista científico, sem misticismo e sem proselitismo.
É uma lástima que o medo dos cientistas e dos materialistas,
de deixarem de exercer uma atitude científica, e a má
experiência com religiões e misticismos, força-os
a terem um preconceito contra ela, como exemplifiquei no caso concreto
da Pedagogia Waldorf não ser abordada nas faculdades de educação.
É devido ao conhecimento que tenho da Antroposofia que pude
formular os conceitos espiritualistas científicos expressos
neste e em outros artigos. Espero que eles incentivem os materialistas
científicos a terem coragem e suficiente falta de preconceito
para estudarem a Antroposofia, por exemplo começando com o
livro do Dr. Rudolf Lanz, Noções Básicas de Antroposofia
(que está na íntegra na Internet) e meu artigo "Uma introdução antroposófica à constituição humana",
mas não deixando depois de estudarem as obras básicas
de Steiner (estou à disposição para indicar algumas
obras segundo o interesse especial e conhecimento de cada interessado),
a fim de constatarem que existem outras cosmovisões possíveis,
muito mais abrangentes e humanas do que o materialismo ou o espiritualismo-crença,
especialmente o das religiões, e que não exigem a abdicação
de uma atitude científica como a exposta no item 3. Pelo contrário,
a Antroposofia a incentiva.
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Agradeço a Sonia Setzer pela discussão
de vários tópicos e revisão deste artigo, e a Anderson
Paulino pela menção da frase de Sócrates em 3.2.