Folheando as obras fundamentais do
espiritismo e os números da Revista Espírita,
encontramos em abundância trechos de mensagens e diálogos
com os espíritos. Neles estão contidos exemplos e ensinamentos
que fundamentam os princípios da doutrina. A sistematização
desse trabalho demandou de Allan Kardec um método e uma organização
próprios, percebidos apenas por quem o acompanhava nos bastidores.
Desde a sua fundação, há cerca de um ano, o museu
AKOL – Museu AllanKardec.Online — atraiu pesquisadores
para colaborar em um minucioso trabalho de pesquisa, tendo em mãos
documentos raros, ainda desconhecidos do movimento espírita,
incluindo manuscritos e correspondências, que nos oferecem acesso
a estes bastidores, por serem registros preservados e que dão
testemunho deste trabalho. Eles são originários dos
arquivos de Kardec, guardados durante décadas. Alguns foram
encontrados recentemente na Livraria Leymarie, em Paris, e trazidos
para o Brasil.
Ao iniciarmos o trabalho nessas fontes, pudemos observar diversos
exemplos de como as comunicações dos espíritos
eram anotadas, classificadas e trabalhadas por Kardec e como o texto
impresso era revisado antes da publicação. Sobre a preparação
dos textos para impressão, encontramos ricas informações
em uma dessas correspondências. Em uma carta, Kardec descreve
a seu amigo Bonnamy alguns dos cuidados que o autor deveria ter ao
elaborar os manuscritos a serem enviados para a tipografia e quais
os prejuízos de não os observar.
Artigo na Revista Espírita
- Destaques para o título (acrescentado por Kardec no topo
do manuscrito) e o M. X, cujo nome aparece no manuscrito
Convidamos você agora para uma
visita guiada por esses bastidores, em que os itens deste acervo –
cadernos de anotações, folhas manuscritas e impressos
– descrevem situações reais e, de forma ilustrada,
nos auxiliam a contar, de maneira fundamentada, e até mesmo
emocionante, um pouco da história do espiritismo.

Capa dos cadernos das sessões da SPEE
Como as comunicações
eram recebidas e documentadas
O aproveitamento das comunicações
com o mundo espiritual na composição dos textos era
essencial, uma vez que respaldava o método experimental adotado
por Kardec. Sua aplicação incluía coletar, selecionar,
classificar e analisar as inúmeras mensagens recebidas.
Semanalmente, os espíritos
se comunicavam com os encarnados em sessões fechadas, realizadas
às sextas-feiras, às 20 horas, na SPEE - Sociedade Parisiense
de Estudos Espíritas. As perguntas endereçadas a eles
e as respostas recebidas eram registradas, assim como as comunicações
espontâneas. Comunicações obtidas por médiuns
em outros centros também chegavam à Sociedade, por meio
de cartas. Todos estes registros eram utilizados como base para o
estudo das manifestações, sendo deles extraídos
os ensinamentos a serem organizados e divulgados.
Um caderno com anotações
das sessões da Sociedade Parisiense de Estudos Espíritas,
entre dezembro de 1860 e janeiro de 1861, apresenta as comunicações
dos espíritos em ordem crescente de data, e está totalmente
preenchido com a caligrafia de Kardec. Ao que tudo indica, ele contém
as transcrições das psicografias recebidas pelos médiuns.
Nos anos posteriores, folhas soltas
com as comunicações, nas caligrafias dos médiuns
e de Kardec, foram arquivadas em pastas, cada uma com um tema específico.
Mediunidade, educação, manifestações,
dissertações espíritas e notas diversas são
alguns exemplos de temas usados para classificação.
Há dúvidas se Kardec mantinha a transcrição
no caderno e os originais em pastas ou se ele mudou a forma de organização
ao longo do tempo.

Anotações à esquerda: Sra
Lescot. Dezembro 1860. Lido na Sociedade. Copiar para a Revista. A
mensagem foi realmente publicada na Revista Espírita de janeiro
de 1861 como: “Estudos espontâneos dos espíritos:
A garridice”. Na Revista Espírita, através do
trabalho de pesquisa, descobriu-se que o nome da médium Lescot
sempre aparece escrito como sra. Costel
As páginas manuscritas ilustram
o padrão instituído por Kardec para registrar e classificar
essas comunicações:
- Do lado esquerdo, há uma margem de cerca
de cinco centímetros.
- Uma linha horizontal divide os textos das comunicações
em uma mesma página.
- Dentro desta margem, no alto, são registradas
diversas informações, como: o local e a data em que
foi realizada a sessão, o nome do médium e se foi
uma comunicação lida na sessão.
