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Matthias Schulz

>   Como os povos do Oriente Médio que bebiam leite conquistaram a Europa

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Matthias Schulz
>   Como os povos do Oriente Médio que bebiam leite conquistaram a Europa

 

Matthias Schulz
DER SPIEGEL


Uma nova pesquisa revelou que a agricultura chegou até a Europa em meio a uma onda de imigração do Oriente Médio durante o período neolítico. Os recém-chegados prevaleceram sobre os locais por causa de sua cultura sofisticada e domínio da agricultura e seu alimento milagroso, o leite


Entre caminhões de entulho e escavadoras, a arqueóloga Birgit Srock está desenhando o contorno do buraco de poste de 7.200 anos de idade. Uma fábrica de misturar concreto é visível ao horizonte. Ela está aqui porque, durante a construção de uma ferrovia de alta velocidade entre as cidades alemãs de Nuremberg e Berlim, os operários encontraram um grande assentamento do neolítico na região da Francônia do Norte no norte da Bavária.

Os restos de mais de 40 casas foram escavados, assim como esqueletos, uma roda de fiar, vasilhames de argila, dentes de vaca e peneiras quebradas para a produção de queijo – um típico assentamento da chamada cultura da cerâmica linear (chamada assim por causa dos padrões de sua cerâmica).

Esta antiga cultura nos deu a bênção do pão. Por volta de 5.300 a.C., todo mundo na Europa Central estava de repente cultivando plantas e cuidando de rebanhos. Os membros da cultura da cerâmica linear guardavam as vacas dentro de cercados de madeira, usavam pedras de amolar e cultivavam grãos. Em menos de 300 anos, o estilo de vida sedentário se espalhou pela bacia de Paris.

Os motivos por trás da rápida mudança foram um mistério por muito tempo. Foi uma ideia que se espalhou por toda a Europa Central na época, ou um povo inteiro?


Cooperação pacífica ou invasão?

Muitos acadêmicos acreditam que esta última hipótese é inconcebível. A agricultura foi inventada no Oriente Médio, mas muitos pesquisadores acharam difícil acreditar que as pessoas daquela parte do mundo teriam embarcado numa marcha interminável através do Bósforo em direção ao norte.

Jens Lüning, arqueólogo alemão especializado no período pré-histórico, foi influente e estabeleceu o saber convencional sobre os acontecimentos, a saber que um pequeno grupo de imigrantes induziu os habitantes locais da Europa Central a semear e produzir leite com “zelo missionário”. O novo conhecimento foi logo transmitido para outros grupos. Esse processo continuou num ritmo rápido, num espírito de “cooperação pacífica”, de acordo com Lüning.

Mas agora há dúvidas quanto a essa explicação. Novas escavações na Turquia, assim como análises genéticas de animais domésticos e esqueletos da Idade da Pedra, pintam um quadro totalmente diferente:

  • Por volta de 7000 a.C., começou uma migração em massa de fazendeiros do Oriente Médio para a Europa.
  • Estes antigos fazendeiros trouxeram consigo gado domesticado e porcos.
  • Não houve cruzamento entre os invasores e a população original.



Mutação pelo leite

Os novos moradores também tinham um tipo de alimento milagroso à sua disposição. Eles produziam leite fresco que, como resultado de uma mutação genética, logo puderam beber em grande quantidade. O resultado foi que a população de fazendeiros cresceu e cresceu.

Esses insights surpreendentes vieram por parte dos biólogos e químicos. Numa série de artigos em revistas especializadas como a “Nature” e “BMC Evolutionary Biology”, eles viraram muitas visões existentes de cabeça para baixo ao longo dos últimos três anos.

O grupo mais importante está trabalhando no projeto “Leche” (nome inspirado pela palavra espanhola para leite), uma associação de 13 institutos de pesquisa de vários países da União Europeia. O objetivo do projeto é examinar geneticamente a origem da manteiga, leite e queijo.

Uma circunstância incomum tornou essa pesquisa possível antes de mais nada. O homo sapiens era originalmente incapaz de digerir leite puro. Geralmente, o corpo humano só produz uma enzina capaz de quebrar a lactose no intestino delgado durante os primeiros anos de vida. De fato, a maioria dos adultos na Ásia e na África reagem ao leite de vaca com náusea, flatulência e diarreia.

Mas a situação é diferente na Europa, onde muitas pessoas têm uma diminuta modificação do cromossomo 2 que permite a elas digerirem lactose durante toda sua vida sem ter nenhum problema intestinal. A porcentagem de pessoas com essa modificação é mais alta entre os britânicos e escandinavos.

Há muito se sabe que essas diferenças estão baseadas nas origens primeiras dos europeus. Mas onde vivia o primeiro ser humano que bebia leite? Quem foi o primeiro ser humano a beber o leite de vaca sem sofrer as consequências?


Grupos não se misturaram

Numa tentativa de solucionar o mistério, biólogos moleculares serraram e analisaram incontáveis ossos do período neolítico. A mudança aconteceu no ano passado, quando cientistas descobriram que os primeiros bebedores de leite viveram no território da atual Áustria, Hungria e Eslováquia.

