Eufrázia Cristina Menezes Santos -
Professora do Departamento de Ciências Sociais da Universidade
Federal de Sergipe. Doutora em Antropologia Social pela Universidade
de São Paulo, coordenadora do Grupo de Pesquisa Ritual,
Festa e Performance CNPq/UFS.
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“Não existe fealdade
física ou moral, não existem vícios nem
males que não tenham sido divinizados”
Durkheim
1.1 O personagem
Para iniciar, recupero, entre as minhas lembranças,
um quadro que tive a oportunidade de ver repetidas vezes em casas
de família, estabelecimentos comerciais e instituições
religiosas. Nele, retrata-se a figura de um negro idoso fumando cachimbo
num toco de árvore em meio a uma rica vegetação
e ostentando uma guia em volta do seu tronco nu, em contraste com
suas calças brancas de algodão. Ainda é possível
distinguir, na mesma cena, um casebre de sapé, o que leva o
observador a rememorar alguns aspectos comuns a certas zonas rurais.
Até hoje, o registro visual deste quadro, bem como o seu uso
social, podem ser encontrados em várias regiões brasileiras.
Ao observá-lo, ocorre-me a impressão de estar perante
algo familiar, pois seu conjunto sugere, de forma direta ou indireta,
uma associação com o período escravista. O personagem
retratado denomina-se “Pai Joaquim” e pertence ao universo
daqueles que ficaram conhecidos na tradição popular
e religiosa do Brasil como Pretos Velhos.
Na tradição popular, o quadro descrito
é uma das representações gráficas da imagem
folclorizada do negro brasileiro, assim como também o são
a baiana com seus colares coloridos e saia rodada, o negro capoeira
e seu berimbau ou o sambista negro de calça branca, camisa
listrada e pandeiro na mão. O Preto Velho, que não destoa
do conjunto das imagens folclorizadas do negro, tem um traço
específico:é uma imagem de natureza religiosa. Neste
trabalho, analisarei, sobretudo, sua condição de personagem
religioso, sem perder de vista as suas relações com
outras esferas da realidade.
O recorte teórico privilegia o processo de
criação religiosa, mais especificamente os aspectos
relativos à construção simbólica do Preto
Velho. Tenho como escopo evidenciar o conjunto de representações
sociais que participam de sua elaboração ou estão
subjacentes a ela. Preliminarmente, duas características sobressaem-se
na leitura de qualquer observador: sua cor preta e sua condição
de velho. Logo, não há como desconsiderar a particularidade
racial, étnica, ou a representação senil do personagem
no conjunto das análises que se seguem. Trata-se de uma representação
religiosa do negro escravo, elaborada por uma sociedade que conviveu
com a escravidão por mais de trezentos anos e que chegou ao
final do século XX admitindo timidamente os problemas raciais
nela existentes.
No caminho a percorrer, o folclore e a literatura
serão considerados como instâncias produtoras de estereótipos,
clichês e caricaturas que migraram para o campo religioso e
serviram de fundamento à versão religiosa do Preto Velho.
Proponho-me igualmente analisar o modo como elementos já dados
no catolicismo popular foram utilizados para delinear os seus atributos
enquanto representante de uma das categorias de entidade que tomam
parte na cosmologia umbandista.
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