Uma nova pesquisa revelou
que a agricultura chegou até a Europa em meio a uma onda de
imigração do Oriente Médio durante o período
neolítico. Os recém-chegados prevaleceram sobre os locais
por causa de sua cultura sofisticada e domínio da agricultura
e seu alimento milagroso, o leite

Entre caminhões de entulho e escavadoras,
a arqueóloga Birgit Srock está desenhando o contorno
do buraco de poste de 7.200 anos de idade. Uma fábrica de misturar
concreto é visível ao horizonte. Ela está aqui
porque, durante a construção de uma ferrovia de alta
velocidade entre as cidades alemãs de Nuremberg e Berlim, os
operários encontraram um grande assentamento do neolítico
na região da Francônia do Norte no norte da Bavária.
Os restos de mais de 40 casas foram
escavados, assim como esqueletos, uma roda de fiar, vasilhames de
argila, dentes de vaca e peneiras quebradas para a produção
de queijo – um típico assentamento da chamada cultura
da cerâmica linear (chamada assim por causa dos padrões
de sua cerâmica).
Esta antiga cultura nos deu a bênção
do pão. Por volta de 5.300 a.C., todo mundo na Europa Central
estava de repente cultivando plantas e cuidando de rebanhos. Os membros
da cultura da cerâmica linear guardavam as vacas dentro de cercados
de madeira, usavam pedras de amolar e cultivavam grãos. Em
menos de 300 anos, o estilo de vida sedentário se espalhou
pela bacia de Paris.
Os motivos por trás da rápida
mudança foram um mistério por muito tempo. Foi uma ideia
que se espalhou por toda a Europa Central na época, ou um povo
inteiro?
Cooperação pacífica
ou invasão?
Muitos acadêmicos
acreditam que esta última hipótese é inconcebível.
A agricultura foi inventada no Oriente Médio, mas muitos pesquisadores
acharam difícil acreditar que as pessoas daquela parte do mundo
teriam embarcado numa marcha interminável através do
Bósforo em direção ao norte.
Jens Lüning, arqueólogo
alemão especializado no período pré-histórico,
foi influente e estabeleceu o saber convencional sobre os acontecimentos,
a saber que um pequeno grupo de imigrantes induziu os habitantes locais
da Europa Central a semear e produzir leite com “zelo missionário”.
O novo conhecimento foi logo transmitido para outros grupos. Esse
processo continuou num ritmo rápido, num espírito de
“cooperação pacífica”, de acordo
com Lüning.
Mas agora há dúvidas
quanto a essa explicação. Novas escavações
na Turquia, assim como análises genéticas de animais
domésticos e esqueletos da Idade da Pedra, pintam um quadro
totalmente diferente:
-
Por volta de 7000 a.C., começou uma
migração em massa de fazendeiros do Oriente Médio
para a Europa.
-
Estes antigos fazendeiros trouxeram consigo
gado domesticado e porcos.
-
Não houve cruzamento entre os invasores
e a população original.
Mutação pelo leite
Os novos moradores também
tinham um tipo de alimento milagroso à sua disposição.
Eles produziam leite fresco que, como resultado de uma mutação
genética, logo puderam beber em grande quantidade. O resultado
foi que a população de fazendeiros cresceu e cresceu.
Esses insights surpreendentes vieram
por parte dos biólogos e químicos. Numa série
de artigos em revistas especializadas como a “Nature”
e “BMC Evolutionary Biology”, eles viraram muitas visões
existentes de cabeça para baixo ao longo dos últimos
três anos.
O grupo mais importante está
trabalhando no projeto “Leche” (nome inspirado pela palavra
espanhola para leite), uma associação de 13 institutos
de pesquisa de vários países da União Europeia.
O objetivo do projeto é examinar geneticamente a origem da
manteiga, leite e queijo.
Uma circunstância incomum tornou
essa pesquisa possível antes de mais nada. O homo sapiens era
originalmente incapaz de digerir leite puro. Geralmente, o corpo humano
só produz uma enzina capaz de quebrar a lactose no intestino
delgado durante os primeiros anos de vida. De fato, a maioria dos
adultos na Ásia e na África reagem ao leite de vaca
com náusea, flatulência e diarreia.
Mas a situação é
diferente na Europa, onde muitas pessoas têm uma diminuta modificação
do cromossomo 2 que permite a elas digerirem lactose durante toda
sua vida sem ter nenhum problema intestinal. A porcentagem de pessoas
com essa modificação é mais alta entre os britânicos
e escandinavos.
Há muito se sabe que essas
diferenças estão baseadas nas origens primeiras dos
europeus. Mas onde vivia o primeiro ser humano que bebia leite? Quem
foi o primeiro ser humano a beber o leite de vaca sem sofrer as consequências?
Grupos não se misturaram
Numa tentativa de solucionar o mistério,
biólogos moleculares serraram e analisaram incontáveis
ossos do período neolítico. A mudança aconteceu
no ano passado, quando cientistas descobriram que os primeiros bebedores
de leite viveram no território da atual Áustria, Hungria
e Eslováquia.