- Em algumas, aparece a indicação da
publicação em que será veiculada. Por exemplo:
copiar para a Revista Espírita.
- Em algumas comunicações, na sequência,
consta uma classificação: B (bom), TB (Muito bom)
ou TTB (Muito, muito bom), aparentemente para a qualidade do conteúdo
dos ensinamentos.
- A margem também era utilizada por Kardec
para acréscimo de texto na comunicação original.
- No corpo da página, aparece no topo um título
para a comunicação.
- Nas comunicações assinadas, o nome
do espírito aparece ao final.
Uma comunicação revisada por Kardec
e publicada na Revista Espírita
O artigo “Regeneração
dos povos do Oriente” (1), da Revista
Espírita de novembro de 1868, contém a comunicação
de Clélie Duplantier, em 18 de setembro, que chegou em decorrência
de uma carta recebida de um correspondente da Síria sobre o
estado moral dos povos do Oriente e os meios de cooperarem em sua
regeneração, descrita na introdução do
artigo.
O manuscrito, com a caligrafia do
médium Desliens, traz também a caligrafia de Kardec,
indicando sua revisão, com alterações e inclusão
de um título. O texto também foi por ele selecionado
para publicação, e sua versão final apresenta
todas as alterações realizadas, além de outros
ajustes.
Sabemos que Kardec costumava omitir
nomes e focar mais no conteúdo do que nas palavras das mensagens
recebidas. Na transcrição dessa comunicação
para a Revista, observa-se que Kardec retira o nome do médium
e ainda altera o nome do sr. Constant para sr. X.
Preparação dos manuscritos e a
revisão das provas de impressão
A tecnologia utilizada para impressão
no século 19 impunha um maior envolvimento do autor para que
o texto final refletisse o que ele havia escrito.
Kardec elaborava um manuscrito com o texto final
a ser publicado, que deveria ser redigido de maneira legível
e correta, do contrário a correção de provas
poderia ser difícil e exigir um alto custo de retrabalho. Kardec
viveu essa experiência ao ajudar Bonnamy a elaborar os manuscritos
finais da obra La raison du spiritisme (A razão do
espiritismo, publicada em 1868), fato que ele relembrou em uma carta
de 13 de outubro de 1868.
Ao receber o manuscrito, o tipógrafo
preparava manualmente todas as páginas de impressão,
primeiro ordenando em linhas os caracteres móveis que formavam
cada palavra, inclusive os espaços entre elas, e em seguida
juntando as linhas até obter uma página, atento à
diagramação e à numeração de cada
uma.
Uma prova era, então, impressa
em um prelo, folha a folha, para ser revisada pelo autor, que deveria
conferir se a montagem feita pelo tipógrafo correspondia ao
texto original e indicar as devidas correções, podendo
também efetuar melhorias no texto, se necessário.
No exemplo do artigo “Os
pobres e os ricos”, da Revista Espírita de outubro
de 1861, a folha impressa foi enviada para ser revisada por Kardec
antes da publicação no periódico. Nela, ele inseriu
o título e assinalou alguns pontos a serem corrigidos, seguindo
os códigos para revisão de textos utilizados até
hoje.
Só após a revisão
das provas tipográficas o autor autorizava a impressão
de uma quantidade de exemplares para venda.
Acesso à informação
detalhada e segura
O século 21 está sendo
bastante frutífero para os historiadores. O acesso a uma parte
do acervo de cartas, manuscritos e documentos pessoais de Kardec possibilita
a eles descrever uma história mais completa e detalhada do
espiritismo, fundamentada nos registros dos eventos, fontes documentais
seguras e fidedignas.
Neste rápido passeio pelos documentos preservados, pudemos
conhecer exemplos reais do trabalho de Kardec e sua participação
ativa como pesquisador, autor e editor. Sem os recursos tecnológicos
da atualidade, ele estruturou não só a doutrina, mas
também a ciência espírita, como suporte para melhor
aproveitar o diálogo com os seres invisíveis e, em coautoria
com os espíritos, instituir e divulgar o espiritismo. Este
era Kardec, na busca constante pela excelência do seu trabalho.
Referências:
1 Manuscrito inédito de A. Desliens: “Regeneração
dos povos do Oriente”, carta de Kardec a Bonnamy.
2 Para mais informações, consulte os
sites AllanKardec.Online, obrasdekardec.com.br e a página do
Facebook CSI - História do Espiritismo
(Todas as imagens de manuscritos e impressos foram
obtidas dos originais, pertencentes ao acervo do museu AKOL).
Adair Ribeiro Junior, Carlos Seth Bastos, Luciana
Farias