Mas este também era o núcleo onde a cultura da cerâmica linear estava localizada. “A característica de tolerância à lactose logo se estabeleceu na população”, explica Joachim Burger, antropólogo da Universidade de Mainz no sudoeste da Alemanha que é membro da equipe Leche.

Coxas humanas supergeladas estão armazenadas no laboratório de Burger, onde assistentes usando máscaras serram e abrem crânios. Outros examinam pedaços de material genético da Idade da Pedra sob uma luz azul.

O grupo terá uma reunião de trabalho em Uppsala, Suécia, em novembro. Mas mesmo nesse estágio já está claro que grandes números de pessoas do Oriente Médio foram até a Europa Central.

Também há sinais de conflito. Os invasores eram diferentes dos habitantes da Era do Gelo do continente “por meio de linhas genéticas completamente diferentes”, explica Burger. Em outras palavras, os dois grupos não se misturaram.


Parte 2: Tensão entre locais e intrusos

Isto não é exatamente uma surpresa. Os antigos caçadores-coletores do continente já estavam há muito tempo acostumados a caçar e pescar. Seus ancestrais haviam entrado na Europa há 46 mil anos – cedo o suficiente para terem encontrado os homens de Neanderthal.

Os primeiros fazendeiros da Europa Central eram sofisticados em comparação com esses filhos da natureza. Os fazendeiros usavam roupas diferentes, rezavam para outros ídolos e falavam uma língua diferente.

Foram estas diferenças que provavelmente levaram às tensões. Pesquisadores descobriram que incendiários colocaram fogo nos vilarejos da cultura da cerâmica linear. Logo os fazendeiros construíram cercas altas para proteger seus vilarejos. Seu avanço foi bloqueado por um longo tempo através do rio Reno, entretanto.

Há sinais de que a troca e o comércio existiam, mas os dois grupos não se misturavam sexualmente. Burger suspeita que houvesse uma “proibição rígida quanto ao casamento entre os grupos.”

Os fazendeiros até protegiam seus rebanhos de influências externas, determinados a evitar que o boi selvagem conhecido como bisão cruzasse com suas vacas do Oriente Médio. Eles temiam que esses híbridos introduzissem um novo elemento selvagem nas raças domesticadas.

Suas precauções eram totalmente compreensíveis. A ideia revolucionária de que o homem podia subjugar as plantas e animais estava intimamente relacionada com esforços enormes, paciência e engenhosidade. O processo levou milhares de anos.


Mantendo os animais sob controle

O começou pode ser agora relativamente bem delineado. Cerca de 12 mil anos atrás, a área entre as Montanhas Zagros no atual Irã, Palestina e Turquia foi transformada num enorme campo de experimentação.

Os primeiros fazendeiros aprenderam a cultivar o trigo selvagem e o trigo do tipo “einkorn”. Eles então passaram a domesticar animais. Cabras haviam sido domesticadas com sucesso no Irã por volta de 9 mil a.C.. Ovelhas e porcos eram domesticados no sul de Anatólia.

Enormes agrupamentos logo se espalharam pela região conhecida como Crescente Fértil. Çatalhöyük, conhecida como “a primeira metrópole do homem”, tinha cerca de 5 mil habitantes, que viviam em cabanas de lama muito juntas umas das outras. Eles veneravam uma obesa deusa mãe, retratada em estátuas como uma figura sentada num trono decorado com cabeças de animais carnívoros.

Um dos desafios mais difíceis era criar e domesticar o rebanho selvagem do Oriente Médio. Os espécimes machos pesavam até uma tonelada e tinham chifres curvos. As pessoas eventualmente juntaram a coragem para se aproximar dos animais no Vale do Eufrates central.
Elas encontraram formas diferentes de controlar o gado. Uma escultura do neolítico mostra um boi com um buraco em seu septo nasal.

Remover os testículos também foi um método rapidamente reconhecido como uma forma de melhorar o temperamento dos animais. Uma vez que o gado havia sido castrado, eles podiam finalmente ser amarrados.

Os inteligentes fazendeiros perceberam que se dessem bezerros de outras mães para as vagas, suas tetas ficavam sempre cheias de leite.


O gosto pelo leite

É estranho que os fazendeiros mesopotâmios não tocassem o leite fresco. Há algumas semanas, Joachim Burger voltou da Turquia com um saco cheio de ossos neolíticos de novos cemitérios descobertos onde os antigos fazendeiros foram enterrados.

Quando os ossos foram analisados, não houve sinais de tolerância à lactose. “Se essas pessoas bebessem leite, elas passariam mal”, diz Burger. Isso significa que primeiro os fazendeiros só consumiam produtos fermentados do leite como kefir, iogurte e queijo, que contém muito pouca lactose.

Mais surpreendente ainda, como mostram as escavações recentes na Anatólia, é o fato de que os fazendeiros antigos não tenham deixado sua região central por quase 2 mil anos. Eles haviam montado o “pacote cultura do neolítico” completo, desde a pedra de amolar até as sementes, “sem avançar em outras áreas”, diz o arqueólogo Mehmet Özdogan.