Mas este também era o núcleo
onde a cultura da cerâmica linear estava localizada. “A
característica de tolerância à lactose logo se
estabeleceu na população”, explica Joachim Burger,
antropólogo da Universidade de Mainz no sudoeste da Alemanha
que é membro da equipe Leche.
Coxas humanas supergeladas estão
armazenadas no laboratório de Burger, onde assistentes usando
máscaras serram e abrem crânios. Outros examinam pedaços
de material genético da Idade da Pedra sob uma luz azul.
O grupo terá uma reunião
de trabalho em Uppsala, Suécia, em novembro. Mas mesmo nesse
estágio já está claro que grandes números
de pessoas do Oriente Médio foram até a Europa Central.
Também há sinais de
conflito. Os invasores eram diferentes dos habitantes da Era do Gelo
do continente “por meio de linhas genéticas completamente
diferentes”, explica Burger. Em outras palavras, os dois grupos
não se misturaram.
Parte 2: Tensão entre locais e intrusos
Isto não
é exatamente uma surpresa. Os antigos caçadores-coletores
do continente já estavam há muito tempo acostumados
a caçar e pescar. Seus ancestrais haviam entrado na Europa
há 46 mil anos – cedo o suficiente para terem encontrado
os homens de Neanderthal.
Os primeiros fazendeiros da Europa Central eram sofisticados em comparação
com esses filhos da natureza. Os fazendeiros usavam roupas diferentes,
rezavam para outros ídolos e falavam uma língua diferente.
Foram estas diferenças que
provavelmente levaram às tensões. Pesquisadores descobriram
que incendiários colocaram fogo nos vilarejos da cultura da
cerâmica linear. Logo os fazendeiros construíram cercas
altas para proteger seus vilarejos. Seu avanço foi bloqueado
por um longo tempo através do rio Reno, entretanto.
Há sinais de que a troca e
o comércio existiam, mas os dois grupos não se misturavam
sexualmente. Burger suspeita que houvesse uma “proibição
rígida quanto ao casamento entre os grupos.”
Os fazendeiros até protegiam
seus rebanhos de influências externas, determinados a evitar
que o boi selvagem conhecido como bisão cruzasse com suas vacas
do Oriente Médio. Eles temiam que esses híbridos introduzissem
um novo elemento selvagem nas raças domesticadas.
Suas precauções eram
totalmente compreensíveis. A ideia revolucionária de
que o homem podia subjugar as plantas e animais estava intimamente
relacionada com esforços enormes, paciência e engenhosidade.
O processo levou milhares de anos.
Mantendo os animais sob controle
O começou pode ser agora relativamente
bem delineado. Cerca de 12 mil anos atrás, a área entre
as Montanhas Zagros no atual Irã, Palestina
e Turquia foi transformada num enorme campo de experimentação.
Os primeiros fazendeiros aprenderam
a cultivar o trigo selvagem e o trigo do tipo “einkorn”.
Eles então passaram a domesticar animais. Cabras haviam sido
domesticadas com sucesso no Irã por volta de 9 mil a.C.. Ovelhas
e porcos eram domesticados no sul de Anatólia.
Enormes agrupamentos logo se espalharam
pela região conhecida como Crescente Fértil. Çatalhöyük,
conhecida como “a primeira metrópole do homem”,
tinha cerca de 5 mil habitantes, que viviam em cabanas de lama muito
juntas umas das outras. Eles veneravam uma obesa deusa mãe,
retratada em estátuas como uma figura sentada num trono decorado
com cabeças de animais carnívoros.
Um dos desafios mais difíceis
era criar e domesticar o rebanho selvagem do Oriente Médio.
Os espécimes machos pesavam até uma tonelada e tinham
chifres curvos. As pessoas eventualmente juntaram a coragem para se
aproximar dos animais no Vale do Eufrates central.
Elas encontraram formas diferentes de controlar o gado. Uma escultura
do neolítico mostra um boi com um buraco em seu septo nasal.
Remover os testículos também
foi um método rapidamente reconhecido como uma forma de melhorar
o temperamento dos animais. Uma vez que o gado havia sido castrado,
eles podiam finalmente ser amarrados.
Os inteligentes fazendeiros perceberam
que se dessem bezerros de outras mães para as vagas, suas tetas
ficavam sempre cheias de leite.
O gosto pelo leite
É estranho que os fazendeiros
mesopotâmios não tocassem o leite fresco. Há algumas
semanas, Joachim Burger voltou da Turquia com um saco cheio de ossos
neolíticos de novos cemitérios descobertos onde os antigos
fazendeiros foram enterrados.
Quando os ossos foram analisados,
não houve sinais de tolerância à lactose. “Se
essas pessoas bebessem leite, elas passariam mal”, diz Burger.
Isso significa que primeiro os fazendeiros só consumiam produtos
fermentados do leite como kefir, iogurte e queijo, que contém
muito pouca lactose.
Mais surpreendente ainda, como mostram
as escavações recentes na Anatólia, é
o fato de que os fazendeiros antigos não tenham deixado sua
região central por quase 2 mil anos. Eles haviam montado o
“pacote cultura do neolítico” completo, desde a
pedra de amolar até as sementes, “sem avançar
em outras áreas”, diz o arqueólogo Mehmet Özdogan.
