Após a falência das religiões tradicionais, devido
ao (quase) fim da fé cega, a ciência passou a ocupar
o lugar deixado por elas, embora dentro da mesma mística. Antes,
só era verdade aquilo que fosse admitido pelas religiões;
depois, só é verdade o que é sancionado pela
ciência. E como a ciência, digamos ortodoxa, tem cometido
erros! Tantos quanto as próprias religiões que a antecederam
em pretensa autoridade sobre o que é ou não é
Verdade.
O período no qual as religiões são postas
em dúvida e a ciência se arvora em dona da Verdade é
o século XIX. No final daquele século, cientistas
afirmaram que os passageiros de uma locomotiva a vapor ou de um automóvel,
recém inventados, morreriam por hemorragia devido às
velocidades pretendidas: 30 a 60 Km/h. As coisas não mudaram
muito de lá para cá; naturalmente os erros são
de outro nível e natureza, mas continuam acontecendo. Há
décadas não existe mais ciência pela ciência,
a busca do conhecimento pelos benefícios que ele possa eventualmente
trazer. O mercantilismo ganancioso e avassalador dominou a ciência
ao ponto de ser "verdade" aquilo que melhor convém
a determinados interesses, sempre transitórios. Com isso a
verdade tornou-se relativa.
A Realidade não se restringe àquilo que nós humanos
queremos. A ciência é apenas o conhecimento organizado.
Isso é bom por um lado, mas por outro é pernicioso e
limitador, pois fragmenta essa mesma Realidade investigada. Passamos
a vê-la e compreendê-la como quem olha por buracos de
fechaduras.
Muitas vezes numa visão monocular e, por isso, limitada. Isso
explica porque teorias contrárias podem ser elaboradas a partir
de um mesmo material. Depende da interpretação que o
investigador dá ao que foi visto pelo 'buraco da fechadura'.
Mas, e a porta nunca se abre? As portas se abrem sim quando estamos
prontos para compreender o que está além delas. A ciência
é um meio e não um fim em si mesmo. É objetiva
e experimental, pondo à nossa disposição recursos
para compreendermos, mesmo que parcial, fragmentária e imperfeitamente,
a realidade que nos rodeia.
É intelectiva por natureza e pode sancionar ou não tudo
aquilo que está ao alcance do intelecto. A questão é
que nem toda a Realidade está contida no que é objetivo
e experimental. Existe muita coisa além, no campo subjetivo
e intuitivo e que também constituem verdades e realidades,
mesmo que apenas em parcelas condizentes com nossa capacidade de entendimento
ainda tão limitada.
Allan Kardec ao codificar, organizar, o Espiritismo, dando-lhe um
corpo teórico consistente, usou os melhores recursos científicos
de seu tempo. Lançou mão da metodologia positivista
de então para que esta viabilizasse, desse as necessárias
credenciais à nova doutrina no momento em que ela fosse levada
ao conhecimento público. Isso significa que Kardec lançou
mão da ciência para que esta sancionasse o novo conhecimento.
Entretanto, ele foi prudente o suficiente para não submeter
a evolução doutrinária espírita somente
aos critérios da ciência humana, limitadora e eivada
de conveniências. Condicionou a evolução do Espiritismo
ao bom senso e à lógica, que são variáveis
subjetivas. Se tivesse criado uma dependência absoluta a fatores
objetivos e experimentais, típicos da ciência convencional,
teria colocado o Espiritismo no campo dos interesses e conveniências
humanos. Portanto, a metodologia positivista usada por Kardec foi
um meio, um recurso, e não uma camisa de força que condicionasse
a doutrina que nascia.
Consequentemente, a Doutrina Espírita progride em função
de descobertas da ciência e sancionadas por esta e vai além
em vários campos onde apenas a lógica e o bom senso
subjetivos são possíveis. Claro que esta característica
abre inúmeras possibilidades de discordâncias e interpretações
diferentes, mas dá ao Espiritismo o seu dinamismo próprio,
só cerceado pelas limitações e imperfeições
do homem, origens do espírito sectário, do fanatismo,
do conservadorismo, do religiosismo piegas e de tantas outras mazelas
humanas que assolam o movimento espírita.
No futuro o conhecimento intelectivo se associará ao conhecimento
intuitivo, dando ao homem a possibilidade de alcançar o conhecimento
holístico, global, por inteiro, e não necessariamente
fragmentário como agora. Enquanto isso, ainda nos veremos divididos,
defendendo teses parciais, às vezes absurdas, provenientes
do que vemos através de buracos de fechaduras.