As áreas costeiras foram evitadas por muito tempo. As pessoas que lá viviam eram provavelmente pescadores que se defendiam com arpões contra o novo modo de vida.


Assentados renegados

O cruzamento do Bósforo só ocorreu em algum momento entre 7000 e 6.500 a.C.. Os fazendeiros encontraram pouca resistência por parte das culturas de caçadores-coletores, cujos assentamentos costeiros haviam sido inundados por enchente devastadoras na época. Glaciares descongelaram e detonaram um aumento de mais de 100 metros no nível do mar.

Entretanto, o avanço pelos Bálcãs não foi um triunfo. Os assentamentos dos colonos lá pareciam pequenos e pobres. No 47º paralelo norte, próximo ao Lago Balaton na atual Hungria, o avanço foi interrompido por 500 anos.

A cultura da cerâmica linear, que foi a primeira mudança para a marge norte do Lago Balaton, deu nova vida ao movimento. Lüning fala sobre assentados “renegados” que criara um “novo estilo de vida” e um “projeto de reforma” do outro lado do lago.

Com determinação militar, os pioneiros que avançavam constantemente estabeleceram novos assentamentos. Os vilarejos com frequência consistiam de três a seis casas longas sem janelas, alinhadas ao noroeste, próximas aos cercados de rebanho e poços construídos com maestria. Suas ferramentas, picaretas e tigelas (que eram basicamente vasos hemisféricos) eram quase idênticos em toda a Europa Central, desde a Ucrânia até o Reno.


Parte 3: Migração e assassinato em massa

Os assentados, carregando suas foices, continuaram indo cada vez mais para o norte, bem para dentro do território dos povos mais primitivos. Os recém-chegados eram diligentes e acostumados a trabalhar duro nos campos. Estátuas de barro mostram que os homens já usavam calças e se barbeavam. As mulheres tingiam o cabelo de vermelho e o decoravam com conchas de caramujo. Ambos os sexos usavam boinas, e os homens também usavam chapéus triangulares.

Em comparação, os habitantes mais primitivos que existiam no continente usavam peles de animais e viviam em cabanas frugais. Eles viram os recém-chegados com espanto uma vez que estes desmataram o local onde caçavam, cultivavam o solo e plantavam sementes. Isso aparentemente os irritou e os motivou a resistir aos invasores.

Na Bíblia, Caim, o fazendeiro, mata Abel, o pastor. Na Europa da Era Neolítica, as condições deviam ser tão violentas quanto. Uma das descobertas mais repulsivas é uma vala comum que foi apelidada de “Fosso da Morte Talheim”, na cidade alemã de mesmo nome. O fosso foi preenchido com os restos de 34 corpos. Os membros de um clã inteiro foram aparentemente surpreendidos enquanto dormiam e apanharam até a morte com tacapes e machados. Até agora, os arqueólogos não foram capazes de descobrir se os recém-chegados mataram os habitantes existentes, ou vice-versa.


Bebendo leite aos baldes

Esta claro, entretanto, que os fazendeiros de leite ganharam no final. Durante sua migração, eles encontraram pastos cada vez mais verdes, um paraíso para suas vacas. Um benefício a mais de migrar par ao norte era que o leite fresco durava mais por causa do clima mais frio.
Isso provavelmente explica porque as pessoas logo começaram a beber a abundante nova bebida aos baldes. Alguns tinham mutações genéticas que os permitiam beber leite sem passar mal. Eles foram os verdadeiros progenitores do movimento.

Como resultado da “evolução acelerada”, diz Burger, a tolerância à lactose foi selecionada numa larga escala dentro da população no espaço de cerca de 100 gerações. A Europa se tornou a terra do eterno recém-nascido uma vez que as pessoas passaram a beber leite durante a vida inteira.

O novo alimento era especialmente benéfico para as crianças. Na Era Neolítica, muitas crianças pequenas morriam depois de serem desmamadas no quarto ano de vida. “Consumindo leite saudável, isso pode ser bastante reduzido”, especula o biólogo Fritz Höffeler. Tudo isso levou a um crescimento populacional e, como resultado, à uma expansão geográfica ainda maior.


“Revolução branca”

Isso explica por que os inventores da foice e do arado conquistaram a Europa tão rápido, levando ao fim dos antigos caçadores-coletores?

Imagine um vilarejo da cultura da cerâmica linear no meio do inverno. Enquanto a fumaça sobe do topo de uma cabana de madeira, a mesa do lado de dentro está cercada de crianças de bochechas vermelhas, bebendo leite quente com mel, que sua mãe acabou de preparar. É uma imagem que pode ajudar a explicar porque as pessoas adotaram um estilo de vida sedentário.

Burger, entretanto, está convencido de que o leite desempenhou um papel importantíssimo na história, assim como a pólvora fez mais tarde. “Houve uma revolução branca”, diz ele.

 

Traduzido do alemão por Christopher Sultan.

Tradução: Eloise De Vylder

 

Fonte: http://noticias.uol.com.br/midiaglobal/derspiegel/2010/10/18/como-os-povos-do-oriente-medio-que-bebiam-leite-conquistaram-a-europa.jhtm

 


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