As áreas costeiras foram evitadas
por muito tempo. As pessoas que lá viviam eram provavelmente
pescadores que se defendiam com arpões contra o novo modo de
vida.
Assentados renegados
O cruzamento
do Bósforo só ocorreu em algum momento entre 7000 e
6.500 a.C.. Os fazendeiros encontraram pouca resistência por
parte das culturas de caçadores-coletores, cujos assentamentos
costeiros haviam sido inundados por enchente devastadoras na época.
Glaciares descongelaram e detonaram um aumento de mais de 100 metros
no nível do mar.
Entretanto, o avanço pelos
Bálcãs não foi um triunfo. Os assentamentos dos
colonos lá pareciam pequenos e pobres. No 47º paralelo
norte, próximo ao Lago Balaton na atual Hungria, o avanço
foi interrompido por 500 anos.
A cultura da cerâmica linear,
que foi a primeira mudança para a marge norte do Lago Balaton,
deu nova vida ao movimento. Lüning fala sobre assentados “renegados”
que criara um “novo estilo de vida” e um “projeto
de reforma” do outro lado do lago.
Com determinação militar,
os pioneiros que avançavam constantemente estabeleceram novos
assentamentos. Os vilarejos com frequência consistiam de três
a seis casas longas sem janelas, alinhadas ao noroeste, próximas
aos cercados de rebanho e poços construídos com maestria.
Suas ferramentas, picaretas e tigelas (que eram basicamente vasos
hemisféricos) eram quase idênticos em toda a Europa Central,
desde a Ucrânia até o Reno.
Parte 3: Migração e assassinato
em massa
Os assentados,
carregando suas foices, continuaram indo cada vez mais para o norte,
bem para dentro do território dos povos mais primitivos. Os
recém-chegados eram diligentes e acostumados a trabalhar duro
nos campos. Estátuas de barro mostram que os homens já
usavam calças e se barbeavam. As mulheres tingiam o cabelo
de vermelho e o decoravam com conchas de caramujo. Ambos os sexos
usavam boinas, e os homens também usavam chapéus triangulares.
Em comparação, os habitantes
mais primitivos que existiam no continente usavam peles de animais
e viviam em cabanas frugais. Eles viram os recém-chegados com
espanto uma vez que estes desmataram o local onde caçavam,
cultivavam o solo e plantavam sementes. Isso aparentemente os irritou
e os motivou a resistir aos invasores.
Na Bíblia, Caim, o fazendeiro,
mata Abel, o pastor. Na Europa da Era Neolítica, as condições
deviam ser tão violentas quanto. Uma das descobertas mais repulsivas
é uma vala comum que foi apelidada de “Fosso da Morte
Talheim”, na cidade alemã de mesmo nome. O fosso foi
preenchido com os restos de 34 corpos. Os membros de um clã
inteiro foram aparentemente surpreendidos enquanto dormiam e apanharam
até a morte com tacapes e machados. Até agora, os arqueólogos
não foram capazes de descobrir se os recém-chegados
mataram os habitantes existentes, ou vice-versa.
Bebendo leite aos baldes
Esta claro, entretanto, que os fazendeiros
de leite ganharam no final. Durante sua migração, eles
encontraram pastos cada vez mais verdes, um paraíso para suas
vacas. Um benefício a mais de migrar par ao norte era que o
leite fresco durava mais por causa do clima mais frio.
Isso provavelmente explica porque as pessoas logo começaram
a beber a abundante nova bebida aos baldes. Alguns tinham mutações
genéticas que os permitiam beber leite sem passar mal. Eles
foram os verdadeiros progenitores do movimento.
Como resultado da “evolução
acelerada”, diz Burger, a tolerância à lactose
foi selecionada numa larga escala dentro da população
no espaço de cerca de 100 gerações. A Europa
se tornou a terra do eterno recém-nascido uma vez que as pessoas
passaram a beber leite durante a vida inteira.
O novo alimento era especialmente
benéfico para as crianças. Na Era Neolítica,
muitas crianças pequenas morriam depois de serem desmamadas
no quarto ano de vida. “Consumindo leite saudável, isso
pode ser bastante reduzido”, especula o biólogo Fritz
Höffeler. Tudo isso levou a um crescimento populacional e, como
resultado, à uma expansão geográfica ainda maior.
“Revolução branca”
Isso explica por que os inventores
da foice e do arado conquistaram a Europa tão rápido,
levando ao fim dos antigos caçadores-coletores?
Imagine um vilarejo da cultura da cerâmica linear no meio do
inverno. Enquanto a fumaça sobe do topo de uma cabana de madeira,
a mesa do lado de dentro está cercada de crianças de
bochechas vermelhas, bebendo leite quente com mel, que sua mãe
acabou de preparar. É uma imagem que pode ajudar a explicar
porque as pessoas adotaram um estilo de vida sedentário.
Burger, entretanto, está convencido
de que o leite desempenhou um papel importantíssimo na história,
assim como a pólvora fez mais tarde. “Houve uma revolução
branca”, diz ele.
Traduzido do alemão por Christopher Sultan.